O quarto branco

As luzes se acenderam. Afastei o lençol que me cobria e sentei na cama. Inspirei profundamente e exalei o ar sonoramente de meus pulmões. O cansaço me atacava, mesmo após dormir tantas horas (às 8 horas necessárias); talvez seja um outro tipo de cansaço, do tipo que não pode ser vencido pelas horas de sono da noite ou os cochilos da tarde.

O meu quarto é branco e pequeno. Tão pequeno que a minha cama se encaixava perfeitamente entre as paredes opostas, quase como se elas houvessem sido construídas a partir das dimensões da cama. Ao lado direito do portal (não há portas onde moro, com a exceção de uma), que estava milimetricamente disposta no centro do quarto à minha frente, havia um guarda-roupas branco, do lado esquerdo uma pequena escrivaninha branca, simples, com uma máquina de escrever branca em cima com uma única folha de papel ao lado, apenas esperando para ser utilizada.

Fui até a escrivaninha. Olhei para a folha e estiquei a mão para pegá-la. Deveria coloca-la na máquina e digitar algumas palavras, mas eu não consegui. Eu queria, mas estava cansado demais.

Amanhã. Menti.

Girei nos calcanhares e fui em direção ao guarda-roupa. Abri ambas as portas e peguei um dos 5 conjuntos de roupas brancas que eu tinha. Saí do quarto e observei a cadeira branca no centro da sala de estar (se é que uma sala com apenas um móvel pode ser chamado assim). À frente dela a única porta de toda a sua moradia. Uma porta escura de maçaneta escura. Olhei da cadeira para ela e esperei. Na verdade, eu desejei que ela abrisse. Eu podia sentir o calor em meu estômago subir ao meu peito enquanto eu inconscientemente prendia minha respiração.

Por fim, desisti de esperar.

De olhos marejados virei à esquerda e no centro daquele vazio, havia mais um portal para onde me dirigi. Ao lado esquerdo dele havia um cabide aonde eu pendurei a roupa que peguei. Despi-me ali mesmo e entrei. Fiz minhas necessidades e banhei-me. A água estava fria. Pergunto-me o que será que deve ter acontecido do lado de lá.

Desliguei a torneira. O banho já havia acabado a algum tempo, mas meu corpo persistiu em ficar embaixo da água corrente com seu frio reconfortante. Era como se eu fosse abraçado por ela. Um abraço possessivo. Um abraço egoísta. Um abraço que dizia:

Meu.

Enxuguei-me na toalha e dirigi-me para fora do banheiro, aonde vesti-me novamente. Peguei as roupas sujas em um bolo e depositei no compartimento que ficava do lado direito do portal. Fechei a portinhola e ouvi um som de sucção. Satisfeito (tanto quanto a rotina pode te deixar) fui para o outro lado das minhas acomodações.

A cozinha era simples. Alguns armários, cada qual com um único objeto necessário para o preparo das minhas refeições. Abri um deles e peguei uma caixa de cereal. Abri um outro e peguei uma tigela. Abri uma gaveta e peguei uma colher. Abri a geladeira e peguei uma garrafa de leite cheia. Joguei o leite na tigela e em seguida o cereal. Coloquei a garrafa com metade do leite na geladeira e a caixa de cereal, também pela metade, exatamente no armário em que a encontrei. Fui para a sala de estar e sentei na cadeira. Comi o meu cereal olhando para a porta. Esperando. Meus olhos fixos na maçaneta, esperando qualquer leve movimento, mas não houve nenhum. Terminei o meu café da manhã e lavei o talher e a tigela, coloquei ambos em seus devidos lugares após secá-los devidamente e depois voltei para a cadeira e fiquei esperando, esperando, e continuei esperando mais um pouco.

Então música começou a tocar. Uma melodia triste com uma letra levemente familiar. Eu sorri naquele momento. Não pela letra, nem pela música que tocava naquela sala branca, mas porque os músculos do meu rosto o fizeram. Eram as lembranças que aquela música me trazia, que me levavam a algum lugar, mesmo que este lugar não fosse lugar algum. Sorri porque era preciso. Sorri porque a música me levou a isso, mesmo que eu não tivesse consciência disso.

Levantei da cadeira e me abracei. Aquela canção havia acabado e dado lugar a outra, mas não me impediu de dançar. De um lado para o outro, de lá para cá, eu dancei. Abraçado e envolto em mim mesmo eu dancei. E enquanto as músicas iam e vinham eu continuei dançando, enquanto minhas pernas esquentavam devido ao movimento e meu rosto, aconchegado em meus braços, desfazia-se em grandes lágrimas transparentes. As luzes apagaram, mas continuei dançando ao som daquelas melodias tristes, daquelas letras que socavam com minhas verdades, das canções que perfuravam o meu peito e reverberavam em minha alma.

E por horas eu dancei. Até que as luzes voltaram e as canções morreram. Sentei-me novamente na cadeira a observar e orar para que a porta abrisse e me mostrasse o seu conteúdo inexplorável. A porta não abriu, então eu decidi tomar um outro banho e deixar-me levar mais uma vez pelos gélidos dedos da água corrente e seu abraço egoístico e confortável. Após, voltei ao meu quarto, sentei na cama e observei mais uma vez a porta, mas nada aconteceu. Nem mesmo um leve torcer da maçaneta escura. As luzes novamente se apagaram depois de um tempo. Deitei e me deixei levar pela sombria vastidão do mundo dos sonhos.

As luzes se acenderam. Afastei o lençol que me cobria e sentei na cama. Inspirei profundamente e exalei o ar sonoramente de meus pulmões. O cansaço me atacava, mesmo após dormir tantas horas (às 8 horas necessárias); talvez seja um outro tipo de cansaço, do tipo que não pode ser vencido pelas horas de sono da noite ou os cochilos da tarde.

Repeti o processo de minha rotina novamente. Fiz minhas necessidades, banhei-me, coloquei a roupa suja no compartimento, comi (banana cortada em fatias com mel de abelha, canela e aveia com um suco de laranja para ajudar a descer tudo), sentei-me diante da porta e esperei. Dancei e dancei no escuro (as músicas eram as mesmas), banhei-me novamente e voltei a dormir.

No outro dia, mais uma vez eu acordei, fiz minhas necessidades, banhei-me, comi, sentei e esperei, dancei e dancei no escuro, banhei-me mais uma vez e voltei a dormir.

Mais um dia, mais uma vez a mesma rotina. E no outro dia mais uma vez e no seguinte também. Dormia e dormia, mas a cada dia que se passava mais cansado eu ficava. Mais vazio eu me sentia. Então um dia eu acordei em fúria, peguei o papel e coloquei na máquina de escrever o mais rápido que eu pude antes que eu desistisse e enquanto eu gritava e meus olhos lacrimejavam, digitei:

Por favor alguém me ajude!!!!!

Puxei o papel, corri até a porta e parei diante dela. Parecia haver uma força magnética que me empurrava para longe, mas também me atraia para perto, vinda dela. Estremeci. Gritei. Avancei e recuei. Por fim desisti, amassei o papel e joguei longe. Fui ao banheiro fiz minhas necessidades e fui ao banho. Atirei-me com força na parede, quebrei o nariz e desmaiei, mas não antes de sentir o sangue quente fluir.

Acordei.

Sentei-me na cama e toquei em meu nariz e ele estava intacto. Chorei copiosamente antes de levantar, fazer minhas necessidades, banhar-me (não havia sangue no banheiro), fazer minha refeição, sentar, observar, dançar e dançar no escuro (as músicas haviam mudado), banhar-me mais uma vez e dormir. Eu estava preso em um loop e quando acordei para mais um dia eu gritei por socorro à plenos pulmões como já havia feito há muito tempo atrás, no dia em que eu havia sido posto neste lugar, no quarto branco.

Uma outra folha em branco havia substituído à anterior e novamente tomei coragem para escrever, desta vez com mais calma. Eis o que escrevi:

Para você,

Por mim.

Não sei quanto tempo faz que estou aqui. Semanas? Meses? Anos? Eu não sei. Talvez eu nem deseje saber, pois o que aconteceu, aconteceu. Você me pôs aqui e tudo o que eu queria era ter a possibilidade de te conhecer melhor, de te entender melhor, de ter um laço contigo. Eu gostaria de ter uma amizade, um romance, um amor contigo. Era tudo o que eu desejava.

Você me rejeitou. Me trancou aqui e esqueceu de mim...

Eu recordo com carinho de nossas risadas quando crianças, de nossas brincadeiras, lembro quando perdemos o primeiro dente, da dor do mertiolate em nosso joelho ralado, o dia em que ganhamos os presentes que desejávamos do papai Noel, do nosso primeiro e inocente beijo com cinco anos... mas crescemos e por algum motivo você decidiu me afastar, me jogar aqui dentro e esquecer o quão lindo as coisas podem ser, o quão lindo é a simplicidade da felicidade, quão reconfortante e saudável é chorar nos dias tristes, mas lutar e levantar em seguida...

Você esqueceu de tudo isso. Você esqueceu de nós. Você esqueceu da simplicidade do sentir e agora busca complexar tudo o que faz! Tranca-se em um quarto, afasta os entes queridos, odeia a si mesmo e suas decisões...

Você cresceu e ao invés de levar-me contigo, afastou-me e me deixou aqui. Neste quarto branco.

Lembre-se.

Por favor, lembre-se de nós...

Com carinho,

Eu.

Respirei fundo. Dobrei gentilmente o papel e fui a passos largos até a porta escura. Estiquei a mão decidido a pôr um fim naquilo tudo. Segurei a maçaneta negra (um calor emanava dela), girei-a para a direita e puxei com força. Atrás da porta havia um espelho. Refletia a minha imagem. Eu tinha 9 anos de idade e vestia as minhas roupas favoritas. E por longos segundos, talvez 1 minuto, eu pude me ver e senti-me feliz por isso. O reflexo distorceu logo após e mostrou-me com a minha idade atual. Eu entreguei o papel ao reflexo que pegou e leu. O meu reflexo olhou direto em meus olhos e eu pude ver o quão mal estava por me trancar no quarto branco em total solidão.

A porta fechou bruscamente.

Fiquei chocado por um momento. Logo o choque foi substituído por medo e do medo por desespero. Gritei e soquei a porta aos berros e lágrimas. E durante o que pareceram horas foi o que fiz...

Até que...

Uma música começou a soar novamente. Uma música que escutávamos quando crianças, quando a opinião dos outros não importava, quando o mundo era simples e sorrir era nosso objetivo! Quando dançar ridiculamente era divertido e não vergonhoso, quando errar era apenas uma tentativa e não uma falha, quando a amizade era forte e os laços irrompíveis!

A porta antes negra tornou-se branca, mas antes que eu pudesse admirá-la ela tornou-se luz e esvaneceu, dando lugar ao meu eu de hoje. Corri e saltei em seus braços. Então o quarto branco se iluminou

.

E logo depois esvaneceu, mas a música continuou.

Assim como o som de nossas risadas.

Anderson C Alves
Enviado por Anderson C Alves em 06/05/2019
Reeditado em 07/05/2019
Código do texto: T6640778
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