OUVINDO ANTÔNIO...

Da cama, com um bom amigo `a cabeceira, dos poucos dias que da vida ainda me reserva, falo um pouco de minha existência...

Ainda lembro-me daquelas colunas imensas e roliças da Academia de Belas Artes, onde por muitas vezes, tentei contagiar a outros com a minha paixão.

Foram muitas as viagens que fiz, dentre elas, ainda trago na lembrança as cortinas, lustres, o sabor dos licores servidos no Salon de la Societé de Beaux Arts, em Paris. Com peito em euforia expus minha pintura de nu - "Fantasia". Paisagista apaixonado, atrevi-me a pintar o nu, o gênero, a história, sem no entanto abandonar a paisagem... ela sempre me escolhia e quando percebia já estava de agrados e risadas ofegantes...

O sucesso foi estrondoso no salão, pois me conheciam como o apaixonado pela natureza, que agora se aventurara a pintar coisas obscenas, para aqueles que sempre tentaram me atrelar a um estilo de traço, apenas. Mas eles se esquecem que minha arte é paixão e como vento que sopra aonde quer e quando quer, paixão pode explodir onde e com quem menos se espera.

Pelos idos de 1880, a nobreza dobrou-se ao meu talento, e como o que a nobreza adquiria virava símbolo de requinte - princesa Isabel e o Conde Du, levaram para seus palácios meus quadros. Olha que nem estavam tão aperfeiçoados assim, mas o dinheiro veio em boa hora.

E foi com ele que parti para a Itália e logo estabeleci residência na linda Veneza - paisagem para se contemplar livremente, sem amarras de nenhuma orientação estética de pintura... Mas, um dos meus objetivos era tomar aulas na Academia de Belas Artes, e assim foi.

Aproveitei o tempo e dinheiro que me sobravam, para visitar cidadizinhas dos arredores. Após emoldurar um punhado de minhas telas, as expus na própria Academia e fui agraciado por críticas elogiosas vindas da imprensa veneziana. Agora estava selado pelo reconhecimento da Academia e imprensa internacional... Coitados!... Pensavam que minha paixão se nutria de seus olhares... Não! sempre fui um incomodado, creio que irei morrer assim.

Notoriedade e prestígio eram tudo que um artista franzino e fluminense como eu poderia querer no berço dos mais renomados pintores do século. E os louros vieram, como cargo de professor interino da Academia de Belas Artes, na cadeira de paisagem.

Mas o inverno chegou aos meus louros e a minha paisagem, eles envelheceram, murcharam; secos e mortos ficaram, na extinção da cadeira na reforma curricular, imposta, que atravessou a Academia.

Desiludido e revoltado pela carência de recursos decorrentes da escolha de uma profissão artística – pintor, e açoitado pela rígida orientação estética das Academias de minha época, mergulhei na natureza grandiosa, desprovido do esplendor dos salões da escola oficial e das verbas generosas do Estado. Mas nada podia financiar a natureza sempre pródiga, sempre boa, e sobretudo a grande paixão à minha arte.

No cenário de minha solidão, longe da mentirosa sociedade, longe dos homens e rodeado por todo o silêncio vindo da natureza, silêncio que para mim têm vozes, de todo este desconhecido que não me é estranho, descobri um ambiente que, em tudo preenchia a minha alma, meu silencio. Deus manifestou várias vezes sua indiscutível existência por todos os minúsculos detalhes que presenciei e pelos espantos de beleza que manhã após manhã, a natureza revelava a mim.

Com fome na alma e com alguns outros pintores, que comigo parceria fizeram, nos juntamos no grupo intitulado de "alunos independentes da Escola do Ar Livre". Éramos apaixonados pela paisagem e tudo que fizesse parte dela.

Foi uma época de grandes descobertas, trazidas por cada um de nós, em nossas investigações pessoais, notícias advindas da Europa, principalmente dos renegados pelas Academias de lá. As novidades trazidas e capturadas pela invenção da fotografia e sua fantástica caixa de reprodução de pequenas telas, e que ficavam prontas em horas, comichavam nossos ouvidos e olhos. A luz, estourava por um único e minúsculo orifício, captando a imagem, mas não a alma da paisagem...

Com aulas aperfeiçoei-me em minhas técnicas, perseguido pelo fantasma da falta de recurso, que como sombra insistia em atormentar-me, levando-me a fazer pequenos trabalhos para angariar recursos vitais a minha sobrevivência.

No ateliê em Santa Rosa, pintei uma de minhas encomendas de grande porte artístico e social - o cenário do Teatro Santa Tereza, a alegria era tamanha, por se tratar do principal teatro de minha cidade. Escolhi como tema uma paisagem, é óbvio! O cenário da Praia de Icaraí, uma das marinas mais belas que já contemplei, com suas águas claras e calmas.

A rígida orientação e influência estética européia impregnava os gostos daqueles que iriam financiar a obra, ameaçando-me a representar as ruínas do Coliseu Romano. Que idiotice! Povinho sem escrúpulos esses políticos e banqueiros! Não tinham e nem queriam ter a identidade da nação retratada pela paisagem da cidade. Haveria mal alguma nisso? Só eles, que, como toupeiras, não vislumbravam que a pintura de uma paisagem da cidade seria algo inusitado e portanto arrojado para uma arte que sempre seguiu a chibata européia....

Mas com o apoio de Felice Tati e Barrandon, o pano de boca do Teatro Santa Teresa ganhou os azuis dos mares, os tons amarronzados dos rochedos, o branco das areias de Icaraí. A imprensa e a presença do Imperador e da Imperatriz, elevaram minha paisagem. Eu, Antônio Parreiras estava nos jornais!

Meu prazer estava em pintar a paisagem com tudo que a preenchia. Enormes matagais, índios à beira mar, o trabalhador que do campo vinha, montado em mula, com cestos cheios. Gostava dos imensos morros, da vista da Baía que parecia que iria inundar a cidade a qualquer momento. Até das queimadas, tirava inspiração para minha arte. Indignação pelos senhores da terra, que ambiciosos pelo avanço da população urbana, queimavam alqueires imensos, a fim de construção de novas casas, vilas, fábricas... O progresso maldito e devastador tinha chegado a mim...

Com aqueles “loucos” apaixonados da Academia Grimm, espécie de anarquistas, dissidentes da Academia Imperial, cansados de obedecerem regras rígidas, enredei-me em torno da paixão de pintar. Não importava mais as críticas da academia retrógrada e autoritária, apenas o devaneio de pintar a paixão que explodia em nossa íris.

Nos recantos de Niterói, preenchi meus quadros com marinhas, encostas e vegetação vastíssima! O Canto do Rio, a Praia das Flechas, a Ilha de Boa Viagem, as embarcações de Jurujuba e de seus pescadores foram azeite para que minha lâmpada criadora não se apagasse.

Linda, bela e aconchegante Niterói, tenho sensação do amante que escreve versos enamorados para seu bem querer. E eu te percebo, te pinto, em cada contorno de seus morros, nos suores de suas ondas, no brilho intenso de suas folhagens, no cheiro sedutor de suas muitas praias.

Como dois amantes, eu e a paisagem, nos completávamos, numa odisséia original e inovadora.

A construção desta casa e do ateliê na parte superior do terreno, viraram realidade em 1895,

Com o sucesso obtido e o maldito recurso, que era um mal necessário, em exposição que fizera em São Paulo.

Do presidente Campos Sales, recebi encomenda de vários estilos. Ele escolheu, telas decorativas para o Supremo Tribunal Federal. O tema? Telas com conteúdo histórico. E eu me perguntava: “Que história será que ele quer que eu faça?” Parti para a pesquisa, estudos iconográficos, documentais e algumas viagens. Pretendia ser o mais fiel possível aos rastros da História de meu país.

De São Paulo, vinham arroubos da Semana de Arte Moderna. Na minha cabeça, coberta mais de branco, do que preto, pensava nas notícias dos novos artistas. Porque na verdade, para ser artista, há de se ter a frieza dos executores e o discurso dos sofistas...

Amanhã estarei de partida para a Fazenda Javary, onde tentarão buscar a desejada recuperação de minha saúde, golpeada por essa maldita doença. Minhas mãos trêmulas já estão, mas ainda consigo pintar minha paixão. Os sessenta anos em quase nada me prejudicam, ao contrário, me ajudam a especular algumas sandices... E que todos acreditam que seja mania de velho.

Ao menor gemido, correm a mim e eu num sorriso cansado, ponho a falar das idéias para nova tela. As idéias povoam minha mente, peço a alguém que as escreva, pois podem tomar pé de vento e irem pra longe de mim.

Escreve ainda nessas folhas, bom amigo, que quando morrer ( ainda está longe o tempo), quero que minhas cinzas sejam jogadas no meio da paisagem, perto do meu ateliê, onde sempre estive e sempre vou estar.

- Onde fica? Museu Antônio Parreiras – rua Tiradentes, 47 – Ingá – Niterói. Tel. 719-8728.

- Visitação: 3ª feira à 6ª feira, das 10h às 18h; sábado e domingo das 15h às 18h.

- O Museu criado em 1941, foi casa/atelier do artista, que data do século passado.

- O museu expõe permanente obras do famoso pintor, e dispõe de um projeto educativo para grupos interessados.

* Texto publicado no Almanaque Bandas D'Além: almanaque de Educação Patrimonial, Niterói: PROEX/Fundação Euclides da Cunha, 2003