Roda pião

Mancha

Marília, a vida é uma fraqueza, viu? O nosso corpo, essa animação, Marília, tudo é tão droga, viu? Você já viu os castelos de cartas e os castelos de areia? Às vezes sobem tão alto, não é? Puxa, é só a gente dar um sopro, um tapa e... E zás! Eis a construção por terra. O nosso corpo é tão fraco, a vida é tão incerta. Deus o fez com um sopro, meio sopro arrasa tudo, Marília. Você olha nesse espelho esse seu corpo, não é? Bonito, perfeito. Você gosta de si mesma. Os rapazes olham para você, assobiam... É bom, Marília. Muito bom. Só que você não deve esquecer-se disso. Pode não! É tudo incerto, vago, transitório. As certezas sobre o que somos, concentradas, não são mais espessas que a névoa matinal.

Marília, olha a chuva lá fora! Olha pela vidraça. Os respingos nas pernas, frio assim como agora, não são nada bons. Além de tudo, e o preço das lavanderias? Três contos uma calça, vestidos mais um tiquinho. Ah, sim, Marília! Não devemos esquecer a filosofia. Você gosta, não? Pois, como ia falando, a vida é muita insegurança. Uma hora aqui, outra acolá, outra hora em lugar nenhum... Você olhou a chuva. Bafejou na vidraça. Viu de perto a marca que ficou? Passe a mão, Marília! Pode passar! Já pensou se Deus quisesse passar a mão para apagar? Assim, num dia de chuva, Ele sem mais nada para fazer, chateado... Pensou, Marilia? A vida, Marília, não é mais que um bocejo de Deus perto da vidraça, viu? Só ele pensar que o desenho do bocejo ficou feio – só isso, viu - e estamos definitivamente eliminados. Somos um bocejo, só isso.

Brinquedo

- Traz lá, Chico. Traz o pião.

- Já vai. Tava no guarda-louça. Quem será que mexeu? Não viu antes, Fabinho?

-Vi na gaveta da Tina, hoje cedo. Olha lá!

Sala vazia, sem móveis, enceradinha de dar gosto. Vocês já viram, manhãs de junho ou maio, sem a neblina, o céu? Repararam? Geralmente sem nuvens, clarinho! Dá impressão de sala enceradinha com cera azul e que se pode valsar, que está lisinho.

A sala da casa assim. As brincadeiras com o pião, um pião novo, diferente, novidade trazida por algum camelô da Oropa, da França ou da Bahia. O pião correndo, pequenino, girando, piscando luzes de circo... Os meninos alegres, olhos também girando, gozo puro. Bota-se o indicador em cima e lá vai o bichinho pequenino como um rato, espertinho, espertinho... E roda toda a sala, um barulhinho gostoso, os olhos dos meninos, a cabeça dos meninos acompanhando... Ficavam assim a noite inteira, se a Mãe não chamasse. Era já hora de dormir. O pião girou enquanto pôde, esmoreceu, se entregou à gravidade e ficou sozinho.

Chuva. Aqui é morro escuro, Marília, não se vê nada! Nem a miséria. Vasilhas deixam-se encher d’água... . É a goteira que salva, não há encanamentos, não vem água, não vem saúde aqui, Marília. Sei que tem mau cheiro, mas que fazer? Sei, também, que as prateleiras exibem vasilhas destampadas. Que os ratos, as baratas, qualquer coisa pode babujar os alimentos. Mas não se arreceie por isso, Marília, as vasilhas estão vazias há seis semanas. É droga, hein, viu? Água, luz, energia, alegria... Tudo existe, mas tudo está bem longe. Perto, aqui no morro mesmo só miséria. É de dar dó.

Mais dó

- Sô Cabo, inda há pouco, ouviu o senhor um grito?

- Um mulato que mataram na esquina, Camaleão. Coitado, tá que é uma dó!

Deixado

Marília, vai fechar as portas! Os meninos já foram dormir. Ali, me traz aquele pião que o Chico comprou. Parece um menininho que tem alma. Não se pode ficar sozinho, Marília. Ninguém gosta. Deixaram sozinho o tal pião, Marília, traz lá! Tadinho, tá que é uma dó!

(Pitangui, MG, 07/01/1968)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 30/01/2018
Código do texto: T6240589
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