O MOURINHO

O fato ocorreu na noite de 21 de outubro de 1982. O céu estava mais baixo que o de costume, mas não havia estrelas – foi como se a lua tivesse estendido um véu de prata que deixava a vista ofuscada. O menino chamava-se Ruy Alencastro e tinha nove anos. Seus dois tios – Manoel e Fernando Alencastro – estavam de saída para levar duas sacas de milho até o moinho de pedra que ficava monte adentro. A imagem dos dois, seguindo com as sacas no ombro e segurando os lampiões de querosene, havia há muito tomado conta da imaginação do menino e, naquela noite, conseguira autorização para ir com eles. Já passava das onze. A aldeia parecia fantasma àquela hora. O som que se ouvia era do Paiva, que mantinha a fama de ser o rio mais limpo da Europa. “Quando o rio é limpo corre sempre mais barulhento”, concluiu Ruy. Vez ou outra se ouvia ao longe um uivo. Ele não sabia se era sempre o mesmo lobo ou se eram outros que respondiam do outro lado. Os três seguiram em silêncio pela estradinha de saibro, cada um segurando seu lampião. Ruy notou que o fumo subia e abraçava-lhe dos dedos, marcando manchas escuras e viscosas. Quando voltou o rosto para frente viu que estavam saindo da estrada passando entre os pinheiros e eucaliptos. Tudo a volta tomou um ar sombrio: ele via o chão à sua frente apenas até o limite da luz que levavam. A escuridão nunca encostava, mas ia sempre a alguns passos adiante, empurrada pela chama do querosene. “Parece cena de filme”, pensou. Mais alguns minutos se passaram e Ruy percebeu uma pedra circular enorme na clareira logo em frente. Viu também que um córrego descia ao lado e era ligado à mesma através de uma canaleta de madeira com uma trave impedindo que a água chegasse até um buraco na pedra, desviada de seu curso. Soube imediatamente que era o moinho.

Os tios sentaram sobre as sacas de milho e acenderam um cigarro. Estavam com os ombros doídos. Manoel Alencastro soltou lentamente a fumaça do primeiro trago e perguntou a Ruy: “Já ouviste falar do Calhau dos Mouros?”. O menino já sabia da história que contavam na aldeia. Diziam que, há muito tempo atrás, os mouros haviam se escondido no interior de um calhau – que quer dizer pedra grande – por àqueles montes. Essa pedra, que era parecida com um iglu, tinha em suas paredes internas diversos buracos nos quais, em alguns, podia-se enfiar quase o braço todo. Contavam que os mouros eram pequeninos, de pele muito morena e escondiam-se naqueles buracos. Além disso, eram também malvados e corria a história de que raptavam as crianças que se aproximavam do calhau. Ruy, só para confirmar, respondeu que não e ouviu a mesma história. Ficaram de o levar até o Calhau dos Mouros quando voltassem pra casa, pois não ficava distante do caminho.

Os tios levantaram-se e rasgaram as sacas. Abriram um compartimento na parte superior do moinho e despejaram todo o milho. O moinho parecia um tanque circular ou uma panela de pedra, divida em duas partes: uma fixa – o tanque imenso – e outra móvel – uma tampa do mesmo tamanho que se encaixava perfeitamente por cima. Levantaram a trava de madeira da canaleta e a água do córrego irrompeu pelo orifício lateral do moinho, fazendo com que a tampa começasse a girar e moer os grãos que estavam dentro. O barulho era ensurdecedor. Ruy estava petrificado vendo aquela peça imensa girando e arranhando pedra com pedra, triturando os grãos e fazendo a farinha. Nunca um som o havia marcado tanto, mas aquele fazia tremer o fumo que subia do lampião, aumentando ainda mais a mancha de fumaça que enegrecia seus dedos. Lembrou-se dos mouros. Só conseguiu sair dali porque sentiu a mão pesada de Fernando Alencastro que o puxava. “Esse barulho é o milho gritando socorro”, disse Ruy pra si mesmo. Quando estavam a uma boa distância do moinho o menino viu que o querosene de seu lampião estava acabando e ficou com medo de que no escuro o som parecesse mais alto. Sentiu vontade de chorar, mas lembrou-se de que ainda tinha os mouros. “Se choro duas vezes pode ser que me seque o peito”, e encheu-se de uma coragem arrumada.

Meia noite e um quarto chegaram ao Calhau. Manoel quebrou o silêncio: “É preciso que enfies o braço em um dos buracos que há dentro da pedra, se não quiseres que um mouro te siga o rastro”. Disse ainda: “Nesta noite será posta à prova tua coragem e amanhã serás comentado em toda a aldeia por causa de tua primeira bravura”. Manoel sabia que o ato não seria heróico, mas haveria de ter na aldeia crianças que invejassem e temessem o menino pelo feito. Ruy Alencastro, tanto por respeito aos tios quanto por vaidade, foi se aproximando do calhau lentamente e ao chegar na entrada, que era um buraco no qual só seria possível entrar se fosse agachado, parou. “Agora eu é que sou o milho”, deu-se conta. Fernando se incumbiu de segurar o lampião rente à entrada da pedra e Manoel tomou pra si a função de sentinela. Prometeu avisar caso algum mouro aparecesse do lado de fora. O menino arrastou-se para dentro do calhau sentindo nas mãos e nos joelhos o musgo macio e úmido que lhe grudava na pele. O tempo havia parado e o silêncio pesava. Manoel empurrou o lampião pedra à dentro e Ruy então viu que havia buracos em toda a extensão da parede. O fumo do lampião ardia-lhe os olhos e custava-lhe cada vez mais respirar, mas, antes que ficasse insuportável permanecer ali dentro, tomou coragem e enfiou o braço em um dos buracos acima de sua cabeça. Sentiu algo pegajoso e frio dentro dele e rapidamente, num impulso, ao mesmo tempo em que engolia de volta um grito que lhe subia a garganta, retirou o braço trazendo junto um sardão que assustara e vangloriou-se: “Não gritei como o milho”. Ainda tinha um sorriso em seu rosto quando olhou para suas pernas e braços. O fumo acumulado naquele pouco espaço havia enegrecido todo o seu corpo. Ao ver como estava, tremeu-lhe a voz: “Valha-me Deus! Pareço um mouro!”. Empurrou desesperado o lampião para fora do calhau e saiu em seguida escorregando pelo musgo até o lado de fora. Caiu aos pés de Manoel Alencastro no mesmo instante em que queimou a última gota de querosene do seu lampião.

O que ocorreu desse ponto até chegarem em casa, ninguém sabe ao certo. Conta-se que os tios voltaram orgulhosos com o feito do sobrinho e espalharam o acontecido na manhã seguinte por toda a aldeia. O menino havia demonstrado muita coragem e, com o correr da história, os fatos sendo enaltecidos ao passar de boca em boca, criou-se um pequeno mito em torno de Ruy. Dali em diante ele teve de manter o mito como modo de viver, comprovando-o por seus atos e confirmando a sua bravura em cada gesto que fazia. Perdeu-se prematuramente o menino, nascera antecipadamente um homem. Ruy Alencastro cresceu e se tornou o mais audacioso de toda a aldeia. Ficou conhecido como “Mourinho” e corre em toda a região que nunca o viram chorar.