Carlito

Carlito

Carlito era poeta. Mais que poeta, Carlito era um poço de poesia. Isento estaria de dúvida quem, por ocasião da hipotética descoberta científica de um possível fluido poético, dissesse que, em Carlito, este jamais cessava de jorrar.

Era comum que jovens amantes, com o intuito de impressionar suas bem-amadas, se dirigissem a Carlito em busca de poemas. A este, bastava que cada amante lhe fornecesse um breve perfil descritivo da musa da vez, para que, em sua mente e de suas mãos, brotassem perfeitos sonetos, doces vilansetes e ternos madrigais.

Nubentes vinham de longe, a fim de que o moço lhes compusesse epitalâmios.

Viúvas recentes não hesitavam em ir ao seu encontro e encomendar a tessitura de ecômios para os seus maridos recém-falecidos.

As proezas poéticas de Carlito o tornaram célebre no pequeno município em que nasceu, cresceu e residia. No entanto, o que tinha de célebre, Carlito tinha de solitário, afinal, as pessoas só o procuravam ou aproximavam-se dele quando queriam versos e bem se sabe que não é sempre que as pessoas querem versos. Era por esta razão que Carlito atirava sobre a poesia toda a culpa pela sua solidão.

Carlito, constantemente, maldizia os versos que fazia e amaldiçoava a arte de fazê-los. Seu maior desejo era, sem sombra de dúvida, ver-se livre daquele ofício, o qual, segundo cria o próprio Carlito, tanta desgraça lhe trazia.

Sabe-se muito bem que um desejo, quando mal administrado, pode representar a porta da perdição. Foi exatamente o que aconteceu a Carlito.

Tanto fermentou no peito do poeta o desejo de se livrar dos versos, que sufocou-lhe os escrúpulos, a ponto de fazê-lo tomar uma decisão que, se estivesse em seu juízo perfeito, ele jamais tomaria.

Tomando, entre as próprias mãos, as rédeas dos seus passos, Carlito não hesitou em marchar cerca de três quilômetros rumo à casa do temido Zasch.

Notório por seus prodígios e pelo seu poder como feiticeiro, Zasch era um ser lendário. Dizia-se que ele tinha duzentos e cinqüenta anos de idade e que sua longevidade se devia a um pacto que fizera com certas forças de origem infernal. Para Carlito, nada disso importava, desde que o feiticeiro o libertasse do mal que lhe consumia a existência, sendo a causa única de sua solidão.

Embora não pudesse ser considerado repulsivo, Zasch era uma figura, no mínimo, estranha.

Dizer que ele era imberbe, por exemplo, não passaria de mero eufemismo. Zasch não possuía nenhum pelo em todo o seu corpo. Nem mesmo cabelos e cílios ele tinha.

Sua vestimenta se resumia a uma longa peça única de tecido rústico, a qual, atada por três cordões também rústicos com três nós cada, cingia-lhe a baixa e esguia compleição da altura do peito até os tornozelos.

A contrastar com sua obscura fama, Zasch ostentava a quem tivesse a oportunidade de vê-lo ou privar de sua intimidade um semblante excessivamente branco, que até seus olhos, bastante claros, de longe, também pareciam brancos.

Carlito chegou-se junto à choupana do feiticeiro. Não foi necessário ao poeta bater palmas ou anunciar-se. Bastou que Carlito se apresentasse próximo à entrada da modesta habitação, para que o morador, de dentro da residência, dissesse:

“Entre, por favor! E queira, por gentileza, sentar-se! Afinal, não é sempre que um humilde servo da Providência tem a honra de receber, em sua casa, um nobre emissário da Beleza!”

Emudecido de espanto, Carlito atendeu ao pedido de Zasch.

Carlito tinha pressa. Por isso, logo que seu olhar cruzou-se com o do velho feiticeiro, começou o moço a dizer-lhe:

“O meu prob...”

“Já sei muito bem qual é o seu problema. Fique tranqüilo! Tentarei resolvê-lo da melhor forma possível. Mas, antes disso, é preciso que você relaxe um pouco e compreenda que seu mal não é maior do que o mal do seu semelhante. Além disso, você também tem de aprender que nada deve justificar o abandono da boa educação. Afinal, a cortesia é o princípio que conduz a qualquer conquista.” – foi deste modo que Zasch, ostentando na voz um tom doce e paternal, respondeu as apressadas palavras de Carlito.

Os conselhos de Zasch passaram incólumes pelos ouvidos de Carlito, que, obcecado pela resolução do seu problema, se pôs em absoluto silêncio, dando margem para que o feiticeiro prosseguisse, dizendo:

“Você é um poeta nato e um homem solitário. Você crê que a poesia é a causa da solidão de que julga padecer e quer que eu cesse seus dons poéticos, pois pensa que, desta forma, darei fim ao seu sofrimento. A Providência me concede a possibilidade de resolver seu problema, no entanto, ela me pede que, antes, eu lhe diga três coisas.”

“Que coisas?” – indagou Carlito, ofegante de curiosidade.

“A primeira é que, na maioria das vezes, a solidão de que pensamos padecer não passa de uma cômoda criação nossa. A segunda é que um dom é algo muito precioso para ser extirpado da personalidade de alguém.” – respondeu Zasch, mantendo na voz um tom calmo e acolhedor.

“E a terceira? Qual é a terceira?” – questionou Carlito em atitude de flagrante irritação.

“A terceira? Que terceira?” – interrogou Zasch entre risos.”

“O senhor me disse que tinha três coisas a me falar. Apenas duas foram ditas. Estou à espera da terceira.” – foram tais sentenças proferidas em tom de extrema desconfiança. Afinal, para Carlito, era inconcebível que alguém que, há pouco, havia adivinhado seu mal sem que qualquer coisa lhe houvesse sido dita pudesse esquecer-se de algo que tinha acabado de dizer.

Zasch olhou profundamente os olhos de Carlito, tal como se lhe esquadrinhasse os obscuros meandros da personalidade em busca de um traço específico e singular.

Carlito sentiu-se intimamente intimidado e visivelmente incomodado por aquele olhar, que, sem nenhuma permissão, perscrutava-lhe a mente e revelava-lhe a alma.

Mesmo assim, Zasch prosseguiu, dizendo:

“A terceira, meu caro, não é exatamente algo que eu tenha a lhe dizer, mas uma questão, que a Providência me obriga a lhe fazer.”

A irritação e a desconfiança tornaram-se cada vez mais flagrantes nos gestos do poeta, que, num rompante de inegável rispidez, indagou:

“E que pergunta é essa, afinal?”

Conservando-se sereno, Zasch respirou um longo hausto e retomou a palavra pausadamente, respondendo:

“Tal como você, nasci com um dom e o exerço desde criança. Desde criança, sou obrigado a conviver com as muitas fantasias que se tecem a meu respeito e com a execração pública. Apesar disso, jamais me passou pelo pensamento a ideia de pedir a alguém que arrancasse tal dom do meu espírito. Simplesmente porque creio que nasci para ajudar meus semelhantes através do talento natural que a Providência me deu.

Você se julga solitário, embora não sofra a execração que eu sofro. Não acha que, se lhe for tirada a poesia, sua vida ficará ainda mais solitária?”

Carlito estava cada vez mais impaciente. Seu desejo, ao se deslocar a encontro de Zasch, era rogar-lhe que o auxiliasse. Ouvir conselhos, sermões e questionamentos não estava nos seus planos.

Lendo os sinais que se desenhavam na enfadada face do poeta, Zasch pediu-lhe que mentalizasse, com toda a força da sua vontade, as percepções poéticas sendo expelidas de seu ser.

Findo um prazo de cerca de cinco minutos, durante o qual se ouviram sair dos lábios do feiticeiro vocábulos de natureza ininteligível, Zasch entregou a Carlito um pequeno saco de linho, contendo, em seu interior, uma substância fluídica de feição esponjosa.

Tendo isto feito, disse o feiticeiro ao poeta:

“Dentro deste pequeno saco de linho, estão as percepções poéticas que acabei de extrair do seu ser. Se, de fato, quiser se livrar delas, você deverá queimá-las em uma fogueira preparada para este fim numa noite de luar. Mas, se, por sua vez, você pensar melhor e desistir de tal intuito, bastará que você abra o saco e lance seu conteúdo a favor do vento numa noite de Lua Nova. Deste modo, o vento se sentirá presenteado e lhe retribuirá o obséquio devolvendo ao seu ser as percepções poéticas com que fora brindado.”

A reação de Carlito às recomendações de Zasch foi imediata. Após dar um beijo de gratidão em cada uma das mãos do feiticeiro, o poeta partiu, em desabalada carreira, rumo à sua casa.

O tempo passou. Veio a Lua Cheia, e, com ela, a noite de luar. Todavia, as palavras proferidas por Zasch haviam criado eco no coração de Carlito.

Assim, o poeta esperou pacientemente pela Lua Nova e, depois de abrir com cuidado o pequeno saco de linho que recebera do feiticeiro, despejou-lhe o conteúdo a favor do vento.

O dia seguinte rendeu-lhe uma coroa inteira de sonetos.

Carlito estava de volta à poesia.

Não é de se admirar que a coroa de sonetos composta por Carlito após seu arrependimento acabou parando nas mãos, brilhando nos olhos e chegando à alma de uma bela moça, a qual, três anos depois, veio a desposar o poeta?

Hebane Lucácius