PRISIONEIRO DA GANÂNCIA

A pequena cidade acordou assustada, com o crepitar das chamas que consumiam impiedosamente a loja Plena Confecções & Tecidos. Era uma construção de madeira, relativamente nova, de dois pisos. Rodolfo, o proprietário, morava sozinho no andar de cima. Acordou-se com a fumaça subindo da loja e correu, apenas de cueca, como costumava dormir e já não pôde fazer nada, a não ser salvar a própria vida, furando a cortina de fumaça escada abaixo.

Do lado de fora, a salvo, constatou, estarrecido, que seu patrimônio já não existia. Sobrara-lhe apenas o terreno e a cueca. Estava irreconhecível, completamente coberto pela fuligem. Olhou para a multidão, espectadora silenciosa de sua desgraça e olhou para o céu, mas Deus não estava lá para socorrê-lo. Ninguém o socorreria.

Não obstante o peso da tragédia, que o esmagava contra o solo, uma mão fria e terrível levantou-se do túmulo de algum lugar do passado, apontando-o, acusadora e ele caiu prostrado, sem forças, sem derramar uma lágrima, mal conseguindo abrir os lábios para balbuciar: “castigo, castigo”.

Érica, vítima, mas também coadjuvante naquele palco de tantos acontecimentos, destacou-se da multidão e ficou olhando, atordoada.

Aquelas mesmas pessoas, que um dia a escorraçaram, quando o marido a pôs para fora, gritando aos quatro ventos que ela era uma prostituta e que a pegara em flagrante adultério, haviam mudado de lado e fizeram coro com Rodolfo:

- Castigo! Castigo! É a mão de Deus! Aqui se faz, aqui se paga!

Um homem assiste, impotente, todo seu patrimônio ser devorado pelas chamas e as pessoas gritam que é castigo, inclusive ele próprio? Como, assim? O contexto da situação será entendido, recuando o tempo quinze anos, quando Rodolfo e Érica, recém-casados, chegaram ao local. A cidade, então, não contava com mais de umas poucas dezenas de casas espalhadas às margens da estrada. O casal comprou um pequeno pedaço de chão, à beira da rodovia e deu o primeiro passo ao que viria a ser a bonita loja que virou cinzas.

Era uma casa pequena, de madeira rústica, construída pessoalmente pelos dois e dividida ao meio. A parte de trás destinaram à cozinha, ao quarto e ao banheiro. À frentel montaram um boteco, no qual venderiam pão, linguiça, banana, cachaça, balas e outros produtos que julgavam de fácil aceitação pelos futuros fregueses, principalmente caminhoneiros, fazendeiros e madeireiros, que por ali costumavam passar.

O negócio começou lento, porém a jovem Érica, loira, de olhos azuis, simpática, bonita e sensual, funcionou como um chamariz irresistível. O lucro não demorou.

Rodolfo percebeu como a esposa atraía a atenção dos freguêses, cujos olhares compridos e libidinosos a despiam e a devoravam, mas não deu a menor importância. Á medida que o dinheiro chovia, abarrotando a gaveta, o olho do galego crescia e ele começou a fazer planos.

Érica estava assustada com os assédios, às vezes silenciosos, por meio de olhares e sorrisos cobiçosos, mas também de elogios à sua beleza e até de presentes. Como não partilhasse das ideias do marido, resolveu pôr fim à brincadeira e à noite teve uma conversa séria e categórica com ele :

- Meu marido, a brincadeira está ficando cada vez mais perigosa, precisamos parar, ou vamos acabar nos dando mal.

Rodolfo se fez de desentendido:

- Mas, do que estás falando, criatura? Está tudo sob controle. Estamos indo melhor do que esperávamos. A que brincadeira te referes?

- Não te faças de tolo, Rodolfo, porque já percebeste muito bem o que está acontecendo. Esses homens todos estão vindo aqui por minha causa, estão todos de olho em mim, me assediando e eu não estou me sentindo nada confortável. Não quero mais participar deste jogo.

- Olha, minha querida, eu te conheço muito bem e confio em ti, sei que és uma mulher honesta. Por favor, não te deixes perturbar, continua assim, gentil e atenciosa, dá um pouco de corda, para que gastem cada vez mais, só isso. Quando estivermos bem de vida, acabamos contudo. Combinado?

- Isso não vai dar certo, estou avisando.

Assim, encerraram a conversa e o jogo continuou. Rodolfo construiu um pequeno puxado nos fundos da casa e fez uma cova no chão, onde enterrou um cofre de madeira, no qual depositaria o que poupassem e já dispunham de uma quantia considerável.

Como percebera que certos fregueses se tornavam mais generosos quando ele não estava por perto, arrumava sempre uma desculpa para afastar-se, quando os mesmos chegavam.

Rodolfo transformou-se num sujeito ganancioso, sem limites, queria cada vez mais. Para satisfazer seus projetos inescrupulosos, fizera da esposa o meio e foi mais longe.

- Sabes, minha querida Érica - estava mais carinhoso do que sempre fora- ninguém realiza sonhos sem esforço, sem correr atrás, não importando se, por vezes, os caminhos de desviem um pouco dos padrões considerados honestos. Nestes casos, honestidade é, mesmo, só um ponto de vista. Somos um casal que se ama, um confia no outro e sabe aonde quer chegar. Vamos fazer o que tiver que ser feito.

- Espera aí! Não estou gostando nada dessa conversa. O que estás me propondo, afinal de contas? Fica sabendo que não farei nada que violente meus princípios.

Érica começou a suspeitar dos propósitos do marido. Ele entendeu, mas continuou tentando convencê-la:

- Pensei que poderia contar contigo, mas já estou vendo que continuaremos nesta vida de vender cachaça e linguiça indefinidamente, para sempre pobres, quando temos uma mina de ouro bem a nossa frente...

Fingiu uma tristeza profunda e até derramou algumas lágrimas mentirosas, nas quais ela acreditou, pelo menos em parte, ficou com pena e pediu que ele continuasse explicando o que deveriam fazer.

- Que bom, querida, que me entendes. Eu te amo muito, não saberia viver sem ti. Há algum tempo venho elaborando um plano, neste momento maduro o bastante para começarmos a executá-lo. Esses trouxas estão todos apaixonados por ti, tenho certeza de que te darão o que pedires, por alguns minutos na cama, só isso. Alguns deles são muito ricos, até já selecionei os que servirão ao nosso propósito. Em pouco tempo, teremos dinheiro suficiente para ficarmos ricos. Então, iremos para bem longe e nos estabeleceremos no mercado dos bons negócios. Antes de me dares a resposta definitiva, pensa com cuidado, não permitas que a força de nossa cultura atrasada nos emperre no tempo.

- Na ânsia do dinheiro fácil, não estás levando em conta as consequência desse sonho desmedido e tresloucado que, certamente, nos transformará. No entanto, apesar de assustada, prometo dar-te resposta em breve. Mas não esperes muito.

Terminada a conversa, na cama, como sempre ocorria, Rodolfo virou-se para o lado e dormiu placidamente. Érica, pelo contrário, não conseguia descolar do que acabara de ouvir, estava atormentada, cheia de dúvidas e nenhuma certeza. Por mais que pensasse, não encontrava alternativa. Se, por um lado, ceder às pressões do marido significava um absurdo, uma violência contra sua dignidade; por outro, não queria deixá-lo triste e contrariado. Que o destino a ajudasse! O sono venceu a batalha e ela sonhou com João Pedro, o fazendeiro pelo qual nutria uma forte simpatia: Estavam indo para a cama. Acordou-se sobressaltada e constatou que o amanhecer se anunciava, entrando pelas frestas das paredes sem tapa juntas. Pulou da cama e chamou Rodolfo, que precisava pegar o ônibus bem cedo para a cidade vizinha.

Às sete horas abriu o bar. O marido já havia saído e João Pedro apareceu.

- Meu Deus! - exclamou Érica, empalidecendo.

- Te assustei , princesa? Parece que viste um fantasma.

- É que não o esperava, ainda mais porque sonhei com o senhor esta noite, razão por que fiquei atrapalhada, quando o vi, mas está tudo bem.

- Que ótimo! Como foi esse sonho? Melhor, deixa pra lá, o importante é que sonhaste comigo, isso me deixa feliz. Estava de passagem e resolvi chegar, precisava ver-te. Tenho um presente para ti, olha.

E entregou-lhe uma embalagem, contendo um par de brincos de pérola e um lindo vestido azul de seda. A princípio ela recusou-se a aceitar; porém lembrou-se de que não havia razão para a recusa, já que o próprio marido a estava incentivando.

- Vai lá dentro, veste o vestido, que combina com teus lindos olhos e põe os brincos.

Mal ela entrara no quarto, ele entrou atrás. Se olharam, se tocaram e não foi preciso dizer nada mais.

De volta ao bar, Érica acabou contando a João Pedro sobre os objetivos escusos do marido, mas ressaltou que jamais fora para a cama com outro homem, além de Rodolfo e que se cedera a ele, João Pedro, foi porque não conseguira resistir, estava motivada por uma forte atração.

- Estou feliz, por saber que não te sou indiferente. Agora, que esse teu marido é um sujeito sem escrúpulos, não dá para negar. Não concordo que seja dessa forma, mas como sou viúvo e capaz de fazer qualquer coisa para ter-te, que seja assim.

Terminaram a conversa, antes que chegassem testemunhas, João Pedro entregou a ela uma boa quantia em dinheiro, prometeu voltar logo e despediram-se.

Quando Rodolfo chegou, Érica entregou-lhe o dinheiro e pediu-lhe que não fizesse perguntas, com o que ele concordou plenamente.

Na semana seguinte, João Pedro voltou, ela estava só. Amaram-se com paixão redobrada e ele a convidou com insistência para que fosse morar com ele, em sua fazenda, onde seria amada e respeita.

- Desculpa, mas não posso fazer isso, embora esteja apaixonada por ti. Sou casada e meu dever é permanecer ao lado de meu marido, mesmo nestas condições. Pode ser que até mude de ideia, algum dia; por enquanto, porém, continuaremos do jeito que começamos.

- Já que preferes assim, que seja, mas te peço, pelo amor que sinto por ti, que nenhum outro homem, além de mim e de teu marido, esse sujeito ignóbil, vá para a cama contigo. Sou rico o suficiente para dar-te todo o dinheiro que for necessário.

Érica jurou que não o trairia e que, de vez enquanto, daria um jeito de passar um final de semana com ele, na fazenda. Rodolfo não se oporia.

E assim transcorreu um ano. O grande cofre de Rodolfo estava abarrotado e ele julgou que já havia mais que o necessário para que a vida de corno pobre tivesse um final compensador. Chamou a mulher e lhe ordenou que rompesse definitivamente com o amante. Ela ponderou, que não poderia ser assim, de repente, que necessitaria de mais algum tempo para convencer João Pedro.

- De jeito nenhum. Amanhã tu terminas tudo e nós vamos embora, para bem longe desta cidade.

Rodolfo já havia percebido que a mulher estava apaixonada, que seria difícil convencê-la a terminar aquele relacionamento espúrio e resolveu deixa-la sem nada.

No dia seguinte, saiu bem cedo, mas ficou escondido. Viu o amante chegar, aguardou alguns minutos, chamou alguns vizinhos, entrou com eles no quarto e fez um escândalo, passando por marido traído. Ninguém duvidou.

João Pedro, embora ciente de que não poderia alegar inocência na história, era, por outro lado, um cidadão trabalhador e honesto, razão por que decidiu abandonar o local envergonhado, sem nenhum protesto, todavia sem o menor arrependimento. Estava apaixonado como jamais estivera antes. Érica, enxovalhada, enxotada, tratada como prostituta, jurando que Rodolfo haveria de arrepender-se amargamente, acompanhou o amado até a casa de Alma, uma irmã que morava nas proximidades, onde foi bem recebida.

Três dias depois, João Pedro voltou à casa na qual Érica se encontrava e a convenceu a acompanhá-lo para a fazenda.

Uma vez só e considerando-se um homem rico, Rodolfo tratou de mudar rapidamente seu padrão de vida. No lugar da pequena casa, demolida já no dia seguinte, construiu um belo sobrado, no qual abriu a loja Plena Confecções & Tecidos.

Os anos passaram e Rodolfo, escravizado pela ganância, nunca mais dormiu tranquilo. Os pesadelos, movidos pela consciência, acusadora implacável, torturavam-no permanentemente. Jamais voltou a casar-se, conquanto tornara-se um comerciante bem sucedido, com fome voraz de enriquecimento. Paralelamente, Alma não mediu esforços para limpar a imagem da irmã, de forma que a culpa pesasse sobre os ombros do ex-marido.

Quis o destino, juiz inexorável, que Érica estivesse em visita à irmã, exatamente naquela noite, para testemunhar a desgraça de Rodolfo. Agora estava ali, atordoada, sem esboçar reação e, assim, fustigada por uma infinidade de sentimentos contraditórios, dirigiu-se para a casa de alma, certa de que a imagem patética do ex-marido, naquele momento definitivo, permaneceria indelével em sua memória.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 20/06/2017
Reeditado em 16/12/2023
Código do texto: T6032807
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