Numa noite

É uma noite serena, o vento esmiúça meus poros enquanto caminho numa calçada solitária. Não há mais ninguém salvo o céu estrelado tateando o horizonte com seu bastão invisível, cada avanço uma luz. Atravesso a rua, continuo na mesma calçada que segue sua direção, não sei onde ela me leva, neste instante serve qualquer lugar. As casas estão fechadas, o silêncio se fecha nelas, o único som que se escuta é o do meu paso. Minhas pernas são duas pêndulas, enquanto uma avança no futuro, a outra se aferra ao pasado. A vida é assim: ir para voltar trazendo histórias. Penso em mim, não penso em mim neste instante, penso nos instantes que sucederam a este, em tudo que aconteceu alí atrás. A reprodução do amor. Acabo de beijar uma mulher, sinto seus lábios nos meus, sinto como seu corpo se levanta sobre os pés para atingir sua boca na minha, o calor de seus braços abraçando a minha cintura, seu cabelo ventilando me rosto com uma aragem embebida de jasmim. O silencio se rompe. Um caminhão de lixo chega distante, o motor avança, para, recolhe o lixo e segue para parar mais adiante. Essa é a rotina do som que me acompanha. O ruido está me alcançando, avanço rápido, quase corro no futuro que se quebra numa bozina, um carro freia, desde sua janela alguém me chama de cego, de louco, pergunta si quero morrer. Sim louco, foi assim que ela me deixou. Sigo pensando naquela mulher que beijei só uma vez. Um instante e já sou louco. Lembro que ao separar nossos lábios ela lançou sua mão no bolso de minha calça. Investigo se deixou algo. Há um papel. Tiro o papel dobrado como uma aposta de cavalos. Abro a aposta. Sinto um frio diferente, não é um frio térmico, é um frio diferente, inexplicável. Avanço nas letras, escuto sua voz: não me esperes, algum dia volto para sempre.

Luis Navarrete
Enviado por Luis Navarrete em 17/08/2007
Código do texto: T610784
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