Clarice e a escuridão

Submersa. Com olhos assustados.

E, de repente, ficou claro, ficou tudo muito claro para Clarice, mergulhada naquele mar de escuridão.

Clarice é frágil, mas, também, tem força. Ela é calma, mas, também, tem raiva. Ela já compreendeu que não é possível fugir do mal que existe em nós, no mundo e nos outros.

Sobre a dor, sobre o fracasso, as decepções. Aquela vontade imensa de desistir, Clarice conhece.

Mas ela não foge da dor. Ela não persegue alegrias, embora não as rejeite. Ela não quer mais nada. É assim mesmo, de repente, ela não quer nada, ou, na verdade, ela só queria o nada.

Ela tem aquela melancolia de sempre.

O silêncio não incomoda Clarice. Ela já entendeu que não é possível preencher vazios com barulho.

A solidão não incomoda Clarice. Ela já entendeu que não é possível preencher vazios com companhia.

Ela submergiu naquele sofrimento necessário. Aquele sofrimento que humaniza, que não te deixa esquecer que não resta muito ao que se agarrar.

É isso mesmo, Clarice compreendeu. A vida é cruel. É assim que é. Clarice não salvará o mundo. Eu não salvarei o mundo. Você não salvará o mundo.

Porque o mundo não pode ser salvo.

Clarice aceitou isso a duras penas, é verdade.

É que é uma dor, ter que aceitar e suportar. Ninguém quer. Você não vê?

Submersa. Com olhos assustados. Grandes olhos. Olhos tristes. Olhos machucados. Olhos sonhadores.

Olhos submersos na tristeza de tudo que era pra ser, e não foi; de tudo que viria, e não veio. Clarice pensa no que mudou, e Clarice pensa no que nunca mudará.

Ela chora, às vezes. Olhos molhados de Clarice. Mas ela entendeu que não se pode fazer nada.

Nada. Olhos submersos. Tristeza.

É sobre o tempo. É sobre aceitar a escuridão, não a do quarto com os fantasmas da imaginação.

A escuridão que existe dentro, dentro de nós. Clarice precisou aceitar que há vazios que jamais serão preenchidos. Então, ela aprende a lidar. Todo dia, um novo dia para aprender e se deteriorar. É assim mesmo que é. É que é uma dor.

A escuridão é assustadora.

Mas necessária para vislumbrar verdadeiros valores. Aqueles que estão na alma. Mais dentro do que fora. Mais sozinhos do que acompanhados.

Preciosos momentos em que o mundo para. E você quer ficar ali. Ali, até tudo acabar.

Clarice está só. Ela tem dúvidas. Ela se pergunta sobre a distância que existe entre o que ela pensa que é e o que ela é de verdade.

Distância. Dúvidas. Vislumbrar.

Sobre a dolorosa existência de Clarice:

A mãe morreu, Clarice tinha cinco anos. Um orfanato; frio, pavor, saudades, lágrimas e dor.

Uma nova família que nunca chegou.

Clarice cresceu. Perdeu a inocência de criança. "Hora de ir para o mundo", disseram a ela.

A vida foi professora de Clarice.

Seguiu firme tentando ser ela mesma. Mas nem Clarice sabe se é mesmo ela ou ninguém.

Um quarto pequeno e muito simples. Uma rua suja e violenta.

Trabalhava de atendente em uma loja de doces.

A ida e a volta do trabalho eram desgastantes.

Chegava exausta. Chegava, e ia limpar o seu pequeno quartinho.

Limpava o chão, como se tentasse limpar a própria alma.

Limpar a alma do ressentimento, da raiva, da dor, da saudade, das dúvidas.

O que era pra ter sido, e não foi. O que se foi. O que nunca será. É sobre o sabor amargo da vida.

Antes de se deitar, faz um chá quentinho, e lê seus livros, que compra com o pouco dinheiro que tem.

Clarice não tem coisas. Ela só compra o que precisa. Ela precisa dos livros.

Antes de dormir, ela sonha acordada. Sonha com dinheiro suficiente para poder estudar e para conhecer os lugares incríveis. Clarice tem o sonho de ver o mundo.

À noite, antes de dormir, quando o mundo para, e você quer ficar ali.

Ali, até tudo acabar.

Naquele dia, desceu do ônibus, e atravessava a rua, para mais um dia de trabalho.

Sapatos gastos. Roupas velhas e simples. Muitos sonhos. Eram cerca de seis horas da manhã.

“Foi um carro preto”, disseram.

Quem disse?

Não sei. Ninguém viu. Falaram: “foi um carro que passou rápido demais”.

Deitada no asfalto, roupas velhas rasgadas. Dormiu para sempre, agora.

O carro preto não viu Clarice. A sorte não viu Clarice. Ninguém viu Clarice.

Sonhos submersos. Olhos submersos na escuridão do fim.

O que era pra ter sido, e não foi. O que se foi.

Thaís Carmo
Enviado por Thaís Carmo em 28/05/2017
Reeditado em 11/02/2019
Código do texto: T6012108
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