Amália

Texto selecionado no Concurso BrasilItália I - 2016 participante da Antologia Vozes Italo-brasileiras lançada no Brasil e em Roma naquele ano.

Amália

Vivia em Levico Terme, no Trento, Norte da Itália. Lá há um lago situado entre a sua moradia e a da irmã, Luiza. A crise, a fome e a falta de perspectivas, as cartas dos que aqui aportaram antes dizendo que na América se puxava o ouro com o rastelo, que se fazia cerca com linguiça tamanha a fartura aqui existente, fizeram com que Plácido, seu marido, ousasse emigrar para o Brasil. Como ficar lá sofrendo, passando necessidade, quando havia aqui um mundo a descobrir e se fartar? Amália decidiu: viria com os filhos juntar-se ao marido que partira antes. A irmã preferiu ficar por lá.

No navio onde embarcara cheia de esperanças e com compatriotas, testemunhou a fome, a falta de higiene, a febre, e a pior de todas as doenças que pode haver num navio: a peste. Viu horrorizada, pessoas mortas serem jogadas ao mar pela impossibilidade de um sepultamento. Jamais vira ou soubera disso antes. Então, em dado momento, um de seus filhos adoeceu, febre intensa. Nesse instante fez uma prece a Deus: se necessário, aceitaria perder todos os filhos quando pisassem em terra firme, mas não queria um, que fosse, servindo de alimento aos peixes. E assim se fez: desembarcou nos idos de 1889 em companhia de uma tia e quatro filhos. Mal chegaram a Santos os filhos adoeceram e morreram.

Amália, arrasada, tomou o trem que a levaria à Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, onde passaria por uma triagem e seria encaminhada à pequena cidade em que passaria a viver e a refazer sua família. Plácido, que havia chegado antes a esperava assim como aos filhos, cuja perda muito o entristeceu. Mas já estava decidido: a mudança se fizera e a vida aqui cobrava muito dos imigrantes. Tinha um caráter e uma força incomuns. O trabalho não o assustava. Dedicou-se à lavoura e logo foi chamado para ser o administrador da fazenda, tal a sua capacidade. Falava francês, alemão e italiano. Tocava o violino, sua paixão. E fumava cachimbo, um cachimbo de porcelana branca, finamente pintado com um delicado cervo, símbolo da caça para o avô.

Levavam sua vida na Fazenda e logo tiveram outros filhos que cresceram e se casaram, continuando a história da família. Os netos então passaram a ser criados pelos avós Plácido e Amália, enquanto os pais iam para a roça.

Trabalharam e derramaram o suor na fazenda de café, suor esse que fertilizou a terra, produzindo de tudo: café, feijão, frutas, verduras.... Ali tudo colhiam, com a permissão dos patrões que lhes deixava cultivar uma parte da terra após o horário de trabalho. Criavam também galinhas e porcos. Dizia minha mãe, neta deles, que quando pediam linguiça (era feita em casa, ficava num varal de arame sobre o fogão a lenha, passando por defumação e se transformava em salame) e o avô se preparava para cortar, marcando com a faca um pedaço de uns seis centímetros no gomo da linguiça, já chegava Amália dizendo que era muito grande. Plácido, então, para provocá-la, cortava um pedaço maior ainda e servia os netos.

Era de minha mãe a tarefa de limpar o velho cachimbo de porcelana decorado com o cervo, tarefa que ela realizava com o maior carinho para o avô. Enquanto o limpava, olhando o cervo, ficava a sonhar com as caçadas que seu avô realizara ainda na Itália.

Filhos e netos com o tempo foram se mudando, buscando novos horizontes, ficando apenas uns poucos deles junto ao casal ancião. Plácido morreu e ficou Amália que, aos 93 anos começou a confundir os fatos. Com sua mente já cansada ia para a beira do lago com o avental repleto de frutas e verduras, misturava os acontecimentos e, julgando estar ainda na Itália junto ao Lago di Levico, dizia que iria levar para a Gigia - Luiza, a irmã que ficara na terra natal e de quem nunca mais soube notícias.

Hoje aqui, em frente ao computador, na pequena cidade onde seus antepassados fincaram raízes, há uma bisneta nostálgica que foi a Levico buscar suas raízes e por um capricho do destino, os parentes estavam viajando de férias. Caminhou pelas vielas, perscrutou entre as janelas, se emocionou ao passar em todos os lugares que imaginou terem sido pisados por seus bisavôs. Imaginou-os ali vivendo, a fome e a falta de trabalho, o frio causado pela neve que se perpetua nas montanhas ao redor. Entrou na Igreja, onde as preces a reconfortaram. Sentiu o corpo envolto por um calor... Não se conteve, deixou rolarem as lágrimas, essas que ainda agora molham seu rosto e alimentam esse amor incrível pelos que não conheceu, mas que lhe deram pais amorosos e honrados, orgulho para a família. Sabe que onde estiverem, estarão recebendo sua gratidão e o orgulho pela família que com tanto amor constituíram.

Cida Micossi
Enviado por Cida Micossi em 15/12/2018
Código do texto: T6527717
Classificação de conteúdo: seguro