Um Desfalque

– Willian, para de ler desgraça nesse jornal!

– Hum, hum…

– Já lavou a louça?

– Já… – O rapaz responde com outro grunhido.

A senhora desacelera e estica o pescoço revelando o rosto antes ocultado pela pilha de roupas que traz nos braços. E ele, mesmo sem se virar ou sequer desviar os olhos da página, sabe que a avó franziria as sobrancelhas e lhe lançaria um olhar ameaçador antes de adotar um tom mais severo. Então, antecipando qualquer coisa que ela possa dizer, Willian complementa em claro e bom tom – a velha é um pouco surda:

– Já vou, vó!

Chega da escola. Joga a mochila num canto. Esquenta o almoço e, ao ritmo da fome, engole o feijão com arroz e uma estreita variação de legumes refogados, linguiça, carne de panela ou, mais comumente, um ovo que ele mesmo frita. Após então, procura os jornais vencidos que a mãe traz dos escritórios que faxina à noite e, antes de lavar a louça ou fazer as demais tarefas domésticas que ela lhe deixa por escrito, estira-se no único e carcomido sofá da casa e lê as seções preferidas em cada um dos periódicos. Só então Will checa a lição de casa, estuda para uma eventual prova ou, mais frequentemente, põe calção e chuteiras e sai para a rua.

A imprensa parece cada vez mais esperançosa, ou talvez apenas reflita o estado de espírito da nação que, num sutil toque de bico, vai da desconfiança ao otimismo, da apatia ao êxtase. Novamente ele. Enérgico. Agudo. Letal. Salvando a safra. Honrando a amarelinha. Resolvendo o jogo. E pensar que quase não o convocaram. Enquanto outros meninos se contentam com um álbum de figurinhas, Will retém a História nos cadernos de esportes caprichosamente acondicionados em sacos plásticos e estocados na despensa que, de outra forma, estaria vazia.

Não fosse um leitor minucioso e hoje uma notícia importante, porém sem qualquer destaque, lhe passaria em branco. Umas poucas linhas sobre o homem do qual até então ele e os demais garotos do bairro não sabiam sequer o nome, mas a quem respeitavam e estimavam como o pai que ele e alguns outros não tinham. O personagem da notícia que agora lhe furta às obrigações domésticas era ali conhecido apenas por “Professor”.

Segundo a gazeta local – incrédulo, Will relê a notícia várias vezes -, Pascoal Carrão jogara em alguns times pequenos país afora até atingir o ápice da carreira como campeão estadual em 79. Deixou de jogar profissionalmente poucos anos depois por problema coronário e, desde então, fazia trabalho voluntário com adolescentes em comunidades carentes, até ser encontrado em casa, no fim da tarde de ontem, pelo zelador do prédio em que residia. Morto por um infarto.

Amuado, o garoto abandona a sessão de esportes e passa a ler as sinopses dos filmes exibidos nos cinemas, aos quais ele nunca vai. Deixar-se-ia abater pela angústia, mas o dia em questão é quarta-feira e às quartas a avó Mariinha vem passar as roupas – única tarefa com a qual ele não é capaz de ajudar a mãe. Para compensá-la, Rose incumbe o filho de ir às compras com a avó e, ainda que dificilmente acompanhe a idosa nesse raro entretenimento, vez ou outra compra para ela algumas cartelas do bingo da igreja.

Will imaginava que teria mais alguns minutos até que a avó acabasse de organizar camisetas, calças, cuecas, bermudas e meias nos respectivos compartimentos, cabides e gavetas. Porém, ela logo anuncia do quintal:

– Willian, chegou ajuda para enxugar a louça!

Canhoto não se intimida com a sugestão da senhorinha, vai abrindo o portão, ruminando um boa tarde, metendo a cara casa adentro.

– E aí, Will, já está sabendo? – Pergunta, um tanto cauteloso.

– Tô. – O anfitrião responde apático e, sem fechar a torneira, aponta-lhe o jornal sobre a mesa.

Enquanto Will lava a louça, Canhoto se senta e procura a notícia. Assim que a encontra, põe-se a ler a matéria em voz alta. Imagina ler bem e é sempre voluntário para as leituras na classe, entretanto, da pia, tal qual na escola, baixinho, Will lhe corrige as pontuações e sílabas tônicas.

Nesse ínterim, vão chegando o zagueiro Gustavo, o meia Sabino, o ponta Mundinho, o lateral Rosado… E a cada nova visita inusitada, o volante Canhoto reinicia a leitura em voz alta. E o time vai se amontoando na cozinha, ao redor dele, infiltrando-se entre os outros, esticando os olhos pro jornal. Por fim, acedem o goleiro Artur e uma garota de chuteiras para a qual os demais olham desconfiados para ignorar logo a seguir.

A Will não surpreende que tenham vindo, é ele quem mora mais perto do centro de treinamentos. Os rapazes decerto chegaram para o treino, receberam a fúnebre notícia dalgum funcionário do Clube e correram logo pra casa dele, imaginando portar uma terrível novidade. “E aí, já estão sabendo?” Outro recém-chegado pergunta, na forma de cumprimento. E é o bastante para que Gelson, o Canhoto, reinicie a leitura.

– Pô! Que tal alguém me ajudar enxugando a louça? – A certa altura Willian brada para os colegas folgados.

– Não sabemos onde sua mãe guarda cada coisa… – Resmunga alguém, enquanto os demais apenas fingem não ouvir.

Por fim, a menina de chuteiras – então já descalça -, vem em seu auxílio. Sem perguntar nada, vai depositando na mesa mesmo as louças que enxuga. A princípio, Will fica satisfeito, aquilo já seria de grande ajuda. Ela traz presos na nuca os cabelos amendoados e nas faces, rubras de sol, a timidez de moça sozinha entre rapazes. Às vezes ri contidamente das bobagens deles, acentuando mesmo assim uma covinha em seu queixo. Todavia, a abstração de Will dura apenas até perceber que, tal qual sua mãe, antes de enxugar o menor dos talheres, a garota o avalia minunciosamente e, a cada três, devolve pelo menos uma peça à pia, reprovando o seu trabalho.

– E agora, acabou-se o futeba? – Alguém pergunta, aproveitando uma pausa do Canhoto.

– O Clube de certo vai pôr alguém no lugar do Professor. – Will responde, escapando de si mesmo.

– Pode ser, mas quando? Hoje não tinha ninguém… – Acrescenta Sabino.

– Muito cedo ainda, né gênio? O Professor mal bateu as botas. – Replica Artur.

– O que é infarto? – Quer saber Mundinho, e Willian, que recentemente havia lido matéria de três páginas sobre a maior causa de morte natural no país, tem um ímpeto de palestrar sobre o assunto, mas olha para a menina e resolve ficar quieto.

– Gente, vamos continuar treinando no nosso horário de sempre, mesmo sem o Professor. Acho que é o que ele gostaria. – Ele proclama com a autoridade que o local lhe confere.

– Tá, mas e o campeonato? Para participar a gente precisa de um técnico… – Argumenta Sabino.

– Cara, campeonato agora, só depois da Copa. Se o Clube não mandar ninguém, a gente dá um jeito, mas antes, penso que todos devemos ir ao enterro amanhã. – Declara Will.

– Eu não gosto de enterros… – Alguém resmunga.

– Vai sim! O Will tá certo. Todos nós vamos! Por respeito, por gratidão…

– Decreta Gustavo, com o autoritarismo típico de valentão da turma. Porém, corretíssimo dessa vez.

Canhoto, que agora explora o horóscopo e já não lê em voz alta, se dá conta do adiantado das horas ao procurar o interruptor para acender a lâmpada na cozinha.

– Galera, preciso ir embora. – Anuncia Gelson.

– Eu também, vou nessa. – Emenda Mundinho.

– Tchau, Will! – Diz-lhe a menina, terminado de enxugar a louça.

E pouco após todos se irem, também a avó Mariinha se despede e a melancolia retorna.

O Clube cede três ônibus que partem bem cedo do CT, com parada na praça em frente à escola, e as classes dos últimos anos resultam praticamente vazias nessa manhã, pois mesmo os que não sabem sequer de quem é o enterro, preferem matar aula e passear de graça. A menina embarca na pracinha, justamente no ônibus em que Will está. De vestidinho preto. Calçando sandálias. Os cabelos soltos e uma mecha que teima em lhe escorrer sobre os olhos. Will não a reconhece até que se poste em frente a ele. Parecendo mais à vontade, a garota sorri e pede licença para chegar ao assento na janela. Até para renegar o próprio deslumbre, ele vai logo puxando conversa: “Não acredito que você jogue mesmo bola…”. Ela não toma as palavras como provocação, responde apenas que um dia talvez ele veja, deixando-o ainda mais intrigado. Conversam bastante, mas apenas bem mais tarde Will se dará conta de que basicamente só falaram de si. Do pouco que ela lhe deixa saber, descobre que também gosta de leituras, porém não de jornais, mas de livros que empresta na biblioteca. Adora Charles Dickens – ele assente sorrindo, mesmo sem saber quem é – e Monteiro Lobato, e ri um bocado, quando ele, já lhe parecendo tão esperto, deixa escapar desconhecer que algumas histórias existiam nos livros, muitos antes de passarem na tevê.

No cemitério, ela lhe faz companhia, mas respeitosos, pouco conversam. Repetem as orações e ouvem histórias sobre o Professor. Ficam tocados ao saber que não tinha familiares conhecidos e que o Clube pagara o enterro. Pascoal Carrão, fazia trabalho voluntário para além de Garibaldi e muitos garotos de outros municípios estão lá, com uniforme dos respectivos times. Alguns malcomportados não param de cochichar, mas mesmo esses, se mostram taciturnos.

Então, já quase na hora de voltarem, Will lembra do pai, há anos desaparecido, que também poderia estar morto e, indigente, até ali mesmo enterrado. Para seu constrangimento, ela enxerga a lágrima, sorri com condescendência e, sem dizer nada, lhe dá um abraço rápido. No ônibus, voltam calados, mas com as mãos discretamente sobrepostas.

Dias depois, o Clube substitui o Professor por dois estagiários de Educação Física que fazem piadas sem graça e jogam xadrez enquanto os garotos, sem qualquer orientação, correm atrás da bola. Marília – era esse o nome dela – nunca mais aparece e, mesmo tendo Will se tornado assíduo da Biblioteca e passado a dividir a leitura de jornais com os livros que ela indicara, também nunca a vê por lá.

Anos mais tarde, Canhoto, Gustavo, Sabino e ele, vão à capital determinados a juntos se alistarem. E quando o Canhoto, oferecendo uma cerveja, pergunta a Will qual bicho lhe mordeu, este respondendo não ter sido nada, apanha depressa a lata. Minutos depois, segredaria ao Gustavo: “Na fila do cinema, não há como ter certeza, mas juraria que era ela, a loira magra de saltos – loira sim, mas com o furo no queixo – que enlaçada ao marinheiro, ria dividindo o cigarro.”

CirineuCWB
Enviado por CirineuCWB em 27/07/2019
Reeditado em 27/07/2019
Código do texto: T6706086
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