Figuras: O Diabo

Desde criança, uma outra figura que me prende bastante a atenção e me pôs diversas vezes a pensar é a figura do Diabo. O Diabo, uma figura de tantos nomes, uma figura tão controversa e ambígua. Eu sempre nutri uma certa simpatia pelo Diabo. Talvez por ter sido uma criança criada dentro e fora da religião cristã, eu nunca detestei o Diabo e nem o temi. O Diabo é conhecido, principalmente, por ser o torturador de almas, a entidade encarregada de levar sofrimento eterno aos que viveram como pessoas más e pecadoras. Bom, a partir dessa característica, não há motivo para pensarmos nele como um ser do mal, principalmente depois de ficar sabendo que quem o pôs lá, no Inferno, e lhe deu esse emprego foi ninguém menos do que Deus. A única conclusão à qual eu conseguia chegar é que os dois eram sócios. Bom, o Diabo só calhou de ter uma ocupação um tanto quanto estigmatizada. Ninguém vê um torturador com bons olhos, muito menos um torturador que gosta do que faz. Mas, em contrapartida, defendemos que pecadores e más pessoas devem, sim, ser condenados ao sofrimento eterno. Talvez o Diabo não seja lá tão mau quanto o pintamos. E talvez Deus não seja lá tão bondoso também. Afinal, quem deu ao Diabo o emprego que ele tanto aprecia foi o próprio Deus. No fundo, Deus só não quer sujar as mãos.

Mas eu nunca os levei a sério. Nem a Deus e nem ao Diabo. Como eu disse, fui uma criança criada dentro e fora dessa religião. Meus tios e tias eram e são adeptos, mas meus pais, curiosamente, nunca demonstraram muito interesse por ela. Eu, como previsto, cresci encarando tudo como uma grande brincadeira. A figura do Diabo, porém, nunca deixou de se apresentar envolta de mistério e mal-entendidos.

À medida que eu crescia mais nomes o Diabo ia ganhando. Satã, Lúcifer, Demônio. Tantos nomes para uma só entidade. Mas, mais do que nomes, o Diabo tem um armário com várias imagens diferentes e, não importando o nome, ele se veste com cada uma delas. E com todas ao mesmo tempo. Se eu pudesse entrevistá-lo, minha primeira pergunta seria como ele lida com tantas máscaras e nomes diferentes. E qual seria o seu rosto por baixo de todas as máscaras? E qual seria o nome com o qual ele mais se identifica?

Eis que eu lembro que, de fato, posso entrevistá-lo. Posso fazer melhor, posso arrancar-lhe respostas sem que ele sequer perceba. Acontece que o conheci um dia desses, enquanto ia à rua fazer não me lembro o quê. Era um sujeito elegante. Sempre sorridente. Não era nada extravagante e, apesar da beleza, não se fazia notar muito, pelo contrário, lançava-se através de qualquer lugar, lotado ou vazio, sem se fazer perceber. Agora paro para pensar e me pergunto o motivo de eu tê-lo notado. Não importa. Chamei-o para um café da manhã na minha casa.

Antes de fazer as devidas apresentações, peço que não se espantem. Lembremo-nos que se trata de uma entidade atemporal, que já viveu diversas vidas e sabe como se camuflar no mundo independente da época. E essas palavras não são minhas, são dele… ou dela. O caso é que o Diabo, nessa ocasião, era uma mulher. Seria bastante óbvio se o Diabo se chamasse Diabo. Lúcifer, apesar de um belo nome, anda em desuso e poderia chamar atenção indesejada. Satã e Demônio também estavam completamente fora de questão. Samael era um nome a ser pensado. Não era tão conhecido quanto os anteriores, mas não era exatamente o que o Diabo procurava. Escolher um nome pode ser algo trabalhoso. Devia ser algo que remetesse a alguma das imagens ligadas ao Diabo, mas nada muito nítido. A reputação do Diabo não é das melhores e não fazia parte de sua agenda deixar que seu nome se pusesse entre eles e as pessoas. Por fim ela me explicou o motivo de ter escolhido o nome Vênus. Aparentemente, o Diabo também é um grande apreciador da astronomia.

Vênus é, depois do Sol e da Lua, o corpo celeste mais brilhante. O planeta é conhecido como “estrela da manhã”. Antes que se perguntem que diabos de conexão pode ser feita entre um planeta e o Diabo, lembrem-se que um de seus nomes é Lúcifer. Lúcifer é “o portador da luz”, é o responsável por trazer, todas as manhãs, a luz do dia. É o ponto mais brilhante e, portanto, o último a ser ofuscado e apagado pelo Sol. Entre tantas faces que o Diabo poderia escolher, escolheu a mais bela. Mas tratemo-na por Vênus. No fim das contas, é, inegavelmente, um de seus nomes.

Vênus chegou à minha casa pelas oito da manhã. Fiquei sabendo que acordava cedo todos os dias, talvez descesse do céu para aproveitar o brilho do Sol daqui da Terra e só tornasse ao anoitecer. Tomamos um café um tanto quanto silencioso tendo em vista que o motivo do encontro era conhecer melhor essa figura peculiar que é o Diabo, quero dizer, Vênus. Mas não paramos por aí. Resolvemos continuar a conversa na rua. Ainda era cedo e o dia estava frio e ensolarado. Além do fato de ser o próprio Diabo, Vênus não era nada muito diferente de qualquer ser humano da idade dela. Bom, talvez o extenso conhecimento. Ah, e um ar despreocupado inigualável.

Conversamos sobre alguns de seus nomes e máscaras mais populares. Apesar de cliché, seu nome favorito, de fato, era Lúcifer. Disse que nunca gostou de Satã porque nunca teve nenhuma inimizade com nenhum ser divino, muito menos com Deus. E ao me explicar a origem do nome Diabo, comentou que essa era uma coincidência engraçada, a princípio, e que por mais que tenha se tornado, com o passar do tempo, sinônimo de mentiroso, não desgostava dele de todo. Era um alívio, aliás, que esse tivesse se tornado o nome mais popular. Dos males, o menor. De acordo com ela, Diabo tem sua origem na língua grega e significa “lançado através”. Inicialmente por conta da história de que Deus lançara o Diabo através do Céu em direção ao Inferno, mas depois resolveram que a mentira era algo que se lançava através. Se perguntassem a Vênus, ela diria que mentirosos eram eles que a puseram essa fama.

Em determinado ponto da conversa, consegui, sutilmente, perguntar o que ela achava da imagem do Bafomé. Apresentei-lhe um poema do qual gosto bastante, intitulado “Satã”. A palavra pela qual o soneto se inicia é “capro”, fazendo alusão à forma de bode que a entidade possuiria. Senti-me caminhando em cacos de vidro. Eu não podia perguntar o que ela achava de ser associada a um ser com cabeça e pernas de bode de forma tão direta. Ao menos era o que eu achava. Eu não esperava que a sua resposta se iniciasse com uma risada. Para minha surpresa, o bode era seu animal preferido. Ela já não sabia dizer se a simpatia por esse animal se fez após saber que a associavam ao Bafomé ou se vinha de antes disso. Compreensível. Tantas vidas ela já não vivera, não há memória que retenha esse tipo de detalhe.

Passaram-se umas boas horas enquanto andávamos e conversávamos. Falamos de quase tudo. Até de política! Só não falamos de futebol. Descobri que Vênus estava de férias. De tempos em tempos passava uma temporada na Terra. Parece que no Inferno o tempo passa diferente. Ela podia viver a eternidade tanto cá quanto lá. Já estava na hora do almoço. Vênus e eu nos despedimos. Agora minha simpatia pelo Diabo era justificada. Além de ser uma companhia muito tranquila e agradável, o conhecimento acumulado de tantas vidas e tanto tempo transformava qualquer conversa em uma aula.

Depois de almoçar, deitei-me e apaguei. Quando acordei já estava escuro. Fui à janela e lá estava Vênus ao céu. Nunca mais nos contatamos. Talvez tenha se mudado, talvez esteja sempre ao lado mas passe sempre sem se fazer perceber. Não importa.

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 27/07/2017
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