O Vazio e o Dizer
Miguel Fluente morava numa casa peculiar. Não tinha móveis, utensílios de cozinha, cama, banheiro, sofá, aspirador de pó e microondas.
Ele guardava palavras.
Seu convívio era restrito: Padaria, livraria e puteiro. Falava de forma empolada, clinica e pouco entendida.
No puteiro:
--- Meu pejo me atravanca. Tuas pernas lascivas. Teu sexo flóreo. Corpo definido por linhas tresloucadas do vilipêndio. Atávica de Eva. Deixe-me entrar pelo seu meio, deixe-me ficar no teu imenso.
Na padaria:
--- Entregue-me uma amálgama de farinha e água, cozida na chama do gás em combustão. Vou querer também o óxido de hidrogênio fervido, passado no caco do café.
Na livraria:
--- Encomende para mim as seguintes palavras: Intermitente, pleura, cacto e fleuma.
As últimas palavras de Miguel Fluente foram:
--- “Os covardes morrem muitas vezes antes de sua morte; os valentes morrem uma única vez.”
Existe hoje seu túmulo pouco visitado, nada assíduo. Em sua lápide consta uma frase em Latim. Foram crianças, de maneira a fazer pilheria, ou adultos, de forma a rirem nos botecos, que picharam por cima:
“Aqui jaz Miguel Fluente. Ele não sabia falar”