Plástica moral

Elias comemora seu 100º aniversário. São 14:00h do dia 29 de fevereiro. Mantém pressão sistólica de 120mmHg, pressão diastólica de 80mmHg, temperatura corporal de 36,5ºC, 4,6 milhões de eritrócitos/mm^3, 16g de hemoglobina/dl, 9080 leucócitos/mm^3, 74mg de HDL/dl, 86mg de LDL/dl e reflexo suficiente para evitar a queda repentina de uma faca, agarrando-a pelo cabo a 40cm do chão. Disseram ter motivos para comemorar.

Há duas pessoas em sua companhia. Sente que deveria transmitir conselhos: recomendar exercícios físicos e mentais, dietas vitaminadas, vida social, responsabilidade no trabalho ou mesmo descanso quando necessário. Repensa o conteúdo das recomendações, afinal, certamente, seus companheiros conhecem os mandamentos da vida saudável.

“Ficarei assim calado? Cem anos roubando comida africana, poluindo o planeta, maltratando pessoas em dias ruins para enterrar minha experiência no primeiro derrame!? Talvez algo mais pessoal...” Por um momento, acredita na utilidade de seus conselhos amorosos. “Era conhecido como 'o garanhão da faculdade'. Tivera cinco namoradas e soubera fazê-las apaixonadas o tempo inteiro. Quando acabou, foi por conflito de interesses. Certo, Diego ouvirá minhas histórias e tornar-se-á um exímio conquistador. Ah, estou me precipitando. Os tempos mudaram, de forma a me obrigar a compartilhar essas histórias com Joana. Não, não sei nada sobre conquista de homens. Chega! Não tenho o que declarar”.

Está prestes a resignar-se com a falta de palavras quando se dá conta de seu sucesso profissional. “A fórmula do sucesso. Promoveram-me a vice-presidente da empresa onde trabalhei, em menos de dez anos. É justo compartilhar minha trajetória. No entanto ela não tem nada de surpreendente. Uma mistura de dedicação com oportunidade. Recuso-me a comemorar meus cem anos com clichês”.

“Felicidade. Um clichê tão clichê, que talvez considerem-no inusitado. Bobagem, é mais eficiente ensiná-los a respirar”.

Amargurado, procura ideias nos móveis. “Uma idade heroica, porém vazia. Difícil resumi-la ou descrevê-la com detalhes. Evidentemente, um criado-mudo tem mais a dizer. Posso usá-lo de metáfora e pronunciar coisas sem sentido… Internar-me-ão”.

“Cem anos, idade da idiotice e insignificância? Minha idiotice e minha insignificância, sem dúvida. Por que acredito ser digno de aconselhar? Porque a confluência dos fatos não permitiu a morte de um órgão-alvo em meu corpo idoso; porque nasci numa família abastada, a qual me proporcionou conforto para fingir saber o que fazia; porque acompanhei duas guerras mundiais pelos noticiários. Porque sou arrogante”.

“Garotos”. Essa palavra foi emitida em tom audível assim como as quais se seguiram. “Agradeço sua companhia nesta data aparentemente especial. A fim de retribuí-la, quero compartilhar um pouco dos conhecimentos obtidos ao longo desses anos através de um conselho: NÃO OUÇAM MEUS CONSELHOS”.

E recolocou a faca sobre a mesa.