Antes do Dilúvio

Após a expulsão do casal, o jardim do Éden ficou inabitável aos humanos e dois anjos guardaram a entrada e a saída. Uma enorme espada fez separação entre eles como sinal do castigo de Deus. O casal saiu perambulando pelos arredores a procura de abrigo e trabalho, porque a partir daquele dia teriam que sobreviver sozinhos.

Noah lembrou-se da ultima vez que seu pai o levou para conhecer, mesmo de longe, o jardim proibido.

- Noah - chamou Namah - temos pouca comida.

- Não se preocupe; vou conseguir mais comida.

Eles se beijaram e Noah saiu rumo ao bosque, um pequeno aglomerado de árvores e arbustos, o lugar insólito herdado pelos seus ancestrais. A pouca chuva que ocorria somente algumas vezes no ano formou um pequeno corrego povoado de pedras pontiagudas. Os pequenos olhos enrugados e a cabeleira abundante e grisalha, os passos cautelosos e a audição bem aguçada Noah notou um pequeno mamífero que bebia água, um filhote de alce. Retirou a flecha da aljava, apontou, prendeu a respiração e atirou no pobre animal, que agonizou até morrer.

- Podia ter sido diferente meu amigo - murmurou Noah retirando a flecha lembrando-se da história do Eden que seu pai havia contado.

Na terra onde o próprio Deus habitou não havia mortes e nem maldade, nem sequer o trabalho arduo de conseguir comida e ferir outros para conseguir o sustento; e isso não se tratava apenas de animais, Noah já havia enfrentado o combate corpo a corpo com estrangeiros nas terras vizinhas. As arvores do Éden situavam-se entre os dois braços dos rios Tigre e Eufrates, e durante todo ano produziam frutos em abundância; mas por que a ganancia do homem de querer sempre a mais do que lhe é oferecido? Foi dito que podiam comer de todos os frutos de todas árvores do jardim, menos de uma, principalmente a que estava no meio do jardim, que proporcionaria o conhecimento do bem e do mal. E de fato, quando Eva e Adão comeram do fruto proibido conheceram o mal, a morte.

No leito de morte, o pai de Noah lhe revelou:

- Sinto que vou morrer e essa sensação foi a pior coisa que inventaram na criação do mundo. Aos poucos meus sentidos vão se perdendo, minha audição diminuindo, meus olhos ficando cegos... Fique com a terra Noah!

- E se eu não conseguir fazer o que senhor fez, meu pai?

- Seja grato a Deus, isso é mais importante.

- Mas Ele não amaldiçoou a terra?

- Lembre-se: Deus tem seus motivos. - e morreu.

Noah pegou o animal colocou nos ombros e voltou para casa. A pequena habitação feita de palha úmida com barro e madeira de acácia era resistente aos pequenos temporais que por vezes desabava naquele lugar. O céu tingiu-se de um tom avermelhado lembrando chuva, o sol se pôs no horizonte mas não caiu nenhum pingo.

- Graças te damos Senhor pelo alimento, pelas boas condições de saúde e de abrigo e pelos nossos familiares.

Depois de abençoar a comida, eles escutaram batidas na porta. A principio estático, Noah se esticou levantou e foi abrir a porta. A mulher e os filhos ficaram a observá-lo.

Não havia ninguém.

Noah ia se voltar para fechar a porta quando percebeu a moita a sua frente se mexer sem causa natural. Não havia vento nem barulho de animal. Seja lá o que fosse, ele achou melhor pegar o bastão, e avançou naquela direção.

- O que foi pai? - perguntou o mais novo curioso.

- É uma menina.

Trouxeram a menina para dentro, ela estava suja e molhada; ao encostar sua pele na dela percebeu imediatamente que estava febril e tinha um corte a altura da cintura.

- Será que ela estava fugindo de alguém? - perguntou a esposa de Noah.

A menina acabou desmaiando.

Desacordada mas consciente, a única coisa que a menina lembrava era o de ter sua casa incendiada por barbaros. Homens rudes com roupas feitas de peles de animais portavam espadas afiadas e lanças que transpassavam o corpo de qualquer um que ficasse no seu caminho.

- Menina?

Ela piscou os olhos.

- Dormiu bem?

Ela apenas balançou a cabeça.

- Parece que a febre passou - disse Namah percebendo a aproximação do marido.

- Isso realmente é uma boa noticia! - Noah sentou-se ao lado da criança. - De onde você veio?

Ela apontou na direção norte.

- Eu fugi!

Noah viu medo em seus olhos; pele alva, olhos de cor mel e frágil ela tinha seus cinco anos de idade.

- Não se preocupe menina; você está conosco agora e está segura! Está com fome?

- Sim.

Mais tarde daquele mesmo dia Noah se isolou, como sempre fazia, longe de casa e da vista da familia, para conversar com o Criador. O local era um campo aberto rodeado por apenas algumas pedras.

- Eis-me aqui Senhor.

Um vento intenso varreu a pouca grama que existia e balançou suas roupas como uma manifestação. Ele pode senti-Lo.

Namah se aproximou do filho mais velho Sem.

- Ela será a nova amiguinha de vocês.

- Ela não tem nome, mamãe? - perguntou Cam, o filho do meio.

- Não sei; por que você não vai perguntar? - incentivou-o.

Ele ficou empolgado. Noah já tinha três filhos quando completou seus cinquenta anos. Jafé, o caçula encantador, sempre queria jogar a franja para trás para poder acompanhar o que seu pai fazia. Cam, o menino pouco timido corria para ajudar o pai na plantação ou a mãe no quintal. Sem era quem cuidava das tarefas de casa tomando o cuidado de não quebrar as poucas louças que tinham.

- Encontramos uma menina e ela não tem para onde ir. Não vejo problema em cuidar dela mas só peço melhores condições e paciencia para cuidar...

- Você tem em abundância Noah - bradou o Criador.

Namah ficou esperando o marido na soleira da porta, na varanda de casa. A noite abafada não interrompia o espetaculo de luzes das estrelas e da lua no céu. Ao se aproximar, o rosto de Noah parecia mais iluminado.

No aniversário de Jafé, a pequena menina corria pela casa, menos timida e mais descontraida esquecia-se do ferimento na cintura. Afastava os cabelos dos olhos para melhor encontrar os outros naquela brincadeira.

- Achei você! - disse animada ao encontrar Sem atrás da cadeira.

Noah colhia trigo junto da esposa quando a plantação encheu-se da risada das crianças fazendo-o sorrir também. A noite anterior tinha chovido generosamente que ainda sorvia orvalho do trigo. A modesta janta encheu os olhos da menina: pães assados com mel, carne e bolo. As mãozinhas ficavam embaixo da mesa e só avançavam depois da oração.

- Da proxima vez é Talita quem vai orar.

Ela deu uma risada negando.

Quando Noah regressou mais tarde encontrou uma vela acesa iluminando o pequeno quarto das crianças; todos dormiam mas ele percebeu um par de olhos o observando.

- Talita? Por que ainda está acordada?

- Eu queria falar com o senhor.

- É mesmo? - ele se aproximou surpreso com a declaração da menina. Sentou na beira da cama - E o que seria?

- Posso chamá-lo de pai?

Noah engasgou.

- Fico com inveja que eles tem a quem chamar de pai e de mãe e eu não...

- Não fique com inveja - explicou - É um sentimento muito forte e perverso. Durma bem minha filha!

Um largo sorriso iluminou Noah na escuridão. Ele cobriu-a com um lençol limpo e olhou os meninos do outro lado que dormiam profundamente. Levantou-se, foi até a porta e apagou a vela.

- O que foi? - perguntou Namah vendo as bochechas contraídas do marido.

- A menina Talita - respondeu com satisfação - perguntando se ela podia me chamar de pai.

- E a resposta foi sim?

- Ela é uma boa menina; como poderia recusar-lhe?

O mês seguinte fora um desastre sem chuva. A plantação não rendia mais, os galhos que caiam causando estalos serviam apenas para alimentar a fogueira e o fogão. Os meninos passaram a ser atormentados por pesadelos e Talita começou a se comportar de maneira rebelde.

- Se continuar assim não vamos sobreviver por mais tempo - disse Namah preocupada.

- Por que Deus permite esses sofrimentos? - murmurou Noah.

- Noah - ela fez uma pausa - Talita quer voltar para a aldeia.

- Pra quê?

- Não sei; talvez queira saber se seus pais estão vivos.

- É perda de tempo - disse ele irritado - A essa altura não sobrou ninguém. Cam. Cam!

- Estou aqui meu pai.

- Onde estão os grãos?

- Só conseguimos isso - respondeu Sem aproximando o cesto quase vazio.

- E onde está sua irmã?

- Não sei.

Quando aprendeu os caminhos que Noah havia mostrado Talita desenvolveu o habito de sair perambulando sozinha até o corrego, onde antigamente o filhote de alce costumava beber água. O individuo atrapalhado poderia se machucar nas pedras pontiagudas.

A menina se agachou para observar um estranho animal na água quando escutou um grito:

- Talita!

Ela correu.

- Está querendo fugir?

- Não pai, eu só estava...

- Vamos para casa!

Naquela noite, Noah demorou mais que o habitual para voltar para casa. Talita que geralmente o esperava não resistiu ao cansaço das brincadeiras durante o dia.

Ela escutou um barulho na porta. Seu pai voltou e passou direto pelo quarto mas algo o fez recuar. Ele adentrou devagar e silenciosamente, sentou a beira da cama e a olhou por um momento. Ele a amava demais para deixá-la. Suspirou.

- Pai?

Noah levou um susto.

- Achei que estivesse dormindo.

- Eu queria voltar na aldeia, eu queria poder encontrar meus pais de novo.

- Você mesmo disse que a aldeia foi incendiada, não restou nada lá para você voltar Talita.

- Mas será se...

- Eles estão mortos.

- Você não sabe se é verdade.

- Você tem apenas oito anos não sabe nada do mundo lá fora.

- Eu sei agora que - ela soluçou - o mundo lá fora é cruel; mas não custa tentar.

- Um esforço inutil Talita!

- Não mate a esperança de alguém principalmente se for só isso que ela tem.

Noah se calou mas vendo que ela não mudaria de opinião tão rápido quis abafar seu entusiasmo.

- Espere mais um pouco.

Não demorou muito para que ela fosse embora, sem dar satisfação ou qualquer agradecimento. Numa madrugada fria e comum, Talita partiu antes que Noah acordasse, e percebendo a ausência da sua menina, ele sentiu uma violenta dor no coração. Namah se aproximou do marido e apertou seu ombro.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 30/12/2018
Código do texto: T6539204
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