O EX-COMPRADOR DE PEIXE

Marcondes saiu do interior do Rio Grande do Sul, da cidadezinha Planalto, e foi morar na capital Porto Alegre. Levou consigo uma pequena fortuna para montar um negócio.

Passou sua infância no campo, ajudando a juntar vacas, galopando no seu cavalo tordilho, ouvindo causos gauchescos de taperas assombradas pela voz rouca de seu avô que dizia ter peleado na Revolução de 1923 ao lado do General Honório Lemes.

Passou a adolescência na pequena cidade, ajudando o pai rengo a atender um armazém. Vendiam de tudo: sal, açúcar, café, arroz, carnes de gado, ovelha e frago, panelas e chaleiras, pão de casa feito no forno à lenha pela mãe, vendiam salame, doces, queijos, verduras, legumes e utensílios em geral. Um mini-mercado em uma cidade com poucas ruas calçadas.

Com 20 anos resolveu mudar de vida. O irmão menor ficaria no seu lugar, ajudando os pais. Pegou suas economias e embarcou num ônibus com mala e cuia. Na cidade grande se impressionou com a beleza das ruas asfaltadas, largas avenidas, edifícios enormes e belas mulheres maquiadas e bem vestidas. Se hospedou num hotel próximo à estação rodoviária e começou a colocar em prática seus planos.

Em 2 semanas tinha alugado um mini-restaurante montado na avenida Azenha. Trabalhava direto, servindo café, almoço, lanches e janta. Dormia num quarto nos fundos do estabelecimento.

Em 1ano tinha comprado um carro semi-novo e uma TV de 29 polegadas. Tinha descoberto os prazeres das putas mulheres da Avenida Farrapos.

Em 3 anos alugou um apartamento de 1 dormitório no Menino voeus e casou com uma das garçonetes, indo passar sua lua de mel na praia de Tramandaí. No Natal e Ano Novo visitava os pais e irmãos em Planalto.

Marcondes abriu os olhos. Enxergou pessoas estranhas ao seu redor, sua história passou pela mente em poucos segundos, desde a infância no campo até os atuais dias na cidade. Não conseguia mexer as pernas, nem os braços. Apenas os olhos vagavam pelas paredes brancas e rostos estranhos. “ Você está salvo”, disse a voz macia de um negra simpática.

Aos poucos as imagens recentes lhe vinham a mente. Um garoto de toca de lã e barba comprida pedindo cigarros. Outro garoto careca com um revólver na mão lhe pedindo dinheiro.Um homem fardado entrando na cena gritando que era para reagir, empurrando os garotos. Um tiro. Apenas um. Tudo muito rápido. Uma dor nas costas. Tudo apagou de repente.

Não queria morrer. Queria ver a filha crescer, se formar, casar. Aquela viagem ao Rio de Janeiro não deu tempo de fazer. Aquele Grenal não deu tempo de assistir. Aquela casa na beira do bar, não deu tempo de construir.

As mãos não mexiam, as palavras não saiam da boca imóvel. Os dias passavam “ Estou cuidando de tudo, amore”! disse a mulher com voz chorada. “O restaurante tem lotado, como sempre a filha tem ido à escolinha mas sente saudades do pai e chora muito à noite. Teus pais e irmãos te visitaram mas você estava em coma profundo e assim ficou 2 meses”, resumiu sua esposa frente ao olhar assustado de Marcondes.

Não podia fazer nada, apenas refletir. Um jovem homem de 28 anos paralizado por uma aventura de 2 adolescentes drogados, inconseqüentes, que não tinham idade para cumprir pena, mas a lei lhes garantia idade para escolher como cidadão o presidente da República, o governador, o prefeito e os representantes do legislativo. Dois jovens infratores soltos nas ruas para cometerem outros crimes. Cientes da impunidade. Vidas vazias, se projetos e sem espiritualidade.

A noite, o dia, as horas, já não eram percebidas pelo ex-comprador de peixe do restaurante Azenha. A vida, deitado sem poder se mexer, já não valia mais a pena. Queria morrer e chorava ao ver a filha, a mulher, os pais, irmãos e amigos. Nos pensamentos agradecia à Deus pelos anos felizes em que viveu com intensidade e dedicação, e pedia para que sua angústia se encerrasse com a morte.

Lá fora a cidade seguia seu ritmo, seu movimento diário, noturno, sua evolução cotidiana, natural, sem parar. Os homens e mulheres nascendo e morrendo, correndo para atenderem seus compromissos, No campo o gado engordando para virar comida;no mar os peixes nadando e as ondas batendo na praia, eternamente a vida continuada se repetindo aos olhos de Deus e dos humanos.

Marcondes, na cidade grande, encontrou o que queria e o que não queria.

Um milagre! Só um milagre para tornar a vida deste homem melhor. É o que esperavam os familiares e a vítima. E rezavam para Jesus, com fé.

Um dia Marcondes movimentou os dedos. Em 2 meses mexeu as pernas. Em 1 ano caminhou lentamente e pronunciava palavras. Comemorou 10 anos de vida na capital com um culto de agradecimento à Deus por tudo que passou, em companhia doa familiares e amigos. Ele mesmo assou o churrasco na noite da festa em que abriu gratuitamente as portas do restaurante.

A partir daquele dia Marcondes tinha tempo para fazer tudo na vida a não deixava nada para depois. Foi ao Rio de Janeiro, torceu no Grenal para seu time no estádio lotado, construiu uma casa na praia e não comprou mais peixes, voou para Nov York com a esposa e a filha para uma missão evangelizadora, e começou a fazer palestras nas escolas, igrejas e albergues sobre sua experiência de vida e fé.

“Milagres podem existir, se a fé existir em nós”, exclamava Marcondes sorrindo sempre, acreditando sempre!

Conto do livro Outras Vidas, 2010.

VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS
Enviado por VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS em 02/11/2017
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