A Filosofia do Calango

O leitor teimará em não dar crédito à história que lerá a seguir, mas, creia-me ou não, caro leitor, fato é que presenciei o que vai descrito adiante com meus olhos. Estes, que a terra há de comer. Do que se trata? Vamos ao acontecimento.

Andava eu, num belo dia, pela pequena estrada que levava da casa de meu avô à casa do meu tio, no interior de Minas Gerais. Caminhava com o passo calmo, como quem procura encontrar o sentido da vida no ritmo lento em que as pernas se sucedem. Assoviava uma melodia, famosa à época, mas que ninguém mais reconheceria hoje em dia. Era agosto. Fosse abril, eu poderia citar Eliot e dizer que era the cruellest month. Mas era agosto e Eliot seria demasiado solene para uma história tão mundana. Para não deixar mês tão importante sem uma imagem, fica aqui, a título de epíteto, o provérbio: “tardes de agosto, passam de encosto”. Era agosto e era uma tarde, pouco depois do meio-dia. O céu estava limpo e no meio dele brilhava o sol lascivamente.

Num canto da estrada, havia uma pedra que se destacava, alta, em meio à vegetação rasteira daquele lugar. Ao passar por ali, notei que sobre a pedra havia um pequeno animal, inerte, a olhar-me fixamente. Era um calango. “Um calango?”, perguntará o leitor atônito. Sim, um calango. Era assim que chamávamos os lagartos da espécie Tropidurus torquatus naquela região. Mas o que haveria de mais prosaico do que um calango sobre uma pedra num sol de agosto? Pois bem, o seguinte: enquanto eu passava, ainda assoviando a velha melodia, ouvi algo que me fez parar -- pálido de espanto, diria o sonetista -- repentinamente e dedicar toda a minha atenção àquele pequeno ser que jazia sobre pedra mexendo regularmente a cabeça achatada. O que ouvi? Palavras, palavras. E quem as disse? Pasme, incauto leitor: o calango!

“Está um belo dia para ficar ao sol, não acha senhor? ”. Não acreditei a princípio, pensei estar ouvindo coisas. Mas então ele continuou: “sabe, faz tempo que vivo por aqui e esta é a primeira vez que vejo o senhor passar por esta estrada”, disse o réptil, “certamente que não é daqui, não é mesmo? ”. Eu não sábia o que dizer, devo ter empalidecido, pois a seguir, o animal disse: “está tudo bem, senhor? O sol acaso lhe faz mal? ”. Recobrando um pouco as forças, consegui balbuciar: “estou bem, não se preocupe”. “Então, diga-me, o senhor não é daqui? ”. “Não, não sou, vim visitar meu avô e meu tio. Mas como…… como você fala? ”. “Mas por que pergunta isso, senhor? Ora, como eu falo? Assim, do jeito como estou falando agora. Compreendo que possa surpreender-se um pouco com isso, afinal, nós não costumamos falar muito com humanos. Eu às vezes o faço, mas só quando sei que eles não são daqui. Sabe senhor, não me agradaria trocar palavras com a gente provinciana deste lugar. Mas parece-me que o senhor é diferente. Parece vir de longe e tem de fato um semblante um tanto cosmopolita. Por isso pensei em trocar com o senhor algumas palavras, se se dispuser, é claro”. As palavras, com uma articulação impressionante, iam saindo daquela boca rasgada na qual, vez ou outra, insinuava-se uma língua pontiaguda.

Atônito e fascinado, sentei-me na pedra, ao lado daquele singular espécime, disposto a ouvi-lo mais e mais, talvez para convencer a mim mesmo de que não estava a delirar. “O senhor parece tão espantado, está pálido. Começo a duvidar de minha hipótese sobre o cosmopolitismo. Um homem vivido, viajado, não deveria deixar-se abalar por coisa tão pequena. O senhor me faz querer repetir a advertência de Hamlet a Horácio, conhece-a por certo, não? Há mais coisas entre o céu e a terra, etc. Em suma, por que tal surpresa diante de um simples lagarto que fala? ”, perguntou-me. “E conhece Shakespeare…”, redargui boquiaberto. “Talvez o senhor não tenha encontrado por estas bandas muitas pessoas que conhecem bem o Bardo, não é mesmo? ”. “Verdade”, murmurei. “Bem, é uma pena. Talvez tenha procurado nos lugares errados. Há algumas semanas, eu e outros da minha espécie organizamos um encontro no qual passamos todo o fim de semana sobre aquela grande pedra lá no alto, consegue vê-la? ”. Acenei que sim com a cabeça. “Pois bem”, continuou o réptil, “passamos todo o fim de semana ali a discutir Shakespeare. Eu mesmo fiz uma conferência sobre Macbeth que foi muito elogiada por todos. Nós somos bastante civilizados e gostamos muito de assimilar os grandes nomes da cultura humana. Mentiria, no entanto, se dissesse que a sua espécie tem os melhores poetas. Não, entre nós há uma poesia que os humanos jamais poderiam chegar a conceber com sua vã filosofia”.

“Mas então os calangos também têm uma filosofia? ”, perguntei incrédulo, “e que não é vã como a nossa, ainda por cima”. “Sim, temos. E lhe digo, senhor, deixando a modéstia de lado, que a nossa filosofia é muito sofisticada e repleta de nuanças que a enriquecem sobremaneira”. Eu, pasmo, sob aquele forte sol, disse ao pequeno lagarto: “e em que consiste tão rica filosofia, caro calango? ”.

“Depende, senhor”, tornou ele, “temos várias escolas filosóficas entre os da nossa espécie, assim como os humanos. Apenas para lhe dar um exemplo, explicarei brevemente as concepções da escola da qual sou adepto, a escola ‘heliótica’. Bem, deixe-me pensar, por onde começarei? Sim… há um filósofo humano que disse que a filosofia deveria começar sempre com o ‘espanto’. Salvo engano a palavra grega é thaumazein, correto? ”. “Sim”, respondi. “Não foi o Aristóteles? ”. “Sim, ele mesmo”, prosseguiu excitado o calango. “Pois bem, para nós, da escola ‘heliótica’, todos os seres da espécie Tropidurus torquatus nascem com uma forte inclinação para a reflexão filosófica. A plena realização ou não dessa tendência inata, depende, porém, de um fator que, como o espanto para o humano grego, funciona como um gatilho que dá início às cogitações que levem à filosofia. Para nós, ‘helióticos’, esse fator são os banhos de sol, que tomamos diariamente e que nos levam às mais profundas cogitações metafísicas”.

“Não sei se me faço entender. Vocês humanos são capazes de filosofar à sombra. Para nós não, a sombra nos ofusca o pensamento. Nossos pensamentos nascem sempre ao sol, sob seus bons auspícios. Por isso passamos tanto tempo sobre pedras nos dias em que o sol está quente. Pensamos, colocamos a nós mesmos em diálogos imaginários apenas para apurar nossa arte dialética. Contemplamos a realidade de maneira maravilhada. Ao contrário de alguns filósofos humanos, não chegamos nunca à cogitação de que o mundo que vemos, o espaço e o tempo não passariam de um fruto de nossa estrutura cognitiva, guardando pouca ou nenhuma semelhança com a realidade em si. Qualquer um que aventurasse uma tal ideia entre nós seria logo visto, e com razão, como um louco. Claro que, por outro lado, não confundimos ingenuamente a realidade tal qual se nos apresenta com a realidade em si mesma. Defendemos, outrossim, que a realidade enquanto tal, guarda com a realidade por nós experimentada uma relação analógica: ou seja, um amálgama de semelhanças e diferenças. Não podemos conceber um completo divórcio entre experiência e realidade. Moralmente, nós ‘helióticos’ somos bem próximos da escola humana dos ‘estóicos’, sendo assim, somos muito dados à contemplação. Não são poucos entre nós os admiradores do livro das meditações do seu imperador-filósofo, Marco Aurélio. Mas como também acontece com os humanos, em termos de moral, temos outras tantas escolas que se contradizem, se anulam, e raramente chegam a respostas satisfatórias. No fim das contas só nos sobra a religião para impedir que nossa espécie aniquile a si mesma. E temos muitas religiões também… não é somente demasiado humano, é também demasiadamente lagarto. Os ‘helióticos’ são avessos a quaisquer métodos violentos e pacíficos por convicção. Mas entre nós há também os revolucionários, aqueles que gostam de ver sangue derramado, desde que seja sangue alheio, e que prometem o céu ao nosso povo, esquecendo, porém, de acrescentar que, quando o céu vier, serão eles os deuses onipotentes a decidir tudo. ‘Tudo para o bem da nossa espécie, claro’. Como vê, nós também temos, para sua surpresa, uma, ou melhor, muitas filosofias. E devo acrescentar, sob o risco de parecer arrogante, que a nossa filosofia, apesar de estar vivendo um período um pouco estéril, devido à indolência das últimas gerações, ainda não chegou ao estado de degradação da filosofia humana. Algumas sandices nós ainda não dissemos. A vocês, creio, não falta nenhuma”.

E essa foi a última palavra que o calango pronunciou. Depois, foi tudo silêncio. Continuei a olhá-lo curiosamente, mas não emitia mais nenhum som, parecia simplesmente um bicho comum, imerso em seu universo instintivo, incapaz de qualquer articulação inteligente. Ele me olhava, balançava a cabeça e mexia a cauda. De repente, passou inseto voando. O calango encarou-o, soltou sua língua pegajosa e o engoliu. Depois foi embora, com a rapidez de um calango. Talvez só ficasse ali, ao sol, sobre a pedra, esperando o almoço.