Desditosa Beleza

Desditosa Beleza

Se havia uma mulher que podia vangloriar-se do caráter invejável e longevo de sua inquestionável beleza, esta era, sem a menor sombra de dúvida, Bruna Bastos.

Feliz possuidora de tão inúmeros quanto e inebriantes atributos físicos, entre os quais, incluíam-se uma escultural compleição, um belo par de fulgurantes olhos azuis, um sorriso cujo radioso resplendor muito se assemelhava ao exibido pelo Sol nos mais convidativos dias estivais e uma luminosa face emoldurada por corredias melenas castanho-claras, Bruna atraía para si, por onde passasse, os mais cobiçosos olhares, não só do sexo oposto, mas, até mesmo, do seu próprio sexo.

A beleza, no entanto, não lhe garantiria uma juventude feliz.

Aos dezoito anos, Bruna fora obrigada a desistir de todos os seus sonhos e forçada a renunciar a todos os seus planos para se casar com o rico empresário Felipe Hausman, que a solicitara e a obtivera junto a seus pais em troca do perdão de uma vultosa dívida.

O casamento de Bruna e Felipe durou dois anos e terminou com a morte do empresário em um desastre de automóvel.

Seu único fruto positivo fora a filha, dele nascida.

Concebida à força e hironicamente registrada com o nome de Letícia, a menina tornou-se a maestrina cuja batuta regia a orquestra dos dias que compunham o monocórdio quotidiano da vida de Bruna.

Os dias se iam passando e, à medida que Letícia crescia, viam-se nela traços físicos idênticos aos da mãe, animados por uma personalidade rigorosamente igual à do pai.

Por alguma estranha razão, Letícia não gostava de ostentar em sua assinatura o sobrenome herdado da mãe. Reduzia-o frequentemente a uma simples abreviatura, sendo comum vê-la assinar Letícia B. Hausman.

Quando Letícia tinha nove anos de idade, sua mãe resolveu voltar a estudar. Decisão que desagradou a filha, para quem, a mulheres que já haviam sido mães, cabia consagrarem-se, única e exclusivamente, aos deveres inerentes às instâncias da maternidade e do lar.

Aos olhares que homens e mulheres lhe dirigiam, Bruna fazia questão de se manter esquiva e indiferente.

Temia o surgimento de um novo Felipe Hausman em sua vida.

Temia mais ainda a reação de Letícia ante a possibilidade de ver a mãe envolvida em um novo relacionamento.

Tal situação, entretanto, veio a se modificar drasticamente no exato momento em que aos fulgurantes olhos azuis de Bruna fora apresentado o luzente olhar de Sandro Bertoldi.

Inscrita naquele belo par de olhos negros e mansos, leu a mulher uma porsão de promessas com que jamais lhe havia alguém acenado em sua juventude.

Bruna e Sandro eram tipos bem diferentes um do outro.

Ela tinha quarenta e um anos. Ele vinte e três.

Ela, graças ao farto e sabiamente administrado pecúlio que lhe rendera a auspiciosa viuvez, podia ser considerada uma mulher bem situada financeiramente. Ele, a seu turno, era pobre, filho de lavradores, o primeiro de sua família a matricular-se em um curso superior.

Ela estudava Jornalismo e ambicionava o posto de correspondente internacional em um grande veículo de comunicação. Ele cursava Letras e sonhava ser um grande escritor.

Foi em um dia de chuva, na saída da universidade, que os dois se conheceram.

Sandro se preparava para percorrer a pé os cerca de três quilômetros que separavam a universidade da penção em que residia, quando reparou que havia esquecido o guarda-chuva na penção.

Bruna o observava a distância e, ao ver a difícil situação em que o jovem se encontrava, dirigiu-se até ele e, com voz solícita, ofereceu-lhe uma carona.

Sandro pensou, por alguns instantes, em recusar a carona da bela desconhecida. Todavia, vencido, em parte, pelo temor da chuva e, em parte, pela beleza da mulher, decidiu aceitar-lhe a generosa oferta.

Ao longo do trajeto, inevitáveis foram os cruzamentos de olhares, de vozes e de almas entre os dois.

A conversa fluiu agradavelmente.

Há tempos, inteiramente absorvido pela dupla jornada que vivia, conciliando seus estudos na universidade e seu trabalho como digitador em uma escola particular, Sandro não experimentava o prazer de uma conversa tão amena.

A Bruna, por sua vez, também não vinha sendo permitido desfrutar tal experiência já há bastante tempo. Afinal, tinha sempre de equilibrar-se entre os afazeres do curso, os deveres da casa e as intermináveis cobranças de Letícia.

O agradável colóquio entre a condutora e o passageiro teve por desfecho uma inesperada promessa feita pela primeira.

Bruna prometeu a Sandro que o levaria à universidade e o entregaria na porta da penção todos os dias.

Sandro novamente tentou recusar a oferta. No entanto, teve de aceitá-la, uma vez que os encantos a si transmitidos pela fascinante presença de Bruna já o haviam hipnotizado completamente.

Pouco tempo bastou para que os dois se vissem mutuamente envolvidos e começassem a protagonizar uma intensa paixão.

Um ano bastou para que Sandro deixasse a penção e se mudasse para a casa de Bruna.

Seis meses após a mudança, Bruna já passava a assinar Bruna Bastos Bertoldi.

Letícia, por mais estranho que pudesse parecer, demonstrava não opor qualquer resistência à união da mãe com Sandro.

Pelo contrário, mostrava-se bastante solícita sempre que o padrasto lhe chamava ou lhe pedia algo.

Para Bruna, a atitude da filha era um sinal de amadurecimento. Sandro, contudo, observava com profunda desconfiança o proceder da menina recêm-chegada à adolescência.

Como sempre fora de se esperar, o tempo foi passando.

Sandro e Bruna graduaram-se em seus respectivos cursos e começavam a gozar certo prestígio em suas profições.

Ele começava a fazer sucesso como escritor. Ela, como jornalista, começava a fazer suas primeiras reportagens de vulto, o que, muitas vezes, a obrigava a viajar e a delegar ao esposo a tarefa de cuidar de Letícia.

Foi justamente em uma das viagens de Bruna que a desconfiança de Sandro com relação ao comportamento de sua enteada veio a se justificar.

Recêm-saído de seu banho, Sandro se dirigiu ao quarto para se vestir. Mas, assim que entrou, avistou Letícia nua, reclinada sobre o leito que ele costumava partilhar com Bruna.

Assustado, Sandro tentou regressar ao banheiro.

Letícia, porém, foi mais rápida. Avançou em direção à porta do quarto e a fechou.

Em seguida, Letícia se aproximou de Sandro, até que seus corpos quase se tocassem e, entre os dois, travou-se o seguinte diálogo:

“Muitas pessoas me dizem que eu me pareço muito com a minha mãe. Você também acha isso? Que eu sou parecida com ela?”

“Olha, Letícia! Eu até acho você bastante parecida com ela. Mas...”

“Chhhh... Você não precisa dizer nada, querido! Eu sei que sou bem mais atraente do que ela! E ela também vai saber disso! Assim que eu contar, com detalhes, o que acontece entre você e eu quando ela viaja!”

“Mas, não acontece nada entre nós dois quando ela viaja!”

“Eu sei que não acontece. Mas, eu posso fazer com que ela acredite que existe algo muito forte entre nós! Uma química muito autêntica! Uma explosão de hormônios que só ocorre quando ela viaja!”

“Como assim? Do que é que você está falando, Letícia?”

“Não se esqueça de que eu sou atriz! A melhor do meu grupo de teatro! Já ganhei até prêmio! Você não se lembra, meu bem? Posso convencer qualquer pessoa de qualquer coisa!”

“Aonde é que você pretende chegar me dizendo e me fazendo todas estas coisas? Qual é o seu objetivo? O que você pretende? O que é que você quer de mim, eim, Letícia? Diz! Pelo amor de Deus!”

“Aonde é que eu pretendo chegar? O meu objetivo? O que eu pretendo lhe dizendo e lhe fazendo estas ... coisas? O que eu quero de você? É muito simples, meu Amor? Quero que você faça comigo, aqui e agora, exatamente o que faz com a minha mãe todas as noites! Entendeu, delícia?”

“E se eu não fizer? O que é que você fará comigo?”

“Bem, gatinho! Você tem duas opções! Ou faz o que eu lhe peço e mantemos em segredo, ou se recusa e eu faço a minha mãe acreditar que existe um caso entre nós!”

Sandro bem que tentou escapar às investidas de Letícia. Contudo, antes que pudesse esboçar qualquer resistência, os lábios da moça já se haviam colado aos dele, os braços da moça já o haviam estreitado, as mãos da moça já o haviam despido, a pele da moça já deslisava sobre a dele.

Enquanto tudo se seguia conforme os ditames da natureza, de Letícia ouviam-se as seguintes palavras, dirigidas a Sandro.

“”Hoje, mesmo com a viagem da sua amada Bruna, você tem companhia nesta cama enorme! Desfrute! Deleite-se! Delicie-se! Inebrie-se! Embriague-se! Extasie-se! Goze! Deixe-se levar pelos instintos animais que todo homem traz dentro de si! Você me deseja! Sempre me desejou! Só não sabia disso ainda! Afinal, até hoje, você só conhecia o gosto da fruta passada. Hoje, porém, eu lhe apresento o sabor do fruto recêm colhido! Vem, meu bem! Vem, pra dentro de mim!”

Aquela noite sombria custou a passar para Sandro.

No dia seguinte, antes que Letícia acordasse, ele se dirigiu rapidamente ao escritório e de lá não saiu mais, até que Bruna regressasse.

Assim que Bruna regressou, encontrou Letícia sozinha na sala de casa e perguntou por Sandro.

“Seu amado está no escritório! – disse Letícia à mãe, ostentando, na voz, um tom de flagrante indiferença.

Ao abrir a porta do escritório, Bruna espantou-se.

Qual não foi sua surpresa quando viu Sandro extirado no chão, morto?

Ao lado dele, jazia uma carta.

Bruna apanhou-a, abriu-a e a leu.

A cada linha que lia, mais abundante lhe corria o pranto, sobre seus fulgurantes olhos azuis.

Amada Bruna,

Assim que te vi pela primeira vez, compreendi que meu destino era ser fiel a ti por toda a minha vida.

Assim que meus olhos cruzaram os teus, não mais quiseram saber de outros olhos.

Assim que meus ouvidos escutaram a tua voz, não mais quiseram saber de outra voz.

Assim que minh’alma pôde sentir as excelsas vibrações da tua, não mais quis saber de outra alma.

Desde então, foi tal compreensão o agente inspirador de cada ato meu durante a nossa amizade, o nosso envolvimento, a nossa paixão, o nosso namoro e o nosso casamento.

É pena que a pessoa em que mais te seria natural e lícito confiar tenha sido a única responsável pela completa destruição do templo de confiança e fidelidade que foi a nossa abençoada união.

Na noite passada, quando eu regressava do banho rumo ao nosso quarto, a fim de me vestir, avistei Letícia nua, reclinada sobre o nosso leito.

Tentei expulsá-la do quarto. Mas, não obtive êxito.

Tentei, então, refugiar-me no banheiro, com o objetivo de evitar-lhe o contato. Entretanto, mais ágil do que eu, ela avançou em direção à porta do quarto, fechou-a, começou a dizer-me uma porsão de coisas cujo nexo eu não conseguia entender, propôs que eu passasse aquela noite com ela e, por fim, chantageou-me dizendo que, se eu não aceitasse a sua proposta, faria com que cresses que nós tínhamos um caso.

O desespero tomou conta do meu ser e, para não ter a minha honra manchada por uma injusta e infundada acusação, tive de ceder-lhe às instâncias.

Fiz o que Letícia me pediu. Contudo, devo dizer-te que foi aquela a pior noite de toda a minha existência.

Na manhã seguinte, fiz questão de acordar bem antes dela. Preparei meu café de maneira bastante especial. Acrescentei à solução uma boa colherada de veneno contra ratos. Caminhei até o escritório. Esvaziei a xícara em um só gole.

É muito provável que, no exato instante em que estiveres a ler esta modestíssima carta, eu já esteja morto.

Também é muito provável, e até bastante natural, que não estejas acreditando na história que te relata cada uma das linhas que a compõem. Todavia, defendo-me afirmando que, se fosse minha intenção viver um relacionamento com a tua filha, eu não teria cometido suicídio. Teria, antes, fugido com ela e abandonado a ti e o nosso lar. Além disso, sabes muito bem que mentir é algo que nunca foi do meu feitio e compreendes que jamais esteve em meus planos criar subterfúgios que te pudessem afastar de Letícia.

Se me mato, portanto, é única e exclusivamente, pelo imenso Amor que me une a ti e por total fidelidade ao juramento que te fiz assim que nos casamos.

Jurei que eras tu a minha primeira mulher e que, se a ti alguma situação me impedisse de ser fiel, preferiria, antes, morrer, a trair-te a confiança.

Sem mais a declarar-te, no transcorrer deste triste dia, do mais triste entre todos os dias que já vivi, encerro a presente epístola e de ti me despeço, definitivamente, com os mais sinceros e apaixonados protestos de Amor Eterno e absoluta fidelidade.

Com Todo O Meu Amor:

Sandro Bertoldi

Eis o que dizia a missiva deixada por Sandro.

Razão da tristeza que deu fim à desditosa beleza de Bruna.

Razão da exultante celebração que pôs termo à sanidade de Letícia.

Hebane Lucácius