Fuga

Habitava dentro de mim um desespero, uma necessidade sufocante de caminhar, correr, enfim, ir para onde não sabia, chegar a um lugar longe do meu. O meu carro voluntariamente me conduzia, pois meus olhos e sentidos estavam perdidos, como meu espírito e o asfalto, à frente, era o destino.

Ao sair da Cidade, no início da estrada, um senhor idoso, aparentando seus 80 anos, com os cabelos brancos desarrumados, e vestindo pijama, atravessou a pista a passos atrapalhados, rápidos para sua idade, fugindo “como eu”, obrigando-me a frear para que não o atropelasse. Parei o carro e antes que falasse qualquer coisa, entrou no carro e me pediu para sair rapidamente, para que não o pegassem e, como num filme policial, saí velozmente e pude ver pelo espelho retrovisor, dois homens vestidos de aventais brancos, com as mãos nas cinturas.

Perguntei o que estava acontecendo. Ele não respondeu.

Perguntei onde ele queria ir. Ele não respondeu.

Perguntei o seu nome. Ele não respondeu.

Continuei então pela estrada e o silêncio nos acompanhava; meu pensamento girava sobre a situação, sem saber se estava agindo corretamente, mas, dentro de mim, acreditava que estar ajudando alguém que precisava. No momento, era o que me bastava.

Quebrando o silêncio, o senhor, olhando para o horizonte começou a falar, contar a sua história e o porquê de estar ali:

— As pessoas me acham senil, que meu corpo não vale mais nada, que só atrapalho porque não consigo ter firmeza na mão para comer, e às vezes falo sozinho, minha bexiga não segura mais a urina, que estou sempre com as calças molhadas. Elas têm medo que eu quebre suas coisas. Enfim, sou um peso desnecessário, arquivo de fundo de cartório.

Nada falei e após mais uns minutos de silêncio, o homem continuou a falar:

— Me colocaram em um asilo, onde se encontram muitas pessoas como eu, com muitas histórias para contar, tristezas e alegrias, uma bagagem infinda deste mundo que vivemos, e cada um à sua maneira, está descendo a escada da vida que um dia subiu.

E eu perguntei: E porque fugir?

— Não estou fugindo, filho, estou lutando! Passei minha vida inteira lutando, para saber andar, para poder comer, para conquistar o amor, a família, para protegê-los, independente de como me deixaram hoje; todos os dias foram assim e todos os dias da minha vida serão assim...

— Para onde iremos então?

— Para a liberdade... Tive um sonho nessa madrugada: sonhei com um menino e este menino era eu mesmo quando garoto, e eu mesmo me chamava, vagarosamente ia até onde ele queria me mostrar, era o topo de uma montanha e dela avistava o sol se pondo e a noite nascendo, o céu se dividia nas duas fases, como se fosse um desenho. E perguntei para ele o que significava e ele me respondeu: Seremos livres e a mesma pessoa novamente.

Com uma cara de interrogação, esperei a explicação.

— Sabe filho, entendi muito bem o sonho, o meu menino veio me buscar, a hora de ir chegou, então decidi que, como sempre vivi lutando, que na minha hora eu estivesse pelo mundo, vendo a natureza e livre, livre para estar só e de bem comigo, velho, sozinho e abandonado, eu sei, mas nunca me abandonarei e à razão da minha existência, que é ser feliz.

Resolvi então entrar numa estrada de terra. Parei em uma montanha, sentamos numa pedra e ficamos olhando o horizonte, a hora foi passando, ele contando momentos da sua vida, e eu, calado, ouvindo.

Quando o crepúsculo apontou, o senhor começou a apontar para o nada e disse: Estou indo. Virou então para mim, sorriu, fechou os olhos, deu um suspiro e lentamente encostou a cabeça no meu ombro.

Peguei o caminho de volta para casa e decidi que, da próxima vez que tiver vontade de fugir, será para não me abandonar.

Marcelo Bello de Oliveira

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Marcelo Oliveira
Enviado por Marcelo Oliveira em 21/08/2007
Código do texto: T617572
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