HISTERIA

CAPÍTULO I – A ADOLESCENTE

O que eu posso dizer é que vocês são especiais.

Juro que maioria dos casais que aparecem aqui

querem as crianças pequenas ou bebês, jamais

uma adolescente com deficiência como essa aí.

A coitada da púbere que vocês desejam adotar

é cega e chegou ao nosso orfanato sem a vista.

Ela é muito arredia, em nada deseja participar.

Pensamos até no início que também era autista,

Contudo, a segunda suposição já fora descartada.

Com seis anos de idade foi exilada de sua terra natal,

que até hoje permanece numa guerra desenfreada.

É muito pouco que sabemos sobre essa triste menina.

Pode Ficar tranquila freira, a órfã conosco viverá legal.

Jesus há de recompensar vocês pela caridade genuína.

CAPÍTULO II – VAMOS PRA CASA, FILHA!

Creio que a juvenil fale pouca coisa em português,

Pelo fato dela ser uma estrangeira e muito calada.

Ainda há tempo de desistir. Pergunto pela última vez:

Querem adotar a pubescente? Qual resposta será dada?

A pergunta correta é esta: ela quer vir com a gente?

Se a resposta da mocinha for sim, nós a adotaremos;

Se não aguardaremos uma outra chance novamente.

A jovem disse sim, logo levá-la conosco queremos.

Assinamos a adoção. Ela agora é nossa filha adotiva.

De agora em diante a moçoila terá uma vida decente.

o orfanato expôs todo problema que da jovem deriva

Ficamos cientes. Apesar de tudo, mantivemos o sim.

Gostaria de dizer vamos pra casa, filha, naturalmente;

Mas pra ela ainda somos estranhos...não agiremos assim.

CAPÍTULO III – PRECONCEITO

Todos sem um pingo de dó condenaram minha atitude.

Amigos, vizinhos, parentes e até fofoqueiros de plantão

Num mundo onde hoje a maldade tem alta amplitude...

Por uma gringa em casa...se ela não for boa bisca então...

Creio que o perigo que possa vir dela você nem imagina!

Alguém cuja índole não se sabe e de passado desconhecido

Você pode ter colocado em casa uma nefasta, assassina!

E se ela, maldosamente, der em cima do seu marido?

Dizem que se conselho fosse bom não dava, vendia.

Se fosse você mandaria a jovem ao lugar de onde veio

Dei o meu recadinho. Fiz o que meu coração pedia.

Por lhe querer muito bem é que digo: sai dessa furada.

Os laços efetivos de vocês ainda não estão firmes, creio...

Tudo que falei não foi por mal. Não fique comigo chateada.

CAPÍTULO IV – UMA ALTERNATIVA DE APROXIMAÇÃO

Dois meses passaram. Nossa relação pessoal não mudou.

A minha filha adotiva continua cega, falando pouquíssimo e

mal sai do seu quarto. Não dá pra continuar assim. Não vou

ficar parada. Para resolver essa situação contudo eu decidi:

Vou dar aulas de Português para ela todos os santos dias,

menos aos sábados e domingos porque ninguém é de ferro.

Dessa forma me aproximarei dela e criarei internas parcerias

para que possamos dividir os sofrimentos, sem algum berro;

sem se posicionarmos de vítimas, como amigas verdadeiras,

sinceras, do peito. Aulas de Português não há como recusar.

Na hora que ela confiar em mim terei acesso as comicheiras

que a destroem por dentro, deixando-a no colo da tristeza.

Por eu não saber braile, ela não desenvolverá a escrita,

Agora, assim que falar português bem ... com certeza!...

CAPÍTULO V - EVOLUÇÃO

Mais alguns meses se passaram e já vejo grande evolução.

Depois de muitos textos lidos, teatros e até músicas da MPB,

a minha filha fala português com bom nível de compreensão

Agora; com sotaque, óbvio. Quem a viu ontem e hoje a vê...

Essas ações fizeram com que ficássemos próximas nós duas.

Afirmo que se não somos amigas, estamos por um triz de ser.

Hoje não fica mais tempo no quarto. Às vezes vamos às ruas

para compras, ir ao cinema ou uma sorveteria, enfim, viver.

Aos poucos vai me falando sobre ela mesma. Por enquanto

no plano superficial. Nada tão íntimo que mereça segredo.

Mas esse dia chegará, de forma natural, sem algum espanto.

Ela se abrindo para mim, fará que seus fantasmas interiores

inexistem e assim poderá conviver com outros sem medo.

Fará novos amigos, será livre e terá a vida cheia de sabores.

CAPÍTULO VI – DESESPERO

Certa vez estava assistindo a um filme sobre terrorismo,

no conforto da minha casa, que passava num canal aberto.

Minha adotiva ao aparecer na sala demonstrou nervosismo

tão acentuado que nem da minha televisão chegou perto.

Achei aquele comportamento anormal, bastante estranho.

Ela foi para o seu quarto e eu, obviamente, fui atrás dela.

Quando chego no recinto, cada olho meu eu arreganho.

Cadê-la? Não está sobre a cama! Onde se enfiou ela?

Ouço choro dentro do quarto acompanhado de soluço.

É a minha filha chorando. Olho dentro do armário e nada.

Aproximo-me da cama. O choro é mais nítido e me debruço.

Vejo a minha menina com olhos inchados e em posição fetal.

Estendo as mãos pra tirá-la de lá. Minha intenção é negada.

Meu desespero é enorme. Meu Deus, jamais vi coisa igual!

CAPÍTULO VII – NÃO QUERO FALAR SOBRE O OCORRIDO

Levanto a cama com colchão e tudo. Jogo-a para outro lado.

Com o barulho, o meu marido chegou ao quarto correndo.

Encontra-me no chão com minha guria no colo. Perguntado

o que havia acontecido, ao meu cônjuge fui tudo dizendo.

A jovem acalmou. Então voltei a cama para o seu lugar.

Deitei-a no leito, sequei suas lágrimas. Mudas nós ficamos.

Meu esposo ao ver tudo em paz, sai do quarto sem falar.

Dormiu. Cobri-a. Apago a luz e saio. Amanhã conversamos.

Nem indaguei e foi dizendo: não quero falar sobre o ocorrido.

Filha, vamos conversar. Por que você ficou daquele jeito?

Não quero seu mal e sim o bem. Conte-me, sou todo ouvido.

Qual a parte do “não quero falar “a senhora não entendeu?

Eu quero é paz, peço-lhe! Mostre que por mim tem respeito!

Não quero falar sobre esse assunto! Para mim ele já morreu!

CAPÍTULO VIII – NÃO NASCI CEGA

Não podemos falar sobre o que aconteceu ontem à noite.

Há um outro assunto chato que eu gostaria de questionar.

Pode perguntar, vou responder desde que não me afoite.

Você nasceu cega ou não? Quando parou de enxergar?

Não nasci cega. Perdi a visão com seis anos de idade.

Se tento lembrar a razão vem uma dor de cabeça horrível.

Tomo o remédio que for e não passa. Fica sem piedade.

Após perder a visão foi ao médico? Não, pra dizer a verdade.

Sente dor ou desconforto nos olhos apesar da cegueira?

Não sinto nada, estão normais, apenas não consigo ver.

Se quiser, marco um médico para resolver essa tranqueira.

Quem sabe seu caso seja simples, portanto, reversível?!

Sem muxoxo, você não foi ainda ao médico para saber.

Amanhã vamos ao médico. Se a visão voltar, será incrível!

CAPÍTULO IX – OS OLHOS DELA SÃO NORMAIS

Para a maioria das perguntas feitas a resposta fora não.

O oftalmologista começa a realização dos exames oculares.

Ele foi muito meticuloso conforme determina sua profissão.

Eu assistia a tudo sem entender aqueles exames peculiares.

Ainda bem que acabou, doutor! Eu não aguentava mais.

Qual é o diagnóstico? Fala! Ficarei cega eternamente?

Você se assustará, mas vou dizer: seus olhos são normais.

Como são normais se não vejo um palmo na minha frente?

Calma, filha! doutor, nós não estamos entendendo nada!

Demorei muito nos exames para ter um diagnóstico preciso.

Podem ir a outro médico que a mesma resposta será dada.

Os olhos da menina são normais, até melhor que o nosso.

Se ela não enxerga é por algum problema psíquico, friso.

Indicar-lhes-ei o psicanalista. O que ele disser, eu endosso.

CAPÍTULO X – ESTAMOS CHOCADAS!

Choquei-me com a afirmação do médico! Agora, o que fazer?

Procurar outro médico para ver se o diagnóstico será igual?

O doutor foi tão claro, incisivo, verdadeiro no seu parecer,

todavia ele é um oftalmologista de renome internacional...

Eu não estou louca e nem fingindo que sou uma deficiente.

Quem gostaria de viver num mundo em que se vê nada?

Faria tudo que fosse possível para enxergar novamente.

Sei que você não é louca e nem tão pouco dissimulada.

Façamos o seguinte: confiemos no médico e na opinião dele.

Marquemos a consulta com o psicanalista por ele indicado.

Não podemos é ficar com esse dilema que nos descabele.

Ontem não tínhamos nada. Hoje temos uma chance de cura.

É o único ponto positivo de todo desse imbróglio inusitado.

O meu medo é de que essa esperança vire uma desventura.

CAPÍTULO XI – “QUANDO A CABEÇA NÃO PENSA, O CORPO PADECE”

Doutor, quem nos indicou o senhor foi um grande amigo seu.

Não é psiquiatra e sim oftalmologista. Senhor sabe quem é?

Sim. Um grande oftalmologista que no mundo já apareceu.

Se as enviou até mim é porque estão nadando contra maré.

Diz o provérbio que se a cabeça não pensa, o corpo padece.

Numa leitura psicanalítica, obtemos a seguinte realidade.

Na cabeça fica a mente, objeto de estudo que nos apetece.

Pensar é trazer uma reflexão ao consciente, não é verdade?

Não pensar é não impedir que ele venha à consciência.

Se não está no consciente, está em algum lugar da mente.

Tal lugar é o subconsciente local de plena efervescência.

Alto grau de ebulição e sem conhecimento é problemático

O que está lá nossa inconsciente predomina sobre a mente

Indo parar no corpo gerando assim distúrbio psicossomático.

CAPÍTULO XII – SUSPEITA DE HISTERIA

Distúrbio esse que nosso consciente ignora por completo.

Tem doença psicossomática simples. Exemplo, enxaqueca!...

Há males psíquicos complexos onde o racional é obsoleto,

cuja vivência é de uma mente que a alma doentia hipoteca;

Como por exemplo as neuroses mais confusas que já se viu.

Entenderam ou eu fui prolixo? Respondam, por gentileza...

É complicado, mas fazermos entender o senhor conseguiu.

No recalque as doenças psicossomáticas têm sua fortaleza.

Solicitei pelo e-mail do meu amigo o diagnóstico de sua filha.

O que ele e a jovem disserem me levará uma certa direção.

Deixe-nos a sós para eu ver o que ela na prosa compartilha.

A senhora pode entrar. Sua filha se mostrou bem arredia

o que consegui tirar dela é cedo para tirar uma conclusão.

Pelas pistas que tenho creio que o problema é de histeria.

CAPÍTULO XIII – CONCEITO DE HISTERIA E REGRESSÃO

Histeria é uma psiconeurose cuja origem está na infância.

Lá se vivenciou conflitos traumáticos que foram reprimidos

e o inconsciente o reativa. Tal atitude trará ressonância

em nosso próprio corpo, deixando-nos frágeis e aturdidos.

Nós não temos máquina do tempo para voltar ao passado

e impedir que tal desejo fique reprimido dentro de nós.

Para ir a vida pregressa, o método pela psicanálise usado

é a hipnose. O paciente ficará em transe e ouvirá só a voz

do psicanalista. É assim que entra no universo inconsciente.

Através de sugestões o paciente é induzido a regredir mais

até o contexto causador desta situação um tanto deprimente.

Indo o recalque para consciência, a doença é curada de vez.

Esse método é chamado de regressão. Ajudar-nos-á demais

o cliente ficando relaxado plenamente, sem a sua robustez.

CAPÍTULO XIV - FUGITIVOS

Dois dias após a primeira consulta, inicia-se o tratamento.

O psicanalista coloca a adolescente no estado hipnótico.

Volte aos seis anos de idade, ano do grave acontecimento;

lá pode estar o agente causador do seu precipício óptico.

Começaremos com o primeiro dia e mês daquele trágico ano.

Vai falando os acontecimentos até chegar ao ponto crucial.

Estou no meu país de origem. Meu pai fala do atroz engano

que cometera ao se integrar a Al-Qaeda. Fugimos do local

em que morávamos. Meu pai a Al-Qaeda tinha abandonado.

Temos que sair do meu país. Meu pai é agora um desertor,

caso ela o encontrasse, ele seria perversamente executado;

quiçá sobraria para minha mãe por se esposa e eu, filha.

Por sermos fugitivos, todo dia sentíamos o sopro do terror.

A qualquer hora podemos ser alvo de tiro ou uma armadilha.

CAPÍTULO XV – O EXÍLIO

No exílio ainda fiz mais um ano de vida, ou seja, seis anos.

Não ganhei presente. Ganhei o que acho mais importante:

a alegria de meus pais pelo aniversário, apesar dos danos

sofridos no meu país, conduzindo-nos a uma vida errante.

Nós vivíamos com medo e desconfiança o tempo inteiro.

Não se tratava de exagero, mas sim uma legítima defesa.

Racionávamos comida, aparecimento em público e dinheiro.

A incerteza e o pavor em meus pais causavam-me tristeza.

Estamos na fronteira. Dois meses depois do meu aniversário.

O pai fez amizade com um homem bem mais velho que ele.

Tinha idade para ser o meu avô, esse tal amigo sexagenário.

O novo amigo do meu pai é bastante sisudo e sistemático.

Pensando contrário do meu pai, eu não gostava nada dele.

Como gostar de alguém que não me parece nada simpático?

CAPÍTULO XVI – DE VOLTA DA REGRESSÃO

Estou no mês de agosto... ai! Ai! Minha cabeça está doendo!

Doendo muito! Ai! Ai! parece que ela vai explodir! Ai! Ai!

Jovem, você ainda ouve minha voz? Sim. Estou morrendo...

doutor!... a adolescente chora compulsivamente e se contrai.

Doutor, minha filha está sofrendo! Termine já, eu lhe peço!

Jovem, se me ouve, acorde e abra os seus olhos lentamente.

Poucos minutos depois a adolescente realiza o seu progresso.

O corpo da jovem volta a ficar alinhado no divã novamente.

O choro cessa e a púbere está de volta ao seu mundo real.

Parecia tudo verdade, mas eram apenas tristes memórias.

Doutor, não quero mais a regressão porque ela me faz mal.

Minha jovem, você quer ficar com aquilo que lhe é ruim?

Toda verdade é benéfica, as fugas dela é que são inglórias.

Será frustrante para você seu tratamento não chegar ao fim.

CAPÍTULO XVII – MÉDICO OU CALOTEIRO

Não viremos mais. O que a menina disse o doutor quer bis?

A terapia deixou a minha filha com a cabeça explodindo.

Não quero mais que ela passe por isso. Quero é vê-la feliz.

Vamos, em casa eu lhe medico. Quando estávamos saindo...

Venham amanhã à tarde. Saiamos da nossa zona de conforto.

Iniciaremos a sessão de onde paramos, no mês de agosto,

mesmo com as dores de cabeça. Doutor, não mais suporto...

O desejo de ambas é o fim da cegueira, é meu pressuposto.

Estou confusa! Abandonou a medicina e virou curandeiro?

Perdoa-me a ironia, mas o senhor está querendo nos iludir!

Não precisam voltar mais, caso me tenha como um caloteiro.

Diz Fernando Pessoa: “Quem quer passar além do Bojador

tem que passar além da dor.” Guarde-os, não os vou repetir.

Amanhã às catorze horas. Não me desapontem, por favor!

CAPÍTULO XVIII – LABIRINTO DE CRETA

Lembraram do meu amigo: “o que ele disser, eu endosso...”

Eu e minha filha queremos esgotar todas as chances, doutor.

Meu medo é que não ocorra a cura garantida e vire um troço

cético para as outras chances que a vida venha nos propor.

A mente humana eu a comparo com o labirinto de Creta,

onde o Minotauro que há lá é um horrível desejo recalcado,

que se nutre de outros desejos ruins que a vida engaveta;

desejos esses que são incompatíveis ao nosso eu formado.

A hipnose é o novelo de Dédalo. Marca o caminho de volta

para sair com segurança e precisão deste labirinto mental,

sem precisar que terceiros venham fazer a nossa escolta.

O que eu posso afirmar é que hoje nós saberemos de vez

o que tornou a sua querida filha numa deficiente visual

e foi em agosto, onde muitos o têm como um triste mês.

CAPÍTULO XIX – DE NOVO À REGRESSÃO

Jovem, feche os olhos. Ouve a minha voz? Sim, doutor.

Você está com muita dor de cabeça desde ontem, eu sei,

mas você tem que ser forte para um resultado melhor...

Voltemos aos seis anos de idade no mês de agosto, ok?

Estou no quarto dos meus pais brincando de boneca,

feita de pano pela minha mãe. Eu estava muito feliz.

Do nada, a mãe pega o revólver do meu pai e impreca:

Guarde a boneca, pegue a arma. Ouça o que sua mãe diz.

Homem mau entrou aqui em casa. Ele tem que ir embora.

Eu vou lá ajudar o papai. Se a porta abrir, filha, não excite.

Atire. A janela ficará aberta. Se precisar, fuja sem demora.

Eu fiquei só no quarto entregue o medo e a insegurança.

Ouvia barulhos, choros e gritos. Queria estar lá, acredite.

Mas mamãe quis me proteger pelo fato d’eu ser criança.

CAPÍTULO XX – O HOMEM MAU

A arma que eu segurava era um revólver trinta e oito

que meu pai conseguiu comprar no mercado negro.

A maçaneta mexe, alguém de um modo bem afoito

abre a porta do quarto e ao desespero me entrego.

Sem pensar eu atiro e acerto minha mãe no coração.

O homem mau fizera da mamãe um escudo humano.

O homem mau larga o cadáver e vem à minha direção.

Grito e choro alto por ter cometido o terrível engano.

De repente, uma faca de fora acerta o homem mau

quando este ia pôr as suas mãos assassinas em mim.

Da janela, o amigo velho do papai me faz um sinal.

Aproximo-me chorando muito. Ele me leva embora.

Seu pai me pediu para cuidar de você caso...enfim...

Seus pais mortos, o assassino idem. Saiamos agora!

CAPÍTULO XXI – O MONSTRO

Durante toda a fuga continuava com um choro copioso.

Não comia, não bebia nada. Estava sobre forte depressão.

Num raro momento, o amigo do meu pai foi afetuoso.

Menina! Coma! Beba! pare de chorar! Fique assim não!

Eu matei minha querida mãe! Sou uma cruel assassina!

Não era para eu matar minha mãe e sim o homem mau.

Por que me salvou? Impediu-me que tivesse a mesma sina!

Eu mereço morrer! Para ser justo, merecia ter um fim igual!

Sou um monstro! Jamais na vida olharei para o meu rosto!

Espero que o senhor e as pessoas rejeitem a minha feiura!

Foi acidente. Você não quis cometer esse tipo de desgosto.

A criança volta ao choro e a denominação de monstruosa.

Cansada de chorar e do sofrimento, ela dorme sem candura.

Não parece, mas o velho sofre com essa situação horrorosa.

CAPÍTULO XXII – AJUDA HUMANITÁRIA

Ao acordar descubro aflita que perdi a visão... um dia após...

Há muito tempo de fuga, refugiados nos acolhem sem receio.

As pessoas refugiadas iam para um lugar, segundo uma voz

que ouvi, obterem ajuda humanitária. Seria da ONU, creio.

Eu estava faminta, suja, pele e osso, deprimida, cega, fraca.

O sexagenário estava muito fraco e mais magro do que eu.

Os refugiados não tinham como ajudar. A escassez ataca

com tanta brutalidade que o velho não aguentou. Morreu.

Agora estava só no mundo: sem pai, sem mãe, sem o tutor.

Chegamos ao acampamento humanitário. A vida venceu.

Fui consultada. Encaminha para tomar soro, diz o doutor.

Mais um pouquinho e essa menina morreria de inanição.

Coitada, doutor! Além de tudo é cega! Ó meu pai do céu!

Enfermeira, ouça-me. Já ouvimos demais o nosso coração.

CAPÍTULO XXIII – A FREIRA

Ficar no hospital de ajuda humanitária podia mais não.

Estava saudável. O meu leito precisava ser desocupado.

Crianças sãs são devolvidas aos pais também sãos. Então...

Era órfã, com quem ficar? Não podia ser deixada de lado.

Havia no acampamento uma moça dócil e amável.

Mais tarde vim a saber que se tratava de uma freira.

Com ela ficavam as crianças órfãs. Achavam-na legal,

E conversando com ela, soubemos que era brasileira.

A freira brincava conosco como se fosse uma criança.

Á noite, contávamos estórias infantis antes de dormir.

Passou a ser meu anjo da guarda e ter minha confiança.

Mesmo eu sendo cega, a freira procurava me enturmar

Ficava triste por eu com outras crianças não interagir.

Ela entendia por eu ser assim, mas eu precisava mudar.

CAPÍTULO XXIV – SÃO DÍDIMO

Ser cega não significa ser muda e morta para a vida.

A freira ensinou-me usar os outros sentidos humanos.

Agora tenho o olfato aguçado, a audição desmedida,

o paladar apurado e o tato idem. Cometemos enganos

por crer que não possa ser livre alguém com deficiência.

A freira me falou de um santo que aos quatro anos perdeu

a visão. São Dídimo possuía extraordinária inteligência.

Até geometria, que precisa mesmo usar a visão, aprendeu.

São Dídimo tornou deficiente visual mais cedo do que eu.

Diante do exemplo dado, saí da redoma em que me coloquei;

não completamente, pois sou eu uma assassina, entendeu?

Estudava a minha língua natal e o português com a Freira.

Achei muito difícil o idioma dela, mas mesmo assim, gostei.

Passei a brincar com outras crianças de forma rotineira...

CAPÍTULO XXV - POSSO MORAR NO BRASIL?

Um certo dia disse à freira que eu não gostava do meu país.

Pedi para falar de sua terra natal. Ela foi falando... falando...

Fiquei encantado com o que foi dito. Talvez lá eu serei feliz!

O Brasil fica longe, freira? Sabe por que estou perguntando?

Gostaria de morar no seu Brasil. Eu posso morar lá? Posso?

Mas você não conhece ninguém lá, nem tão pouco o Brasil!

Não conheço ninguém aqui. A freira põe a mão no pescoço;

engole seco. Menina, vou lhe fazer algumas perguntas, viu!

Você tem algum familiar que more lá? Não. Mas que chato!

Certeza absoluta? Sim. Parente ou conhecido lá não tenho.

A saída que vejo para o seu caso é você ficar num internato,

enquanto isso procuraremos alguma família para adotá-la.

Eu tenho amigos no Brasil para me ajudar nesse empenho.

Oba! Vai comigo? Não posso, querida, sinto desapontá-la.

CAPÍTULO XXVI – SANTO MÉDICO

Minha jovem, você ainda está me ouvindo? Sim, doutor!

Como você está? Continua com forte dores de cabeça?

Não. Elas não existem mais. Não sinto nenhuma dor.

Ótimo. Acabou. Abra os olhos bem devagar. Obedeça!

Ao abrir os olhos, a púbere enxergou o teto do consultório.

Pôs as mãos nos olhos, tirou-as e gritou em plenos pulmões:

Estou vendo, não sou mais cega! Não mudava o repertório.

Mexia a cabeça pra lá, pra cá, enfim, em todas as direções.

Sentou no divã, viu a mãe adotiva chorando de felicidade.

Viu o doutor que a curou. Não sabia o que fazer, o que falar.

O doutor ficou na dele. Olhando tudo na maior passividade.

A sensação das duas é de que um milagre ali acontecera.

O médico deve ser canonizado por fazer a jovem enxergar.

Que sensação incrível! Não dá para descrever, quem dera!

CAPÍTULO XXVII – AUTOPUNIÇÃO

Adeus cinemas com audiodescrição para deficientes visuais.

Adeus o cumprimento da promessa de comprar um cão-guia.

Adeus bengala e olhares de piedade. Braile, nunca mais!

Muito obrigada, doutor! Eu não me caibo de tanta alegria.

Controla-se! Para que você possa ficar de vez livre de mim,

Explicarei o que aconteceu consigo e o motivo da sua cura.

Matando acidentalmente sua mãe, você não ficou mais a fim

de olhar para o seu rosto e se apossou de infinita amargura.

A enorme culpa pela morte materna virou então uma histeria.

Sua censura a fez se auto intitular assassina e eis a punição:

Não ver mais. Quebrar os espelhos do seu lar, você podia,

mas todos os que têm no mundo, seria inviável desde então.

Estando cega, não veria sua imagem refletida nas vidraças

das lojas, retrovisor de carro, nas águas presentes num rio,

mar, óculos espelhados, garrafas de vidro, copos ou taças.

CAPÍTULO XXVIII – MINHA MÃE

Se fosse atender seu desejo reprimido, todos cegos seriam,

só para não enxergar a sua pessoa. Percebeu que horrível?!

Pra negar acesso à sua mente, fortes cefaleias apareceriam

e assim você abdicaria da resposta devido uma dor terrível.

Todo desejo que é recalcado, quando emerge ao consciente

não é mais barreira mental, sumindo com a psíquica doença.

Esses recalques não voltarão mais. Expiraram de sua mente.

Eu lhe dou alta, pois do mal que a afligia está suspensa.

Tchauzinho, doutor! Eu sou e lhe serei eternamente grata.

Minha mãe (adotiva) e eu lhe agradecemos de todo coração.

A mulher olha para a jovem adolescente muito estupefata.

Você me chamou de mãe? Eu ouvi bem? Não me enganei?

Sim, mãe. Pode ficar tranquila. Você está com ótima audição.

Elas saem do consultório jubilosas. Pra onde foram? Não sei!

O FILHO DA POETISA

Filho da Poetisa
Enviado por Filho da Poetisa em 17/09/2019
Código do texto: T6747462
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