Letras da Arábia - Embora ninguém conseguisse entender...

Aliás, foi até sem graça o tempo em que a mãe de Rabicó morreu. Não houve choro nem alarido, ela já tinha uns cem anos e encolhera que nem saco de plástico no fogo. Tinha tido umas oitenta doenças só contando os três anos antes de partir.

Rabicó até que ficou satisfeito. Ia parar o montueiro de lamentações que começava toda noite depois da reza das sete horas, quando Tonho Sacristão ia fechar igreja e o povo já tinha dito "Rainha da Paz". Na rua da casa de D. Veneranda todo mundo gostava dela, mas todo mundo gostou que D. Veneranda tivesse ajuntado os cambitos. "Gente véia num presta", ela mesma dizia, pra falar a verdade. E é mesmo. Quando eu tiver meu primeiro reumatismo forte, dou um tiro no ouvido, uma facada no bucho ou pulo debaixo dum caminhão, que não nasci pra traste no largado.

A rua está deserta. Acho que é sexta-feira, mas aqui todo dia da semana é dia igual. Não faz muita diferença dizer que é esse ou aquele dia. Sábado e domingo é que fica diferente, sô. Sabe, sábado e domingo é dia de ir no Jardim – ou "ao jardim", como dizem os rapazes que estudam em Belo Horizonte – dia de botar uma roupinha mais bacaninha, botar desodorante debaixo do braço e perfume no pescoço. Dia de ficar parado na rua da Prefeitura ou no Jardim – até aí a diferença de classes, mais pobres na rua, menos pobres no Jardim – fazendo ala os rapazes, as moças passando no meio, a gente mexendo com elas, determinismo do footing, etc. etc... Depois, mais tarde, subir a rua das Flores etc. etc. e tal.

A rua está deserta. É sexta-feira, acho que primeira do mês, a igreja ainda está cheia a essa hora, depois da reza, já quase nove da noite. Na primeira sexta-feira de cada mês, comungar e confessar. Isto é, confessar é antes de comungar: durante a semana, na quarta as crianças, na quinta os homens e mulheres casados – de noite – a manhã ficando por conta da moçada.

A rua está deserta. Eu tenho um negócio aqui no peito, deserto também, uma vontade de dizer umas coisas que não sei como começar. De tudo que vou dizendo fico com raiva, até mesmo porque não é jamais que quero. Vontade poder começar tudo de novo. Tudo, tudo. Vontade de pegar numa borracha e apagar o que foi escrito durante a minha trajetória, a partir do ponto da velocidade inicial. Vontade... Só vontade. Ou, então, fazer como a mãe de Rabicó, que terminou tudo desde quando a dispneia e aquela aflição começaram a montar de verdade, e ela foi esverdeando, se indo, se indo... Pequenininha e magrinha, só osso, um sangue escuro que fazia bolotas pretas no braço e no pescoço, aquela asma, aquela coiseira...

A rua está deserta, e os horizontes são muito curtos. Não há jeito de fugir do meu lugar, do meu curral, da minha rua e minha casa. Não há jeito. A minha estúpida cidade e o meu estúpido povo não podem me ajudar. Não podem fazer nada. Nem eu posso comigo mesmo, de estúpido também.

Um dia, eles se ajuntaram e fundaram a "Sociedade Destruidora para a Salvação". As bananas de dinamite, acumuladas durante anos, com a solidariedade de todos os habitantes do lugar, serviram para estraçalhar com tudo, numa noite de primeira sexta-feira, todo mundo comungado e em estado graça, embora ninguém conseguisse entender direito por que acabar com tudo, se tudo era tão belo e até o governo tinha prometido mais duas indústrias para acabar com o paradeiro da rapaziada e a bobeira do vulgo em geral, isso tudo numa noite de primeira sexta-feira, com todo mundo comungado e em estado de graça, embora ninguém conseguisse rir e enten... en... em est...graça...eito...dir...por que??? Por que...

(Belo Horizonte, MG, 1969/Jeddah, Arábia Saudita, 1976)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 21/07/2017
Reeditado em 11/09/2020
Código do texto: T6060759
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