Figuras: O Contador de Histórias

A realidade é imensamente monótona. É, com toda certeza. Às vezes tenho vontade de sair daqui nem que por uns instantes. Viver aventuras, talvez. Mas algo me diz que nem mesmo moinhos de vento eu conseguiria enfrentar. Minha única saída é imaginar.

Uma figura que bastante me agrada é a do contador de histórias. O ser responsável por ensinar e, ao mesmo tempo, entreter. É uma figura bastante comum em diversas culturas. Tínhamos, por exemplo, na Grécia, o rapsodo. Alguém que contava e cantava histórias épicas a quem se dispusesse a ouvi-lo. Outra imagem fortemente associada ao contar histórias tem um caráter mais tribal. Seria um pajé, um ancião, que, sob a lua, conta histórias ao seu povo ao redor de uma fogueira, moldando o imaginário das pessoas enquanto as encanta e enfeitiça com histórias tão antigas quanto o tempo. Há ainda muitas outras figuras encarregadas dessa arte tão nobre, como bardos, escaldos, trovadores, e todas são fascinantes.

De repente, minha definição de aventura mudou. Talvez eu já não quisesse sair por aí enfrentando moinhos de vento, muito menos criaturas fantásticas. Talvez eu apenas quisesse ter histórias para contar. Através da palavra e da narrativa, dar forma, cor, cheiro e o que mais for preciso a – perdoem a indiscrição, mas como outra vez disse um amigo, já desde agora rasgo o véu – mentiras. Não, não acho, como os antigos egípcios, que minhas palavras tomariam vida, mas talvez fosse prudente, ao descrever uma besta terrível, descrever também uma arma que a pudesse derrotar. Ora, bobagem! Algo assim nunca aconteceria por mais que eu desejasse, e como desejasse…

Certo dia, ainda abraçada a essa ideia, me peguei pensando em como seria um contador de histórias para mim. Como alguém que sempre teve um carinho especial pela alta fantasia, meu contador de histórias se fez de forma que se confundisse com um mago. Para sua infelicidade, ele não fora concebido sozinho. Uma guerra, em algum lugar, eclodia e apenas ele teria o poder de cessá-la. Sua habilidade principal consistia em alterar a realidade conforme narrava, entretanto, fazendo jus à sua imagem, o contador de histórias precisava de ao menos um ouvinte interessado para que pudesse, então, moldar o mundo. Acaso me perguntassem, eu diria que, considerando a magnitude de um poder assim, a troca é mais do que justa.

Em questão de segundos, estava eu lá, ao lado dele. Não era como se eu o tivesse criado, não, eu apenas o conheci. Nada me era sabido além do presente momento. O passado já havia passado e não me era possível reavê-lo, enquanto que o futuro ainda não havia acontecido para que eu pudesse conhecê-lo. Fui nada menos que uma espectadora. Ou melhor dizendo, uma ouvinte. O contador de histórias não me forneceu detalhes, sua preocupação parecia enorme, como se o destino de milhares estivesse em suas mãos. Para alguém que tinha como especialidade a arte da oralidade, ele realmente falava pouco. Mas eu não estava em posição de exigir nada. Eu não era dali. Talvez ele conhecesse precisamente a extensão de seus poderes. Narrar os acontecimentos que ocasionaram numa guerra a uma forasteira como eu poderia acabar por desencadear uma guerra semelhante em meu lugar de origem. Ele não tinha como saber que guerras eram a nossa especialidade.

Compartilhamos nada mais que algumas refeições, fogueiras e céus estrelados. E nisso lhe devo muito. Eu não levava comigo nem comida e nem água, enquanto que ele estava munido fartamente de ambos. Além disso, eu não fazia ideia de como acender uma fogueira, e ele fez parecer tão fácil quanto dizer “fogo”. E o céu era, sem dúvidas, o céu mais belo que eu jamais vi. Um céu repleto de estrelas, estrelas de diversos tamanhos e cores. Não era o céu noturno com o qual eu estava acostumada, um céu fosco e apagado, com estrelas poucas e cansadas. Não, era completamente diferente. Tinha um azul forte e escuro, porém brilhante. Não era como se o vácuo tentasse me sugar, pelo contrário, eu me sentia preenchida, inundada por toda aquela resplandecência. Estávamos num lugar sem nenhum tipo de iluminação artificial, com exceção de nossa pequena fogueira, algo como um deserto, mas não tão inóspito como se imagina. Tudo aquilo que a terra não nos oferecia, daquele céu extraordinário parecia transbordar. Eram tantos pontos cintilantes que eu jamais pensaria em contá-los. As casas decimais de pi pareceriam poucas se comparadas à quantidade de estrelas que me fizeram companhia aquelas noites. Tínhamos pontos reluzentes de norte a sul, leste a oeste. A abóbada celeste era um enorme jogo de ligar os pontos e, dada a infinidade deles, toda e qualquer imagem era possível. Eu poderia ficar aqui descrevendo aquele céu infinitamente e mesmo assim jamais pintaria a magnificência do que vi, afinal, não sou uma contadora de histórias com tamanho talento. Talvez eu também deva aquele céu a ele. Coincidência ou não, eu só percebi o que estava sobre mim quando ele disse como o céu andava belo aqueles tempos.

Eu não sei se ele conseguiu parar a guerra, mas se existe algo que eu sei que o seu poder é capaz de fazer, é de trazer conforto às pessoas, não importando a calamidade que se abata sobre elas. Bom, mestre numa arte tão nobre quanto a de contar histórias, caso ele não consiga salvar seu mundo impedindo uma guerra, talvez o salve de outra forma. Já ouvi outra vez dizerem que as várias formas de arte se desenvolvem mais durante os períodos mais sombrios da humanidade. A princípio parece algo ingênuo, até mesmo tolo, quero dizer, não é como se musicas, peças, quadros ou poemas fossem servir de arma contra os males que nos assolam, certo? De fato, nenhuma dessas coisas causaria mesmo qualquer dano físico a alguém, a menos que se atirasse uma escultura de mármore em direção a uma pessoa. Mas, mais importante que infligir dano, a arte atua como um suporte responsável não só por animar a população e pô-la disposta a reagir, como também por desligá-la de tudo que a fere e amedronta. A arte pode ser o melhor dos escapismos.

Ainda hoje acabo me perguntando quem foi o escapismo de quem. Não sei se o contador de histórias, com seu mundo fantástico e seu céu esplendoroso, me serviu de fuga da monotoneidade da minha vida e das pressões que eu sofria, ou se minha companhia e ignorância acerca dos males daquele mundo o confortaram, o distraíram e tornaram seu fardo um pouco mais leve, mesmo que momentaneamente. Possivelmente, as duas coisas.

Antes que eu pudesse perceber, nos separamos. Não houve tempo nem mesmo para despedidas. De repente estava eu de novo vivendo minha vida, mas, de certa forma, revigorada. Acho que o tempo passa diferentemente quando viajamos assim. Não sei, não lembro quando saí daqui e nem quando cheguei lá, mas senti como se não tivesse gastado mais do que alguns minutos, tendo vivido lá umas boas noites. Quero dizer, já não sei mais. Toda pouca certeza que eu tinha já não parece tão certa assim. As dúvidas até resolvem aparecer em momentos assim. Eu não sabia sequer o nome daquele contador de histórias. Pode não ser nada, pode ser que ele apenas preze o anonimato, o que não era raro entre contadores de história. Mas a maior das questões era o porquê de ele não ter, nas poucas noites que atravessamos juntos, contado nenhuma história, por menor que fosse. Um contador de histórias sem uma história para contar é inacreditável. Eu mesma não acreditaria caso não o tivesse visto com meus próprios olhos. Mas o que são os olhos senão as lentes mais tendenciosas de todas? Além disso, sonhamos todas as noites com os olhos fechados e tudo continua inquestionavelmente real. Acho que chegamos a um impasse. Eu só espero encontrá-lo de novo num momento mais oportuno e, quem sabe, escutar umas boas e longas histórias.

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 27/07/2017
Reeditado em 16/08/2017
Código do texto: T6066656
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