Ficções

Gabriel adorava as aulas de ciência do colégio. Era a sua matéria preferida, e na qual tirava as melhores notas; apesar de que também era bom em todas as outras. Naquele dia, ele assistia atento a aula que falava sobre a teoria quântica dos multiversos.

– Existem duas versões mais famosas para a teoria dos multiversos. – Dizia o professor – Uma é que, além do nosso, existem todos os outros universos possíveis. Cada um com seus eventos específicos; leis da física, química e matemática específicas; formas de vida específicas...

O projetor, que ele usava em algumas aulas, exibia uma imagem com incontáveis pequenos universos circulares, um ao lado do outro.

– É difícil imaginar que, em algum outro universo, dois mais dois é igual a cinco. Ou que, por exemplo, nossa versão em outro universo seja um... lagarto radioativo.

Toda a turma caiu na gargalhada após aquela frase. Suas aulas sempre vinham com algumas piadas.

– Já a outra versão, diz que, a cada decisão que tomamos, dois novos universos são criados. Um para cada uma das decisões.

O projetor passou a exibir uma imagem com um esquema de galhos que se bifurcavam inúmeras vezes.

– É incrível pensar que uma sucessão de decisões é que nos fizeram chegar daqui – ele apontou para um determinado ponto na lateral esquerda da projeção. – Até aqui. – Disse ele, apontando para outro ponto, na lateral direita.

Ele fez uma breve pausa. Então continuou, em tom de brincadeira:

– Por isso, prestem atenção em suas decisões!

Mais uma vez, a turma toda riu. O sinal tocou, e todos saíram correndo para o intervalo.

Gabriel ficou por alguns momentos em sua cadeira, esperando que a correria em direção a porta terminasse. Logo depois, tirou o lanche de sua mochila e saiu vagarosamente.

Sentou-se em um dos bancos do pátio e começou a comer seu sanduíche de queijo com presunto. Prestou atenção nas multidões que se aglomeravam, todos os dias, na fila da cantina. Todos loucos para devorar aqueles lanches que, apesar de saborosos, não eram muito saudáveis: vários tipos de salgados e hambúrgueres; batata frita; refrigerantes de várias marcas e sabores, entre outros.

Seus pais lhe davam algum dinheiro para comer no colégio mas, como não recebia mesada, preferia trazer o lanche de casa e ficar com o dinheiro. Além de detestar aquelas filas, e saber que aquele tipos de comida que era servida poderia lhe fazer mau para a saúde.

Ele pensava na teoria dos multiversos. Tinha certeza que todos aqueles alunos não estavam tomando decisões muito inteligentes. Isso era visível, pois a maioria aparentava estar acima do peso.

Além dos que não prestavam atenção durante a aula, e que se frustravam quando tiravam notas baixas, além de ficarem desesperados quando o ano letivo estava perto de acabar. Muitos deles vinham, antes das provas, pedir orientações para Gabriel, que sempre tentava lhes ajudar.

Quando terminou de comer, ele foi para a biblioteca. Adorava andar pelas prateleiras, olhando a lombada dos livros, tirando um ou outro para ver a capa, e procurando algum cuja história ele poderia gostar.

Vez ou outra, ele pegava algum emprestado. Já havia lido alguns títulos dali, geralmente volumes de poucas páginas, que não cansavam muito, tanto na hora de ler, quanto de segurar durante a leitura. Alguns ele começara a ler, mas desistira, pois tratavam de assuntos muitos complexos para sua pouca idade.

Mesmo assim, ele já havia lido muitos mais livros do que a maioria dos outros alunos.

Um dos volumes lhe chamou a atenção. Estava em uma prateleira alta, e ele teve de ficar na ponta dos pés para que conseguisse alcançar.

Sentou-se em uma das mesas e começou a folhear o livro. O cheiro sempre lhe agradava. Abriu na primeira página, que falava sobre um detetive que estava viajando de trem até uma cidade da Europa. Falava também sobre a neve que caia ao lado de fora, sobre a semblante distraído dos outros passageiros e sobre a umidade que se formava no vidro da janela, quando o detetive respirava perto dela.

Em pouco tempo, Gabriel não estava mais naquela biblioteca, mas sim naquele trem que viajava pela Europa. Totalmente imerso na narrativa. Era isso que ele gostava nos livros – a capacidade que eles tem de nos fazer viajar.

O primeiro sinal tocou, lhe fazendo voltar para a realidade. Levou o livro até a mesa da bibliotecária, para que pudesse pega-lo emprestado. Após o preenchimento das fichas de empréstimo, ele saiu apresado, pois precisava estar na sala novamente antes do segundo sinal.

Logo começou uma das poucas aulas que ele não conseguia prestar atenção: Gramática. Toda aquela ladainha da professora sobre oração subordinada, predicativo do sujeito, verbo transitivo, entre outros, não fazia muito sentido para ele. Antes das provas dessa matéria, ele tentava compreender o assunto em casa. Era a única em que ele sempre passava “arrastado”.

Apesar de não prestar muita atenção, ele também não atrapalhava a aula. Olhava para a professora, mas seus pensamentos estavam sempre muito distantes.

Pensava em como seria agradável quando chegasse em casa, quando pudesse tirar o uniforme, tomar um banho e continuar lendo aquele livro. Pensou também na teoria dos multiversos, que vira na aula anterior. Imaginou-se em outro universo, onde nascera muito rico. Logo depois imaginou-se em outro, onde tinha superpoderes.

Logo um pensamento lhe veio a mente. Será se dentro de cada livro havia um universo diferente? Então pensou que aquilo era uma tolice, que o quê havia nos livros eram apenas letras, palavras, frases e sinais de pontuação. Não devia ser um universo. O fato dele nos levar para outros lugares devia ser uma espécie de ilusão.

Mas, mesmo assim, não estava totalmente convencido de que não existiam universos entre aquelas estantes. Pensou nas vezes em que, durante uma leitura, imaginara um personagem tão “real” quanto os seus colegas de classe.

Então, lhe ocorreu que as pessoas que, quando liam o mesmo livro, tinham experiências de leitura diferentes. Uma pessoa imaginava um personagem de uma certa maneira, outras de outra maneira...

Com isso, pensou que, realmente, não havia um universo dentro daquelas páginas. Saber que tudo é uma grande ilusão era decepcionante.

Mas não poderia ser assim. Logo, tentou buscar algo que sustentasse a sua “vertente” dos multiversos. O que não foi muito difícil, pois imaginou que se, quando lia um livro, a história ocorria dentro de sua cabeça, logo, poderia ser que um pequeno universo surgisse dentro dela, entre os neurônios e células. Tão pequeno para ele, mas incomensurável para os que nele viviam. Tudo é relativo.

Dessa forma, dentro da cabeça do autor do livro havia um pequeno universo, que lhe fazia imaginar toda a história. Ao transferir, através de palavras, essa história para um livro, cada pessoa que lê-lo terá formado, dentro de sua cabeça, um outro universo um pouco semelhante com o primeiro.

Essas pensamentos encheram-lhe de alegria. Começou a sorrir, distraído. Com isso, a professora, que lhe achava um aluno muito atento, pensou que sua aula naquele dia estava muito interessante, e ficou contente com aquilo.

“Se as pessoas pensassem nisso, veriam os livros com muito mais respeito” pensou Gabriel. Pensou em seu passado e em seu futuro, e viu que eles existiam apenas em sua cabeça.

Imaginou que o que ele julgava ser a “realidade” não passava de universo imaginário criado na cabeça de um ser infinitamente superior a ele. Um pensamento de alguns momentos, capaz de criar milhares de anos e incontáveis eventos de seu universo. Além do espaço, o tempo também é relativo.

Imaginou-se como um simples personagem, entre os incontáveis personagens de um livro incomensurável, de uma realidade superior à dele. Ou melhor, apenas parte de um pequeno universo, que fora criado dentro da cabeça de um ser superior, durante a leitura desse livro inconcebível para nós.

Gabriel olhou espantado para sua classe. Olhou através da janela, e viu os prédios, as nuvens no céu e alguns pássaros. Viu que tudo aquilo eram apenas ficções.