Sexologia profunda

(......... .eternamente preso(a) a uma guerra de vazios... vamos guerrear.... mudar e transmutar.... eu conheço as chaves... basta ser vazio(a))

...porque era injusto. Essa era a resposta de que precisava. Aquilo não era somente um ventre solitário que gerava linhas e colecionava parábolas. “Aquilo” (porque a carne não havia se moldado ainda em eu) era conexões orgânicas e era linfa, era líquido, muitos vermelhos pulsantes, como um corpo aberto e dilacerado, como um conjunto de carnes moles jogadas ao acaso: disforme – e sempre e completamente disforme. Chocante emaranhado de nervuras e peles e cheiros: terrível ao olhar desavisado, mas infinitamente belo no seu existir viscoso e venal.

(Quem foi a maldita criatura que inventou a economia dos rostos? Pois que viram quadros essas verdades tétricas quando vistas por detrás dos rostos. Quadros valiosos. E mais triste é um rosto valer tanto quando somos apenas carne. Sim. Pois que o mundo para nós é apenas carnal, organísmico; vedes a guerra, por exemplo: a guerra nubla os rostos, que são as máscaras. Tribos antigas guerreavam pelo sangue, apenas. Pois o sangue era coragem. Mas, no íntimo do animal covarde, o sangue é aquilo que aterroriza quando sussurra sombriamente: “tu és carne”. E não apenas os rostos, mas a idolatria dos rostos é a mentira pútrida e rota que esconde, mais uma vez, o inevitável: somos todos carne e líquidos e cheiros.)

Pois bem. Dizia que aquilo era apenas o que era: organismo. Mas aquilo, para os que tinham rostos, era lixo. Mais do que lixo: gerava temor e até ódio. Os idólatras da rostidade desprezavam aquilo. Sentiu-se só. Sentiu-se morrer. Desenhava-se a ironia: o organismo definharia se não tivesse um rosto, que tanto abominava. Foi assim que o destino lhe mostrou uma nova parábola de que precisava: a relação. Pois que nenhum organismo é um ventre solitário. Um organismo precisa de outros para gerar. Mas o que era que era seu “eu”? Ainda não tinha. Não era. Ou antes, não queria ser. Contudo, a necessidade se impunha. Foi rastejando e gotejando até a sociedade, único ser que poderia lhe dizer precisamente o que era. A sociedade era uma caixa pequena de metal muito enferrujado, com duas luzes mecânicas. Abaixo de uma das luzes lia-se a palavra “macho”, na outra se lia “fêmea”. Acima havia um orifício para parábolas. (A máquina rogava: macho ou fêmea?.... Mas sua verdade era maior que essa escolha) Aquilo se espantou com a simplicidade, enojou-se. Sentiu profunda tristeza e desejou morrer ali mesmo. Não queria se esconder daquela maneira, não era covarde. Em seu desespero, olhou para baixo: uma minhoca rastejava na terra. Podia espremer uma parabolinha da minhoca e enganar a máquina – pensou o organismo. Não... Ainda não daria certo. Ainda seria uma coisa disforme, e seu rosto seria demasiado diferente.

Enquanto pensava e definhava na frente da máquina social, um vazio cresceu, como tumor. Foi tomando espaço de mansinho; alguns órgãos secavam e caíam, negros. Antes da morte, porém, um motivo lhe apareceu: a parábola do vazio. Iria viver porque era injusto que só os covardes sentissem felicidade. Precisava da relação. Viveria. Essa era a resposta. O organismo então forçou a parábola mais bela e angelical que alguém poderia conceber: uma parábola frágil, rosada, macia, vazia e que escondesse da melhor maneira possível sua natureza de carne. Colocou na sociedade. A luz da direita acendeu com uma força tão surpreendente que tudo desapareceu: fêmea...

Acordou presa a uma guerra de vazios. A guerra da conquista de rostos. Sentiu-se infinitamente bem. E leve. Todos eram gentis, tudo era tão fácil! Todos a queriam. E isso sem realmente saber o que ela era, ou havia sido. Não sentia mais o peso de ser rejeitada. Agora conhecia a chave: ilusão. Por isso podia usá-los como quisesse...

Sentiu-se infinitamente bem. Mas não esqueceu quem era, de verdade.