Criança

Criança suja andando na chuva. Pegadas curtas deixando historias de abandono. Cabelos loiros balançando ao vento cruel, cortante, entrando por sua pele fina, lancinando seus gestos infantis, fazendo voar a infância e trazendo um homem precoce. Sua face miúda embotada pelo sofrimento de não ter um lar, uma família, um Deus cristão para amparar sua pequenez.

Seu estomago se retorce digerindo suas próprias vísceras em um ato desesperado de sobrevivência. Olhos azuis branquejando, perdendo sua viscosidade de vida, apagando-se a cada passo. E cada esquina é mais uma extensão de uma vida-morte, uma sobrevida ou "sobremorte". A criança-homem segue a se desfazer na água fragmentada, vai desvanecendo, perdendo seus carrinhos, suas fabulas, sua própria dor que passa a ser um estado natural.

Os carros passam, pessoas seguem sua rotina e o menino-homem vai se dissolvendo. Agora são praticamente ossos que se tremem, um esqueleto enfermo andando de forma persistente, buscando um sentido, talvez algo que lhe proteja de cada gota corrosiva. Seu corpo franzino sequer é notado, ele vai se anulando, perdendo sua humanidade. Ele já não vê cores, comer é um luxo inconstante, mas a luta pela sobrevivência permanece.

Não existem mais sonhos, brincadeiras, escola...a criança se perdeu, perdeu o que nunca lhe pertenceu, ela morreu sem ter vivido, teve a pior morte de todas, ninguém lhe vê, ninguém lhe ouve, até seu nome foi esquecido.

A criança-menino-homem foi morta por todos nós. Morreu sem ter morrido, assim como viveu sem nunca ter vivido.

Rodrigo Sanchez
Enviado por Rodrigo Sanchez em 16/10/2017
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