QUÂNTICO

O ir e vir dos porta-joias veludíneos salienta a algidez luminosa do balcão de mármore. Spectro mira em esmeraldas, diamantes e numa boa quantidade de ouro e platina acomodados em expositores envidraçados. Observa os adornos cintilantes como fragmentos do cosmos, viajores pelo mar sem fim do infinito, que repousam no fascínio dos olhos náuticos de Carolinne.

A fisionomia de Spectro não se reflete nos espelhos. Imitido na surpresa, ele não avista objetos pessoais. A sala preferida desaparece. O ambiente transforma-se. O artesanal sucumbe a invasão cosmopolita. As paredes crescem e se alargam. Ao seu redor, o vidro temperado, a solidez do concreto e as esquadrias cerradas.

Spectro pode adotar uma atitude resignada, maleável pelo acaso. Prefere o oposto. Parece ser necessário expandir a energia. Arremete-se contra a espessidão das paredes e constata ser possível transpor os obstáculos sem dificuldade.

A princípio, ele não entende se é preciso fugir ou exibir resistência. Chispa por caminhos forjados, desloca-se de um a outro lugar, graças a rapidez que lhe permite esquivar-se do terrível golpe desferido pelo lendário ceifador.

Logo, surgem mais acossadores. São muitos, mas não resistem a efemeridade.

Por fim, sem passaporte e sem malas, Spectro ganha a liberdade. Desce degraus. Sobe viadutos. Emerge para o passeio sob luzes noturnas. Universos se entrecruzam. Os ares enfeitiçados vibram ao curso das esfinges.

Ele aprecia a transposição. Desacompanhado, sem apegos, traz uma sensibilidade incomum. O que de ordinário remanesce é uma trama inventiva, ou um devaneio aparelhado com máquinas incapazes de interpretar o ritmo da vida.

Spectro não sente necessidade de incutir seu ponto de vista ou exibir qualificações. Na lembrança, vez e outra, emerge a discussão acalorada com a mulher a envolver o destino do casarão pertencente a família. Surge o líquido terapêutico introjetado nas veias a arder no peito como aguardente. Também lhe sobrevêm pratos apetitosos, vinhos maduros. Spectro recorda-se de tristezas e vivências felizes. A vitalidade que o anima está acima de todos os desejos, do “savoir- faire”, do júbilo, do ódio, da vingança e da zombaria. Está acima das dores que tripudiam a carne.

Spectro não controla a força que o impede de sossegar o ânimo. Uma espiral o conduz por uma trilha imperecível e silenciosa. Ele vive as frações do tempo no mar infinito da simultaneidade. Impossível despertá-lo.

Transfeitas as coisas, os filhos de Spectro vão residir em Londres. Preservam a lembrança paterna e são felizes.

Em deferência aos tempos venturosos da vida em comum, alguma glosa vem mais suave por parte da mulher: “Spectro foi meio surrealista”, sentencia Carolinne, enquanto o anel preferido faísca no fundo dos seus olhos. Afinal, vencido o maior opositor, ela se vê satisfeita, ao destinar o antigo casarão à especulação imobiliária.

O construtor não perde tempo e nem preserva qualquer memória. Tudo no chão, edifica-se um enorme complexo destinado ao comércio. Mercadorias diversas, roupas, perfumes, esmeraldas, muito ouro e diamante nas vitrines.