Contos do interior: Caminhantes

Caminhantes ingênuos, os sapatos saberão cada vez menos do caminho que percorrem em detrimento dos que os calçam

Percorrem por todos os lados os sapatos de todo mundo, indo bater de bico nas calçadas mais elevadas, umas mais que as outras. Os sapatos companheiros, caminham com o José e os seus segredos. Os sapatos estão velhos, abrindo em algumas partes, porém seguem fiéis. Não que lhes coubesse outra opção, hoje são sapatos e ainda que não quisessem o menino persistiria em os usar, mesmo a contragosto fariam o seu caminho, calçando-o, ao seus pés, sustentando o seu peso.

Por depositar fé onde não se prova, acabamos por aceitar todo tipo de sorte. Então seguimos o tortuoso caminho do ser, crentes que no fim alguma coisa faça sentido, como a seca no sertão, as árvores feias e tortuosas, os rios que secam. Não entendemos se somos sapatos ou caminhantes. Mas somos a seca e também retirantes.

O pequeno José percorre a pequena cidade com os seus sapatos velhos, a cidade é pequena para quem já cresceu, para ele, o garoto, é tudo e não pela importância, mas pela inocência que carrega toda criança de achar que o mundo é tudo aquilo que os seus olhos podem ver. Seu trajeto favorito é o que vai dar na quadra, lá todo dia é sábado, até que acabe a brincadeira. Um outro caminho menos querido é o que consiste em alguns morros, e termina na porta da igreja, lá se come o pão que por enquanto o proíbem e ele, criança, não entende nada das preces modernas, mas perversos são os padres, negam o corpo e o sangue de Cristo para os pequenos, os únicos de nós capazes de levar paz e alegria ao coração coroado de espinhos, negligentes, os pastores optam por levar todo tipo de dor de seu rebanho, deixando o trabalho do redentor cada dia mais pesado.

Os caminhantes ali vão sem pressa, como quem não precisa chegar. Chegando, ficam e deixam um pouco de si quando saem, no outro dia não buscam o pedaço que deixou, mas inteiram até completar o que são, por fim tem todo mundo em tanto canto que nem precisa dizer que sentiu saudade, apenas saber se o que saiu passou bem.

As ruas estão livres para as bicicletas e as pernas crescem fortes porque não existem grandes extensões de terra plana, é muita subida e pra baixo todo santo ajuda.

Quando se esbarram os senhores conversam sobre o tempo, e quem é de abraço se abraça e de beijo se lasca. Quando começa chover correm ao desespero as senhoras que deixaram a roupa pra secar no varal e a janela aberta por ar entrar, fica aí o registro quando ali se instala os passos apressados.

De todos os caminhos possíveis, são os caminhantes os mais improváveis.