O CÍRCULO DA VIDA

O CÍRCULO

DA VIDA

GIDELSON E. DA SILVA

CAPÍTULO I

Seu nome: Ricardo de Almeida Silva. Moço simples, nascido no interior de Minas, rapaz educado e sem vícios, uma alma boa. É dele a história que vamos narrar.

Ricardo desde pequeno era aquele que nunca era notado, na escola, era aquele que não se destacava. Não era o melhor da classe, mas também não era o pior. Ricardo era o meio termo. Era mais um aluno em uma classe de quarenta e poucos. Ninguém o chamava pelo nome era apenas o numero 37 da turma.

Se havia uma festa ou confraternização, era esquecido. Ninguém se lembrava de convidá-lo. Isto era feito sem nenhuma maldade. Era o 37 pensavam, alguém já deve tê-lo convidado. Como ninguém o havia chamado, era esquecido e ninguém notava quando ele não aparecia.

Dizer que Ricardo era revoltado com isso seria mentir. Aceitava tudo como se fosse a coisa mais normal do mundo. Não culpava ninguém pelo esquecimento.

Se a garotada fosse jogar bola, lá estava Ricardo. Só era notado quando contavam o numero de jogadores e um dos lados tinha um jogador a mais, aí sim o 37 era convocado para jogar, agora se o numero de jogadores fosse par, ninguém notava a sua presença. Assim mesmo ele se divertia vendo a felicidade das outras crianças.

Ao completar 14 anos Ricardo saiu da cidadezinha em que morava e foi levado para São Paulo pelos tios. Diziam que na cidade grande, ele talvez tivesse chance de se formar e ter uma boa profissão.

Escola em São Paulo é o que não falta, diziam os tios, este menino ainda vai nos dar grandes alegrias. Quem sabe vira doutor.

O garoto não sabia se queria vir para São Paulo. Estava bem na sua cidade. Tinha medo da cidade grande. Afinal, bem ou mal tinha seus amigos, mas não sabia dizer não e nem ir contra a vontade do pai.

Tudo decidido entre o pai e os tios e Ricardo se mudou para a casa dos tios em um bairro da cidade de São Paulo, a transferência de escolas foi confirmada e o jovem passou a estudar em um colégio do estado. Continuava não sendo notado, nem pelos professores, nem pelos alunos. Agora, era mais um em um universo de quase seiscentos alunos.

O tio não era rico. Muito pelo contrário como se costumava dizer trabalhava hoje para comer amanhã. Batalhou muito entre conhecidos até conseguir um emprego para o sobrinho em uma gráfica, seu serviço: dobrar envelopes e pequenos serviços externos.

Ricardo era considerado um bom funcionário. Era só mandar fazer e no tempo exato o serviço estava pronto. Graças ao serviço externo ia conhecendo a cidade aos poucos.

Nos estudos poderíamos dizer que Ricardo estava bem. Era aquele aluno que não se destacava em nada. Sua média era a medida exata para passar de ano. Cumpria sua obrigação. Se era preciso cinco para passar, era cinco que ele tirava e ponto final.

A vida do jovem era assim: de casa para a escola, da escola para o serviço e do serviço para casa. Diversão nenhuma. Seu salário era entregue aos tios e estes cuidavam de tudo, roupa, alimentação, livros, etc.

Na realidade era muito solitário. Tinha muitos amigos, mas estes nem o notavam. Só se viam na escola, só cumprimentavam se Ricardo cumprimentasse, caso contrário passavam por ele como se ele não estivesse ali. As garotas, então, nem sabiam que ele existia.

Ricardo conseguiu o diploma do ginásio aos 16 anos. Já era hora de procurar um emprego melhor, quem sabe em um banco ou até mesmo em uma grande empresa, dizia o tio.

Fez testes em vários lugares. Até que se saía muito bem, mas ninguém conseguia explicar porque nunca era chamado.

O tio também estava interessado em colocá-lo em um emprego melhor. Afinal já estava se aposentando e o salário de Ricardo em muito ajudava as despesas da casa. Tomou uma decisão e foi falar com o dono da gráfica. Explicou a situação em casa e pediu que este ajudasse o sobrinho a encontrar uma melhor colocação, já que na gráfica ele não teria futuro.

Gustavo, o dono da gráfica, apesar de ter poucos funcionários não sabia quem era Ricardo, se o tio não o apontasse no meio de meia dúzia de empregados, estaria até hoje sem saber, mas Ficou comovido com a situação da família e resolveu ajudar.

Gustavo, no dia seguinte foi ao banco. Conversou com o gerente e pediu que este desse uma mãozinha para o garoto. Explicou que era um bom funcionário, responsável e estudioso.

Novamente Ricardo fez os testes e desta vez finalmente conseguiu o emprego. Tudo que ele precisava era de alguém que o indicasse. Finalmente iria trabalhar em um banco. Quem sabe seguir carreira. Um dia se tornar gerente.

Agora já podia pensar em comprar algumas roupas, se vestir melhor. Afinal iria ser bancário.

CAPÍTULO II

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O tempo foi passando e Ricardo parecia fazer parte da mobília. Seu serviço era interno, não tinha contato com os clientes, continuava não sendo notado. Promoção nem pensar, ninguém se lembrava dele.

Aos 18 anos, perdeu o pai. Mãe? Nem se lembrava que havia tido uma. Era muito pequeno quando ela faleceu. Pediu licença no serviço e voltou para a cidadezinha que havia nascido, para o enterro do pai. Impressionante. Na cidade ninguém se lembrava dele.

Herança, nenhuma. A casa em que moravam não era do pai, os móveis não valiam nada e Ricardo ainda teve que pagar as despesas do funeral. Não chorou, não derrubou uma lágrima, e isto não queria dizer que não gostasse do pai.

Foi na viagem de volta para São Paulo que Ricardo sonhou pela primeira vez. Dormiu sentado na poltrona, mal acomodado, mas o sono foi de um justo.

Durante toda a viagem Ricardo sonhou. Ao acordar, já na estação rodoviária não conseguia se lembrar o que havia sonhado. Só sabia que era muito bom. Acordou disposto e bem humorado, parecia outra pessoa.

A sensação de bem estar, a vontade de encarar o mundo terminou ao chegar em casa. O tio já perguntando se o irmão tinha deixado alguma coisa. Porque, se tivesse, ele também tinha direito.

Foi difícil convencer o tio de que não havia nada e que ele havia pago o enterro. O tio desconfiado queria saber onde ele havia arranjado dinheiro e Ricardo explicou que, como trabalhava em banco tinha cheque e que depois o banco descontava de seu salário.

Pura balela. Ricardo há muito tempo já guardava algum dinheiro. Fazia horas extras, declaração de renda de alguns clientes e funcionários, assim ganhava algum dinheiro. Afinal os tios também já estavam com uma certa idade, saúde comprometida, já era hora de começar a pensar nele.

Realmente aos poucos foi perdendo a família, até ficar sozinho no mundo.

A vida de Ricardo virou de cabeça para baixo. Perdeu inclusive o emprego. Na hora do corte, se lembraram dele.

Quando todos queriam fugir do exercito, Ricardo, pelo contrário sonhava com a sua convocação. Seria o ideal: teria casa, comida e talvez pudesse seguir a carreira militar. Foi dispensado por excesso de contingente.

O pouco dinheiro que havia guardado a tanto custo, gastou no enterro dos tios. Primeiro foi o tio e Ricardo passou a sustentar a casa. Depois a tia ficou doente, só despesas, e finalmente mais um enterro.

A casa onde morava com os tios ficou grande para apenas uma pessoa. O aluguel caro, sem emprego, mais fácil mudar, procurar um quarto ou uma pensão.

A única coisa que mantinha Ricardo de pé era o sonho. Não via a hora de se deitar, dormir e sonhar, agora ele já conseguia se lembrar de algumas coisas do sonho.

Ela era linda, morena de olhos verdes, a saia muito comprida, muitas pulseiras e anéis, pés descalços, estava dançando e dançando para ele. Não sabia explicar como, pois em meio à varias pessoas todas vestidas de forma exótica, roupas coloridas e brilhantes, ela estava dançando para ele. Todos olhavam em sua direção com respeito, ele era o Rei.

O quarto, em que passou a morar, não era um quarto. A dona da casa havia dividido uma sala com divisórias, colocou as camas e alugava.

Poucas pessoas se sujeitariam a morar nestas condições. Uma cama, um fogãozinho e um pequeno armário, tudo em um cubículo de dois metros quadrados. Mas para Ricardo, parecia o paraíso, tinha uma cama, um teto e podia sonhar.

Passou a viver de expedientes, pequenos biscates, emprego cada vez mais difícil. Voltou a não ser notado. Precisava comer e pagar a pensão, por isso aceitava qualquer serviço, trabalhou como como servente de pedreiro, ajudante de caminhão, pintor, meio marceneiro, meio tapeceiro etc., nada fixo ou registrado.

Na pensão também não era notado. Saía pela manhã e só voltava à noite. Pagava o aluguel em dia e ninguém se importava com ele. Conseguia dormir com o barulho dos outros ocupantes da sala. Uns roncavam, outros chegavam bêbados, traziam mulheres. Ricardo ouvia a tudo calado. Nunca reclamou com ninguém, gostava de ouvir as conversas dos outros, o riso das mulheres durante a noite, sonhava em um dia ter uma somente para ele, e ela existia no seu sonho.

Ricardo era mais um candidato à miséria. Os biscates que conseguia mal davam para pagar a pensão e comer. Comprar roupas nem pensar e além de tudo passou a se sentir sonolento no trabalho. Chegava mesmo a dormir, um perigo. O sono não escolhia hora nem lugar, vinha de repente. Chegou a cair de uma escada em uma dessas crises.

O mundo parecia conspirar contra ele, já não tinha vontade de se levantar. Levantar para quê? Pensava. Não tenho onde ir. Se for, vou acabar dormindo e dormir era muito bom. Se ninguém o acordasse melhor ainda.

CAPÍTULO III

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Rodrigo Avelar, este era o seu nome, era o Rei dos ciganos. Era livre, forte e respeitado. Que bom se não acordasse, se não tivesse que enfrentar a dona da pensão, querendo receber o aluguel atrasado. Que bom seria se não precisasse comer. Queria ficar naquela cama para sempre.

A dona da pensão sentia pena de Ricardo. Era um bom moço, não tinha vícios, não incomodava ninguém e sempre havia pago o aluguel em dia. Estava preocupada. Ele só podia estar doente, e mais, se ele morresse naquela cama, nunca mais iria conseguir alugá-la. Olhava o coitado deitado e pensava no que fazer para ajudá-lo.

Freqüentadora assídua de um terreiro de Umbanda, levou o problema aos guias, durante a sessão consultou-se com um preto velho, e este pediu que ela o trouxesse ao terreiro. Se não fosse possível devia trazer uma peça de roupa.

Como dizer a Ricardo que ele devia ir procurar um terreiro?. Como explicar para aquele jovem que ele devia consultar uma entidade?. Não tinha nenhuma liberdade com o rapaz, era apenas bom dia, boa tarde, mas queria ajudar e foi o que fez.

Tarde da noite Ricardo estava dormindo, aquele sono profundo onde era difícil acordá-lo, Dona Julia entrou no quarto e pegou uma camisa, saiu pé ante pé e voltou para o seu quarto. Se ele notasse a falta da camisa diria que tinha mandado lavar.

No dia seguinte haveria sessão no Centro Espírita e ela já tinha a peça de roupa que o Preto Velho havia pedido. Colocou a camisa em uma sacola e guardou. Amanhã se Deus quisesse, poderia ajudar Ricardo.

Dia de sessão. D. Julia foi uma das primeiras a chegar. Achava que, se fosse a primeira, teria mais chances de ter o seu pedido atendido. Aguardou paciente a chegada do Preto Velho. Com a sacola na mão ajoelhou-se à frente do velho.

Entregou a camisa e aguardou ansiosa pelas palavras do Preto Velho. O velho com a camisa na mão, fumava o seu cachimbo e parecia meditar. Por fim disse:

- O dono desta roupa tem muita mediunidade. Precisa de ajuda. Precisa vir aqui ou em qualquer outro terreiro e desenvolver essa mediunidade. O dono dessa roupa tem uma entidade muito forte, com muita luz que o acompanha e outra que precisa de sua ajuda. Esta entidade tenta ajudá-lo, mas ele não sabe.

Dona Julia deixou o terreiro feliz, Ricardo não estava doente, seu problema era espiritual. E o mais importante, tinha cura. Agora só faltava convencê-lo.

Deus escreve certo por linhas tortas e foi assim que aconteceu. Havia necessidade dos serviços de um pedreiro no Centro Espírita. A casa tinha algumas goteiras, os médiuns haviam se reunido e fizeram uma arrecadação para que fosse efetuado o conserto. Chamaram um pedreiro e este convidou Ricardo para ajudá-lo

Sem saber Ricardo já estava em um Terreiro de Umbanda.

Fizeram o serviço na parte externa e entraram para os arremates interiores. Ricardo olhava a simplicidade do lugar. Pareciam bem humildes, o salão era enorme, alguns bancos, algumas imagens pintadas nas paredes e um pequeno altar coberto por uma cortina branca.

O serviço estava pronto, já podiam ir embora, mas alguma coisa segurava Ricardo. Curioso abriu uma parte da cortina e ficou com os olhos fixos em direção ao altar. Olavo chamou e disse:

- Vamos embora companheiro, está tudo pronto. Vamos tomar uma cerveja.

Ricardo agradeceu e disse que não bebia. Recebeu o seu pagamento e foi embora para casa. Já tinha algum dinheiro para pagar a pensão.

Chegando na casa foi diretamente falar com Dona Julia. Trazia o dinheiro nas mãos, desta vez a dona da pensão puxou conversa com ele. Perguntou como ele estava passando, se já estava trabalhando, se não precisava de nada.

Ele se soltou. Acho que nunca falou tanto. Agradeceu o interesse, disse que estava bem e continuou conversando. Falou de sua vida, do emprego que havia perdido, do pai, dos tios, Ricardo abriu seu coração e Dona Julia comovida ouviu como se fosse sua mãe.

A grande verdade é que ela nunca havia se casado. Queria tanto um filho e não teve. Ao ver o jovem ali em sua frente, sofrido, contando seus problemas, abrindo seu coração, viu o filho que nunca teve.

Ricardo também sentia uma nova emoção. Jamais se expusera tanto. Nunca havia conversado com ninguém sobre sua vida, seu trabalho, estava se sentindo bem. Encontrara uma verdadeira amiga. Uma irmã, e pensou, bem que ela podia ser minha mãe.

Uma grande amizade havia nascido. D. Julia estava realizada, encontrara um filho. Agora sim poderia ajudá-lo e ele também poderia ajudá-la em tudo que havia por fazer na pequena pensão. Era um rapaz de confiança, trabalhador e sem vícios, ele era o seu filho e ponto final.

Nos fundos da casa havia um quarto independente e o jovem se mudou para lá, agora tinha um cantinho só seu, o aluguel seria o mesmo e ele ainda poderia pagar prestando serviços na pensão.

Ricardo havia ficado impressionado com o Centro Espírita. Não conseguia afastar do pensamento aquele local, mil perguntas e nenhuma resposta. Que seita seria aquela. Pareciam tão simples, não havia luxo naquele templo, não havia imagens de demônios como ele pensava e o que o havia deixado mais impressionado é que no ponto mais alto do altar estava uma imagem de Jesus Cristo.

Como não tinha muitos amigos e também por não ter coragem de perguntar aos que tinha sobre esta religião, comprou livros e passou a estudar. Queria conhecer tudo. Quem sabe ali não estaria a resposta para o seu sonho.

O sonho que não o abandonava. Bastava dormir e já estava sonhando e cada vez mais ele ao acordar se lembrava do que havia sonhado.

Agora ele já sabia que ela se chamava Sara e que todos no acampamento a chamavam de Sarita. Sabia que ela iria ser sua esposa, era a sua prometida, sabia que aquela tribo de ciganos era diferente, eram temidos, todos os homens eram guerreiros.

Depois que ajudou no serviço no Centro as coisas começaram a mudar, Ricardo já não ficava sem serviço, sempre aparecia algum bico onde podia ganhar algum dinheiro. Além disso havia muita coisa para ser feita na casa de D. Julia. Já não tinha aquela sonolência, o sonho só vinha quando ao cair da noite, Ricardo se recolhia ao seu quartinho para dormir.

CAPÍTULO IV

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Agora ao chegar do trabalho, ele já não corria e se trancava no quarto. Ficava muito tempo conversando com D. Julia, pareciam realmente mãe e filho. Ele contava como havia sido o seu dia e ela ouvia com muita atenção. Ricardo já cuidava das finanças dela e ensinava como aplicar o dinheiro para que este não perdesse o valor, a confiança era mútua.

Dona Julia ficava esperando seu menino chegar. Já havia preparado o jantar e aguardava para poderem comer juntos. Ela adorava conversar com o ele e sempre esperando uma oportunidade para falar o que o Preto Velho havia dito, mas o assunto religião nunca era comentado.

Ricardo por sua vez, queria saber a opinião de D. Julia a respeito da Umbanda, mas tinha receio de perguntar, de ser mal interpretado. Assim todas as conversas giravam em torno de outros assuntos, nenhum dos dois tomava a iniciativa.

O rapaz continuava a estudar. Queria conhecer tudo, queria se aprofundar no sincretísmo religioso, saber o porquê das coisas, tudo na teoria, nada na prática. Para dificultar, havia divergências entre os livros, havia duas explicações diferentes para um mesmo tema, realmente era difícil. Mas ele estava tão interessado que resolveu passar em frente ao Centro Espírita. Foi durante o dia e a casa estava fechada. Ficou do outro lado da rua, lendo a placa que dizia:

ASSOCIAÇÃO BENEFICIENTE ESTRELA DO ORIENTE

FUNDADA EM 23.01.1968

ATENDIMENTO SEGUNDAS E SEXTAS 20,00 HS.

Bonito nome, pensou. Estrela do Oriente. Preciso ser convidado. Acreditava que só devia procurar o Centro quem estivesse necessitado, e esse não era o seu caso, não tinha coragem de ir sem mais nem menos, por simples curiosidade, mas ao mesmo tempo precisava saber se os livros estavam certos.

Ele praticamente devorava os livros. Tudo o que era escrito sobre o assunto, interessava. Tanto estudou e se dedicou que já se podia dizer que tinha mais conhecimentos que muitos Pai de santo, e isto sem nunca ter freqüentado um terreiro.

Ricardo era o que nós poderíamos dizer um estudioso. Tal qual um pastor ou um padre que estuda a bíblia, que sabe todas as passagens da vida de Jesus sem nunca ter estado lá, esse era Ricardo com as coisas de Umbanda. Sabia tudo, mas não tinha para quem contar.

Ricardo sabia que a Umbanda era uma religião brasileira. Era uma ramificação do Candomblé, uma mistura com o Kardecismo, uma pitada de catolicismo. Sabia que a Umbanda existia para combater o mal, o outro lado, o lado das sombras e da maldade que também tem a sua religião que é a Quimbanda.

Conhecia todos os Orixás, os guias e protetores, sabia como saudar um Orixá, conhecia as bebidas, os rituais, as cores das linhas, conhecia o sincretísmo com a religião Católica. Se quisesse podia escrever um livro. Isto sem nunca ter estado em uma gira ou sessão. Mas sabia que, mais dia menos dia, estaria lá.

D. Julia, por sua vez, havia esquecido o que o Preto Velho dissera. Afinal de contas o rapaz estava mudado. Já não ficava deitado o tempo todo, estava trabalhando com vontade e era como um filho querido. Adorava ficar conversando após o jantar, o jovem era muito inteligente, conhecia um pouco de tudo, só não falavam de religião.

Ricardo estava muito feliz. Afinal sua vida estava começando a entrar nos eixos. Já tinha um trabalho, nada fixo, mas não faltava o dinheiro necessário para se manter. Adorava os livros, adorava D. Julia, seus sonhos já não tinham tanta freqüência, mas quando vinham eram maravilhosos.

Rodrigo Avelar era um Rei cigano. Filho de um cigano com uma nobre da corte, da mãe ele herdara a classe, a desenvoltura, o charme. Se não fossem os trajes seria confundido com um nobre. Já do pai herdara a força, a arrogância, o poder de liderança, a vontade de defender a sua raça. Tinha o respeito e a submissão de todas as tribos, era temido. Rodrigo Avelar, O rei dos ciganos.

Sarita era a sua Rainha, a sua razão de viver. Ele a amava, e era correspondido. Não importava esta história de prometida, se por acaso ela não fosse a prometida, não importava, ela seria sua de qualquer jeito.

Realmente aquele acampamento cigano era diferente de todos os outros. Não eram ladrões e ninguém tinha coragem de persegui-los. Ninguém sequer ousava falar mal do povo cigano ou maldizer a raça. Eram temidos e se quisessem podiam dominar tudo que estava à sua volta, mas Rodrigo Avelar queria somente viver em paz.

Como em toda história havia um descontente, para Miguel não bastava viver em harmonia, não bastava a liberdade, não bastava o respeito de Rodrigo. Ele queria muito mais, não bastava ser o braço direito, ele queria ser o chefe. Queria Sarita e isso fazia com que ele odiasse o Rei e todos aqueles que o seguiam. Negava seu povo, suas tradições, queria ele ter nascido nobre.

Na cabeça de Miguel as idéias iam surgindo e ele ficava maquinando golpes contra o Rei. Pensava que sendo ele o Rei dos ciganos, poderia invadir os vilarejos, dominar o povo e aos poucos chegar até a classe mais nobre pela força e pelo medo. Afinal de contas eles eram guerreiros e serviriam para as suas intenções. Faria de Sarita uma dama, forrada de jóias e títulos. Ele sabia esperar.

CAPÍTULO V

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Ricardo estava a cada dia entendendo mais o seu sonho.

Somente agora ele sabia que Sarita não dançava para ele. As pessoas não olhavam com respeito para ele e sim para quem estava ao seu lado, Rodrigo, o Rei e ele estava sempre do lado, era o homem de confiança, era o braço direito do cigano. Ou seja ele não era nada, queria o poder, e para isso muita coisa ainda ia mudar.

Como se fosse uma novela, o sonho de Ricardo aos poucos vinha desvendando a saga do Rei dos ciganos. A cada nova noite de sonho, uma novidade, uma surpresa.

Sentia-se meio culpado pelas ações de Miguel. Ele Ricardo jamais trairia um amigo. Mas como era possível. Nos sonhos, ele era Miguel, e iria atraiçoar o seu melhor amigo. Quisera poder entrar no sonho e mudar o que estava para acontecer.

Ricardo estava vivendo duas vidas: uma acordado, outra quando estava dormindo e sonhando. Não gostava do que estava acontecendo na segunda.

Na vida real, estava entusiasmado com o que descobria sobre a Umbanda. Verdade é que não havia freqüentado um terreiro, mas ia à igreja com D. Julia e ao ver as imagens saudava como se estivesse perante aos orixás. Assim sendo, ao ver a imagem de nossa senhora, saudava como se estivesse perante a entidade:

- Odê -iá -ê Iemanjá !

Perante a Imagem de Jesus Cristo saudava :

- Exe Babá, Benção Salve !

E assim por diante. Cada dia uma nova revelação. Aprendeu a saudar Exú. Ao passar em encruzilhadas ou em portas de Cemitérios Ricardo saudava baixinho:

- Exú, Mojubá, salve a sua banda !

Hoje sabia quase tudo na teoria. Realmente era dedicado, um verdadeiro estudioso. Hoje ele já sabia como é maravilhoso viver em sincronia com o espiritual, então no dia a dia tudo parece novo. Hoje para Ricardo, qualquer coisa na cor branca representa Oxalá. A água que todos nós bebemos é a bebida de Oxalá, assim como o leite e o mel.

E assim cada cor, cada comida, cada bebida, quase tudo que está a nossa volta, representa um orixá ou uma entidade.

Realmente a vida dele estava mudando para melhor. Já não precisava procurar trabalho, já não havia razão para desânimo. O trabalho o procurava, serviço não faltava, parecia que os Orixás estavam ajudando mais um filho de fé.

Hoje já tinha uma família: D. Julia. A amiga, a mãe. Tinha uma razão para voltar para casa. Sim sua casa, porque já não morava naquele quarto diminuto, já tinha um lugar só seu nos fundos da casa de D. Julia.

Neste quarto Ricardo guardava suas poucas roupas e seus muitos livros, Havia uma imagem de São Judas Tadeu guardando aquele local, sempre um copo de água, um solitário com uma rosa e às vezes uma vela branca.

Final da tarde era sagrado o jantar com D. Julia. Depois o bate papo até bem tarde, aquela conversa que os filhos hoje já não têm com os pais. Contar como foi o seu dia e ver o sorriso de felicidade de um pai ou uma mãe. É tão fácil agradá-los, eles só querem ser lembrados. Não só no dia dos pais ou das mães, ou no aniversário, no natal etc. O que eles querem é o dia a dia, saber que o filho(a) está bem e, principalmente ouvir isso deles.

Portanto D. Julia era só felicidade. Tinha o filho que pedira à Deus, não podia esquecer de ir ao Centro e agradecer a graça recebida.

Sentados à mesa Ricardo ficava distraído olhando tudo, a mesa posta parecia uma oferenda, a toalha amarela lembrava Iansã, a jarra de água Oxalá, o verde da salada lembrava Oxossi, etc. Hoje tudo tinha um significado diferente, era muito bom viver assim.

Miguel procurava uma maneira de derrotar Rodrigo. Qualquer coisa menos enfrentá-lo. Sabia que perderia, teria que ser um plano perfeito. Quando é para fazer maldade parece que tudo fica mais fácil. Então Miguel começou a executar o seu plano. Primeiro espalhou o boato que o cigano estava armando todos os homens do acampamento para uma invasão ao vilarejo.

A notícia se espalhou feito pólvora e o Prefeito do lugarejo alertou às autoridades sobre a futura invasão. Aproveitou para pedir auxilio material para a sua comunidade. Começou a fazer política com o boato, afinal era um lugar de gente honesta e trabalhadora, um povo desarmado que seria massacrado pelos bandidos ciganos.

Tanto falou que as autoridades resolveram tomar uma providência:

Se eles vão atacar o vilarejo, usamos o fator surpresa a nosso favor, está resolvido, atacamos antes.

Miguel estava sempre no vilarejo. Procurava esconder suas raízes. Já não usava o tradicional brinco, seu punhal já não ficava na cintura. Andava com ele, mas ficava escondido. Nada de roupas com cores berrantes, não queria chamar a atenção para a sua pessoa, queria somente aumentar o medo do povo com relação ao ataque. Dizia ser um mercador e que havia passado pelo acampamento cigano e que não era um boato, realmente todos os ciganos estavam se preparando para uma guerra.

No acampamento tudo era paz, estavam todos trabalhando, o movimento era constante, todos os dias chegavam caravanas e se instalavam nas proximidades, mas era para a festa de casamento de Rodrigo e Sarita, um acontecimento único. Viriam ciganos de todos os lugares, uma festa para vários dias, seria inesquecível.

Na capital do reino as atividades também estavam aceleradas. Eles, sim, estavam se preparando para a guerra. Todos os dias chegavam soldados de outras províncias, a cada dia aumentava o contingente de soldados e armas.

Miguel aos poucos foi conquistando a simpatia dos habitantes da cidade. Afinal ele se arriscava indo ao acampamento cigano ver os preparativos e voltando para contar a todos o que estava acontecendo.

Os comentários de que havia um mercador que tinha acesso ao acampamento interessaram ao Prefeito. Mandou chamar Miguel e o convidou a se unir aos soldados como guia e informante. Ele não aceitou de imediato, mas era exatamente o que ele queria: não estar no acampamento no dia do ataque.

Ricardo acordou suando muito. Pensou meu Deus vão matar a todos, e tudo por minha culpa, eu sou o traidor.

Levantou-se fez a sua higiene pessoal e saiu para o trabalho. Estava pensativo. O sonho não lhe saía da cabeça. O que poderia fazer para avisar Rodrigo? Como impedir o massacre que estava para acontecer?

Naquele dia o trabalho não rendeu. Estava com a cabeça longe. Como impedir essa maldade? Teria que ser em sonho, mas como, se no sonho ele era o traidor?

Chegou finalmente a uma conclusão, não vou dormir, é a lógica. Se não dormir não sonho. E se eu não sonhar não acontece.

D. Julia também notou a diferença nas atitudes de Ricardo. Estava ausente, não quis comer, parecia dormir acordado, conversava com o rapaz e ele parecia não ouvir. Não falava, apenas concordava com a cabeça e ela se lembrou do Preto Velho.

Naquela noite não houve a conversa habitual. Alegando estar com dor de cabeça ele se recolheu ao seu quarto. Não conseguia pensar em mais nada, apenas no sonho. Sonho modo de dizer, era um pesadelo. Colocou o relógio para despertar com apenas quinze minutos. Pensou se eu dormir, acordo com o despertador.

Levou um susto com a campainha insistente do despertador. Engraçado, ainda não havia dormido. Repetiu a operação novo susto. Mais quinze minutos. Só que desta vez ele dormiu e não ouviu mais nada.

Sarita estava linda, Não vestia branco e sim amarelo ouro. Rodrigo vestia calça preta, camisa branca, botas, colete vermelho e um lenço na cabeça. Estava feliz. Havia chegado o dia.

Ciganos chegavam de todas as partes. Traziam presentes, mantimentos, barracas montadas para a estada, só iriam embora quando a festa terminasse. Famílias inteiras chegavam a todo momento. O povo assustado vendo tantas carroças imagina que transportavam armas. O clima estava ficando tenso. No acampamento, ninguém notou a ausência de Miguel.

Nas cercanias da cidade, o grande exercito estava estacionado, esperando apenas a ordem para atacar. O comandante perguntou a Miguel qual seria a melhor hora. Ele sorrindo respondeu:

- Quando estiverem se casando.

O comandante não entendeu e perguntou:

- Mas como? É um casamento?

Miguel, rápido, tentou consertar o que havia dito. O homem estava desconfiado, então ele disse:

- Senhor comandante: é tradição entre o povo cigano o casamento antes de uma batalha, pois se o noivo não voltar, a noiva deverá permanecer fiel ao marido até o final dos dias.

A explicação convenceu o militar e este ordenou que os soldados montassem em seus cavalos, colocando a infantaria em marcha.

No acampamento, o clima de festa contagiava a todos. Vinho era servido e a maioria dos homens já estava se embebedando. Não havia sentinelas, não era necessário, estavam todos lá, era uma festa.

Miguel, ao lado do comandante, esperava ansioso. Tentaria tirar Sarita do acampamento durante o ataque. Aproveitaria o fator surpresa. Afinal o comandante havia prometido poupá-la para ele, o novo Rei dos Ciganos.

CAPÍTULO VI

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O ataque foi fulminante. Pegos de surpresa os ciganos, quase não puderam reagir. Lutaram é verdade, mas foram massacrados. Algumas mulheres conseguiram fugir embrenhando-se no mato com crianças. Alguns homens também, mas a grande maioria foi exterminada.

Rodrigo lutou como um bravo. Matou muitos soldados e ficou feliz ao ver Miguel ao seu lado. Morreriam juntos, como irmãos. Pobre Rodrigo. Foi morto à traição, pelo amigo.

Sarita não abandonou a luta. Ferida por uma flecha, arrastou-se até onde estava Rodrigo e viu quando Miguel desferiu o golpe que tirou a vida daquele que ela amava. Não conseguiu dizer nada. Morreu ao lado de seu Rei.

Ao ver Sarita caída, Miguel viu seu plano ir por água abaixo. Tudo o que fizera, era por ela. Era por amor. Traiu seu melhor amigo em busca de gloria e poder, só assim ela ficaria a seu lado. Puro engano, Sarita amava Rodrigo. Agora havia perdido tudo: seu amor, seu amigo, seu povo.

Encerrado o ataque, o comandante reuniu sua tropa para contar as suas baixas, o fogo destruía algumas carroças e os enfeites nelas colocados contribuíam para aumentar as chamas e o que ele viu foi muitas mulheres e crianças mortas, ninguém estava preparado para uma guerra, fora enganado, havia liderado uma chacina contra um bando de inocentes.

Mandou procurarem Miguel por em todos os cantos de onde antes fora um acampamento cigano.

Vasculhavam por todos os cantos e não encontravam Miguel. O comandante agora já sabia que ele também era cigano. Havia sido reconhecido, só que ninguém encontrava Miguel.

Os guardas começaram a procurar no mato que rodeava o acampamento. Um deles ouviu um choro sentido. Afastou a vegetação e viu Miguel sentado, chorando ao lado dos corpos de Sarita e Rodrigo. Foi preso e levado a presença do comandante.

Escobar, esse era o nome do comandante. Homem duro, calejado por muitas batalhas, impiedoso mas correto. Ao ver o cigano amarrado, olhou diretamente nos olhos dele e disse:

- A pior espécie de homem é o covarde. Além desse, existe somente o traidor. E você cigano, consegue ser as duas coisas: covarde e traidor. Você não merece viver. Traiu o seu povo e graças a você vou carregar comigo o sangue desses inocentes pelo resto da minha vida.O que você tem a dizer em sua defesa, maldito?

Miguel, ainda chorando, olhou para Escobar e disse:

- Tudo o que vier a me acontecer é merecido. Eu mereço morrer. Mate o corpo, porque meu espírito já morreu. Se arrependimento matasse, não haveria necessidade de execução. Comandante, por favor, faça justiça. Mate-me pelo amor de Deus. Não conseguiu terminar a frase. Uma flecha certeira fez a justiça. E não veio pelas mãos de um soldado, mas sim de um jovem cigano.

Foi muito rápido. Os soldados correram para o onde havia partido a certeira flechada e ficaram admirados: O arqueiro era um menino. Sim nada mais que um menino que não fugiu e se dirigiu na direção do militar, olhava orgulhoso para o comandante, não demonstrava medo, era um general à frente de outro. Escobar admirado perguntou :

- Quem é você pequeno guerreiro ?

- Sou o que sobrou do meu povo. Sou aquele que vai reerguer a nação cigana. Nem todos morreram, e eu vou reuni-los. Não pense que queremos vingança. Agora eu sei que foi tudo obra deste traidor e ele recebeu o que merecia.

Escobar olhava com respeito aquele garoto. Jovem, impetuoso. lembrou-se de sua mocidade, já havia sido como ele. Ali estava um jovem de valor, nada mais justo que poupar a sua vida. Mas, antes, queria saber o nome daquele ciganinho, e perguntou:

- Como te chamas, jovem guerreiro?

- Meu nome não importa a ninguém, mas como me tratas com respeito aí vai: me chamo Diego Avelar e sou irmão do Rei.

- Pois muito bem Príncipe, segue em paz o teu caminho, já deves saber que também fui enganado por esse cigano, ao chegar na cidade vou pedir minha demissão e carregar comigo esse remorso pelo que aconteceu aqui. Vá cigano, encontre os que restaram do seu povo e como você mesmo disse reerga essa nação, vá com meu pedido de perdão, nada tenho contra ti.

Ricardo acordou sobressaltado, chorava muito. O remorso consumia suas entranhas. Havia sido o responsável por tudo. Deus jamais iria perdoá-lo. Era realmente, um covarde. A morte fora pouco, merecia sofrer muito. Morrer, sim, mas aos poucos. A morte rápida e quase indolor não havia feito justiça.

Permaneceu acordado o resto da noite. Sentia-se o últimos dos homens. um aperto no coração, um nó na garganta, uma vontade de chorar, uma dor lá no fundo da alma. Aquela dorzinha que machuca, que não tem cura, ou melhor que só é curada com o perdão. Mas quem iria perdoá-lo? Estavam todos mortos.

Chegou a hora de trabalhar e nada de Ricardo. D. Julia já estava preocupada com o rapaz. Desde à noite anterior, estava agindo de modo estranho. Parecia uma recaída. Sentia-se culpada por não tê-lo levado ao Centro Espírita. Agora podia ser tarde.

Esperou mais meia hora pelo rapaz e nada. Então resolveu chamá-lo. Encaminhou-se fundos da casa onde ficava o quarto do rapaz. Bateu na porta e não houve resposta, bateu novamente e pareceu ouvir uma voz. Colou os ouvidos na porta e ouviu Ricardo, parecia estar falando com alguém. Girou a maçaneta e a porta se abriu.

Ricardo, sentado na cama, nem percebeu a entrada de D. Julia. Falava sozinho, dizia ser um traidor, um covarde, que não merecia perdão.

D. Julia chamou pelo seu nome e ele não ouviu. Chamou novamente:

- Ricardo, meu filho, sou eu, D. Julia. Por favor, fale comigo.

Como se estivesse saindo de um transe, olhou para D. Julia e começou a chorar. Ela não sabia o que fazer. Meu Deus o que será que está acontecendo com meu menino.

- Deite-se meu filho, eu já volto.

Correu de volta para casa para preparar um pouco de água com açúcar, talvez isto o acalmasse. Quando voltou, Ricardo parecia estar dormindo. Deixou o copo com água e foi direto à casa de uma amiga que era médium do Centro em busca de ajuda.

D. Julia já não tinha idade para esses excessos. Chegou na casa da amiga sentindo falta de ar. Precisou se sentar e aguardar um pouco para recobrar a fala. Quando conseguiu, contou para amiga a história de Ricardo. Não omitiu nada. Pediu ajuda. Estava desesperada. Precisavam fazer alguma coisa pelo rapaz e tinha que ser agora.

Claudia ouviu tudo em silencio. Parecia meditar. Não disse nada, levantou-se, foi até o quarto e voltou com uma pequena sacola. Abriu o armário, pegou algumas velas e disse :

-Vamos querida, vamos ver seu filho.

Chegaram ao quarto e Ricardo dormia. Mas era um sono agitado, resmungava palavras estranhas, acordava sobressaltado e tornava a dormir, D. Julia vendo aquilo começou a chorar.

Claudia pediu que ela se acalmasse pois iria precisar de sua ajuda, abriu a sacola e retirou várias guias. Beijou-as e as colocou no pescoço. Acendeu uma vela e começou a rezar o Pai Nosso.

D. Julia acompanhou a reza e aos poucos, rezando viu que Ricardo se acalmava. Apenas um soluço de vez em quando. Rezaram com fé e concentração. A partir daí, Claudia entrou em transe e incorporou sua entidade.

Aproximou-se do leito, olhou para o rapaz deitado e pediu um copo com água. Assim que foi atendido estendeu as mãos sobre a cabeça do rapaz e passou a lhe ministrar um passe espiritual. Ele já não se virava tanto na cama, parecia ter um sono tranqüilo.

Nesse momento Ricardo abriu os olhos e assustou-se com o que viu. O que estaria fazendo um índio em seu quarto? Estava tão cansado que não acreditou no que via, devia estar sonhando ou delirando. Mas era verdade, ali estava ele, alto, forte, imponente, cabelos negros trançados, apenas uma pena sobre o alto da cabeça, pele morena queimada pelo sol, colar de dentes no pescoço, a tanga de penas multicoloridas, no braço esquerdo um amarrado de cipó e na perna direita, acima do calcanhar outro cipó com uma pequena pena.

Ricardo perguntou:

- Quem é você?

- Esta é minha amiga Claudia meu filho.

- Quem é esse índio?

O caboclo não chegou a responder, foi D. Julia quem respondeu:

- Este meu filho, é o Caboclo Estrela Guia e está aqui para lhe ajudar. Não tenha medo, tudo dará certo.

Medo? Ricardo estava encantado. Finalmente estava vendo o que era a Umbanda! Estava frente a frente com uma entidade. Lembrou-se de tudo que havia lido a respeito.

Caboclos são o braço forte da Umbanda. Trabalham com desenvolvimento de médiuns, fazem curas com ervas, desobsessões, problemas psíquicos, e repressão à espíritos errantes. E mais: na maioria dos terreiros, é a primeira linha a ser chamada. Atendem as pessoas e lhes ministram passes magnéticos.

O caboclo terminou o passe e perguntou :

- Como tá exê, fio? Exê tá mió?

A princípio, o rapaz não entendeu a pergunta. D. Julia, então, falou que o caboclo perguntava se Ricardo estava melhor.

Ricardo sorriu feliz. Claro que estava melhor. E agora podia conversar com uma entidade. feliz da vida falou:

- Okê Caboclo, salve suas forças e muito obrigado!

D. Julia estava boquiaberta. Como era possível Ricardo saber cumprimentar um caboclo? Mostrava conhecimento. Ah! se ela soubesse antes, o rapaz já estaria indo com ela ao terreiro ha muito tempo. Graças a Deus, antes tarde do que nunca.

O caboclo que estava ajoelhado ao lado da cama, levantou-se. Indicou para que Ricardo tomasse aquele copo de água, caminhou até onde estava a imagem de São Judas e saudou com a cabeça. Em seguida foi até onde estava a vela, fez uma saudação, batendo no peito com a mão direita e partiu.

Claudia parecia ter sido empurrada for uma força superior. Deu dois passos para trás e se recompôs. Beijou suas guias, fez o sinal da cruz e perguntou à amiga o que havia acontecido.

Dona Julia disse que o Caboclo Estrela Guia havia estado ali e dado um passe em Ricardo, que estava bem melhor, já estava de pé e sorria feliz.

- Meu filho, estou impressionada com você. Não sabia que você também era Umbandista!

- Não sei se sou, disse Ricardo. Nunca estive em uma sessão. Tudo o que sei é através de livros e nem sei se eles estão certos. Só sei que gosto, me sinto muito bem lendo e estudando tudo sobre a Umbanda. Sei que o caboclo que esteve aqui o Estrela Guia é filho do Caboclo Juriti e trabalha na linha de Oxossi, sei também que Oxossi é representado por São Sebastião. Aprendi muita coisa nos livros, mas se Deus quiser um dia irei a um terreiro e poderei usar tudo que aprendi, poderei ver todas as outras entidades.

Desta vez foi Claudia que ficou impressionada e perguntou:

- Quer dizer que você viu o caboclo?

- Sim, não era para ver?

- Meu filho, disse a mulher você tem um dom mediúnico muito raro, o dom da vidência. Isso é maravilhoso, você só precisa desenvolver essa mediunidade e começar a praticar a caridade. Você verá como tudo vai melhorar.

Claudia se despediu e foi embora com a satisfação do dever cumprido. Agora cabia ao rapaz procurar ajuda no terreiro onde com certeza suas qualidades mediúnicas seriam aproveitadas para praticar o bem e a caridade. Logo ele estaria como ela, de bem com a vida, leve e realizada. Nada mais gratificante, que ajudar o próximo.

D. Julia chamou Ricardo para comer alguma coisa. Desde a noite anterior o rapaz não se alimentava. Ele aceitou prontamente. Realmente estava faminto.

Disse a D. Julia que iria em seguida. Levantou-se e foi lavar o rosto.

O contato com a água terminou de despertá-lo. Estava se sentindo bem, o sonho parecia distante e finalmente tinha visto com os próprios olhos um caboclo, um emissário de Oxossi, o Senhor das Matas. Que coisa boa havia acontecido! Como era bom saber da sua mediunidade, saber que poderia praticar o bem e ajudar o próximo.

Sentou-se à mesa e Dona Julia trouxe a comida, sentou-se também e perguntou como o rapaz estava se sentindo.

- Muito bem, a senhora é que parece cansada, está precisando de alguma coisa?

- Não meu filho, é só cansaço. Você me deu um grande susto, não sabia o que fazer então fui correndo chamar a Claudia. Graças a Deus, deu tudo certo.

- D. Julia posso fazer uma pergunta indiscreta?

- Claro, meu filho, acho que entre nós não deveria haver mais segredos. Acho que já é hora de você parar de me chamar de Dona. Do que você gostaria de me chamar, meu filho?

- Se a senhora permitir eu vou chamá-la de Mãe a partir de hoje. Afinal a senhora tem sido uma mãe para mim. Nada mais justo que tratá-la como tal, o que a senhora acha?

- Você não sabe a alegria que me dá. Você já era meu filho e não sabia. Mas vamos lá, pergunte o quiser para a sua mãe.

- Sabe o que é mãe, eu gosto de estudar as coisas referentes à Umbanda. Nunca comentei nada com ninguém porque sei que existe uma certa precaução contra o espíritismo. Sei que lá no fundo todo mundo acredita. Nem todos freqüentam, mas quando a coisa aperta, é o caminho natural de todo mundo. Buscar ajuda através do espiritismo, não é verdade?

- Nisto você tem toda razão. Infelizmente você não pode dizer para todo mundo que é espírita. Existe realmente uma certa discriminação. Isto por culpa de terreiros que não são sérios, mistificadores e outros que praticam a maldade usando o sagrado nome da Umbanda. Por isso é preciso muita fé para assumir que é espírita e Umbandista. Você deve saber que é diferente. Você vai praticar a caridade e não será reconhecido. Sofrerá muita ingratidão, e quando algo não der certo com certeza irão culpá-lo. Afinal a sociedade precisa encontrar um culpado para os seus erros. Será sempre assim: primeiro você, depois a Umbanda, depois o espiritísmo em geral.

Deus, nosso pai sempre impôs dificuldades e sacrifícios aos seus seguidores. Desde Roma antiga, aqueles que o adoravam eram perseguidos e massacrados. Hoje existem várias religiões que cultuam o Senhor, mas não existe nenhuma tão perseguida quanto à Umbanda. Se ainda houvesse o circo romano e os leões, é para lá que nós iríamos. Se houvesse a inquisição, seríamos queimados.

Graças a Deus os tempos são outros. Existe a discriminação, a injustiça, a ingratidão mas com a graça de Oxalá, nós vamos seguindo o nosso caminho e cumprindo a missão por ele determinada.

Qual o filho que ao ver uma mãe adoentada, qual o pai que ao ver o filho em um leito, desenganado pela medicina, não procura por Deus? Existe muitas formas de encontrá-lo, a Umbanda é apenas mais uma. Só que depois de conseguida a graça aquele que a conseguiu em um terreiro renega o espiritísmo. Depois de conseguir o que procurava, abandona aqueles que o ajudaram e esconde de todos onde conseguiu a ajuda. isto é ingratidão.

Ricardo ouviu tudo que sua mãe disse em silêncio. Quase tudo que ela falara estava nos livros menos a parte da discriminação, da injustiça e da ingratidão. Ele não tinha medo. Afinal, desde pequeno era discriminado, esquecido e não morreu por isso. Se pudesse iria gritar ao mundo:

- Sou espírita, Umbandista, e praticante, Graças a Deus”.

A mãe olhava feliz para o novo filho. Aquela juventude, aquela fé e aquela vontade deveriam ser muito bem encaminhadas. O Centro onde freqüentava com certeza iria ajudar Ricardo a cumprir a sua missão. Aproveitou a alegria do rapaz para contar a respeito do Preto Velho e sobre o que ele havia dito sobre a mediunidade que ele tinha. Disse que iria na próxima sexta feira e ele deveria ir junto.

Ricardo era uma alegria só. Se ela não o chamasse, ele com certeza iria pedir. Pediu licença e foi para o serviço, havia perdido meio dia de trabalho. Em compensação havia ganho alguns anos de conhecimento.

O restante do dia transcorreu normal. Trabalhou, colocou em dia o serviço que estava fazendo com um amigo em uma casa. Desta vez Ricardo estava ajudando um encanador. Final de tarde, seguiu para casa com a certeza do dever cumprido.

Como sempre fazia D. Julia esperava por ele. Ao chegar, deu o primeiro beijo naquela que agora era sua mãe, jantaram, conversaram um pouco sobre amenidades e Ricardo se recolheu ao seu quarto.

Tomou seu banho e preparou-se para dormir. Sentiu que faltava alguma coisa. Foi até a imagem de São Judas, renovou a luz, colocando uma nova vela, trocou a água do copo, rezou um Pai Nosso e só aí foi dormir. Estava preocupado com o que iria sonhar. Passara todo o dia sem se lembrar, agora estava chegando a hora de dormir. Pediu ajuda ao Caboclo Estrela Guia e foi dormir.

CAPÍTULO VII

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O que restou do acampamento eram ruínas. Algumas carroças ainda estavam em chamas, muitos corpos espalhados, entre eles mulheres e crianças, animais domésticos e aves, parecia que nada com vida havia escapado do massacre. O cheiro de morte impregnava o ar, alguns abutres já habitavam as arvores próximas ao que havia sido o acampamento cigano.

Miguel caminhava em meio àquela desolação. Sentia muitas dores, estava ferido, machucado, aquela dorzinha que incomodava, aquela que vinha do fundo, a dor do remorso, da culpa, todos morreram e ele era o culpado. Não merecia estar vivo, mas estava.

Ouviu um barulho e correu a se esconder. Talvez fossem os soldados que estavam voltando. Ouviu vozes e reconheceu o dialeto de sua tribo. Quer dizer que alguns se salvaram? Por via das duvidas, continuou escondido.

Alegrou-se com o que viu: tendo à frente Diego de Avelar muita gente vinha chegando. Homens, mulheres, crianças, alguns feridos, mas a grande maioria saudável. Diego não permitiu que ficassem no acampamento levou-os para mais adiante e saiu a procura de outros.

Quando saiu em busca do que restou do seu povo, Diego encontrou alguns sobreviventes do massacre, alguns velhos, mulheres e crianças, Os homens haviam morrido todos. Mais adiante encontrou toda uma tribo que vinha do norte, estavam atrasados.

Ao avistar o acampamento cigano, galopou em busca de notícias. Foi levado perante o chefe e este reconheceu o irmão de Rodrigo. Abraçou o amigo e o convidou à sua carroça.

Diego a princípio nada disse a respeito do massacre. Queria ouvir o que José, o chefe daquela tribo, tinha a dizer. Diego bebeu água, José, bebeu vinho e aí ele contou porque estavam atrasados. Uma das mulheres havia entrado em trabalho de parto. Tiveram que acampar e esperar o nascimento da criança. Por isso estavam estacionados um pouco distante do local da festa.

O jovem cigano com lágrimas nos olhos contou o que havia acontecido ao acampamento. Contou da traição de Miguel, contou que estavam quase todos mortos, apenas alguns haviam conseguido escapar do massacre.

Uma lágrima solitária desceu dos olhos de José. Quanta injustiça. Eles eram pacíficos. Só queriam viver com liberdade. Quanta maldade abriga o coração dos homens. Um profundo silêncio cobriu aqueles dois homens. Choravam baixinho. Não pensavam em vingança. De que adiantariam mais mortes?

O silêncio foi quebrado por uma batida na porta da carroça. Alguém chamava por José. O chefe cigano levantou-se, limpou a lágrima teimosa que permanecia em seu rosto e abriu a porta dizendo:

- O que queres mulher? Não vês que estou ocupado?

- Perdoe-me chefe, mas nasceu. A criança chegou. É uma menina, breve poderemos partir.

José saiu da carroça e acompanhou a mulher. Acenou para que Diego o acompanhasse até a carroça da mulher que havia dado a luz.

Chegando à carroça, encontraram o pai radiante, ao ver o chefe disse feliz:

- É uma menina, José, é uma menina! Entrem por favor.

Entraram na carroça e viram a cigana deitada com a criança no colo. José pegou a criança nos braços, a criança sorria e este sorriso tirou a tristeza dos olhos dos dois homens. Diego aproximou-se e disse ao ouvido de José e disse:

- Posso lhe pedir uma coisa chefe?

- O que você quiser. Minha casa é sua casa.

- Será que você poderia dar o nome de Sara a esta criança? Em homenagem à noiva de meu irmão, em homenagem a Santa Sara, que veio nos mostrar a grandeza de Deus. Alguns ciganos morreram, mas aqui está a renovação, a vida, a certeza de que nossa raça continuará livre e unida.

José nem pensou e disse:

- Pois que seja, com a permissão dos pais, sede bem vinda ao mundo Sara. Que Deus esteja contigo e com todos nós!

Deixando a carroça reuniu os homens do acampamento e partiram em busca dos sobreviventes. Levavam pás e picaretas para o trabalho que teriam a seguir. Cavalgaram durante algum tempo e encontraram os ciganos sobreviventes. Alguns homens ficaram para dar assistência e o resto partiu com José em direção ao acampamento.

Homens calejados pela vida choraram ao ver o que havia sido um acampamento cigano. Vários estandartes mostravam que várias tribos haviam sido dizimadas, com lágrimas nos olhos começaram a cavar as sepulturas. O que havia sido um acampamento, hoje era um cemitério.

Ricardo acordou, levantou-se e foi beber um copo de água. Não estava agitado. Pelo contrário estava calmo e curioso com o que iria acontecer com Miguel.

O dia estava amanhecendo. Logo deveria sair para o trabalho, dirigiu-se até a imagem de São Judas e agradeceu pela noite bem dormida. Saiu para o quintal e respirou o ar da manhã. Estava ansioso pela chegada da noite. Hoje era o grande dia. Iria conhecer a Umbanda, trabalhando.

Tomou um café rápido, deu um beijo na mãe e saiu para o serviço. Estava contente. Com certeza o dia passaria rápido.

D. Julia terminou os afazeres da casa e foi visitar Claudia. Avisá-la que Ricardo iria com ela a noite no Centro, se haveria algum problema.

Claudia respondeu que problema nenhum. Só que hoje especialmente, não haveria atendimento ao público, apenas passes e que não haveria consultas. Seria uma sessão muito corrida, era aniversário de fundação da Sociedade, haveria uma festa e eles iriam dar passagem a todas as linhas, e que isto teria que acontecer antes da meia noite. Portanto a consulta do rapaz ficaria para outra oportunidade, mas ele era bem vindo à festa.

Realmente o dia para Ricardo passou rápido. De repente já era hora de ir para casa. Guardou as ferramentas, despediu-se de Pedro e voltou para casa. Estava ansioso.

Beijou a mãe e disse que logo estaria pronto. D. Julia falou a respeito da festa, que não haveria consultas, apenas passes.

Ricardo nem ligou. Melhor ainda conheceria tudo de uma só vez, correu a se aprontar.

Banho tomado, roupa branca. Não sabia porque tinha vestido aquela roupa. Não importava queria ir o quanto antes. Atravessou o quintal e chamou pela mãe.

D. Julia surgiu a porta e viu o rapaz de branco. Não disse nada mas pensou : “ Deus escreve certo por linhas tortas “. Desceu os dois degraus que separavam a entrada da casa do quintal, deu o braço ao filho e saíram.

O jovem perguntou se iriam tomar alguma condução. Estava curioso. Como seria este Centro. Só conhecia aquele em que havia feito o serviço, será que são todos iguais? Era muita ansiedade.

D. Julia, atenciosa, disse que não precisariam de condução. Daria para ir a pé. O Centro ficava a algumas quadras da casa.

O caminho era conhecido por Ricardo. Já tinha certeza que o local era o mesmo. Era muita coincidência. Ele só não sabia, que o destino estava escrito. Tinha que ser aquela casa que daria guarida a mais um filho de fé. Seu caminho era ali, sua vida mais dia menos dia terminaria ali, era a sua missão.

Chegaram a porta de entrada, Ricardo olhou para cima e viu a mesma placa com os mesmos dizeres:

ASSOCIAÇÃO BENEFICIENTE ESTRELA DO ORIENTE

Seus olhos chegaram a brilhar, não sabia dizer o que estava sentindo, vontade de rir, de chorar, de gritar, felicidade, não tinha explicação, era uma emoção diferente, um novo encontro com o seu destino.

Claudia os recebeu na porta, encaminhou os dois para uma das carreiras de bancos onde havia lugar, os acomodou, pediu licença e foi para junto dos outros médiuns.

Ricardo havia visto o Centro fechado. Agora estava vendo como realmente era. No Congá parecia haver uma estrela brilhando, uma claridade divina, os médiuns todos de branco com contas coloridas no pescoço, homens de um lado, mulheres com turbante branco do outro, ao centro o chefe do terreiro ou o Pai de Santo, à esquerda os atabaques com seus ogãs de prontidão.

O rapaz, com sua mediunidade, via o que nenhum outro conseguia. Via a aura que pairava sobre a cabeça dos médiuns, via em algumas pessoas da assistência um tipo de nuvem escura, eram pessoas que precisavam de ajuda e orientação, pessoas humildes como ele que buscavam a paz e o conforto para as suas amarguras, em outros via a mesma aura dos médiuns. Saboreava aquele momento aos poucos, era tudo novo, era a vida, a sua vida.

CAPÍTULO VIII

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Sem que ninguém pedisse, fez-se silêncio e o Pai de Santo tomou a palavra :

- Agradecemos a vós nosso pai Oxalá a graça concedida por mais um ano de trabalhos. Agradecemos aos seus Orixás, aos seus Emissários, agradecemos pela proteção dada a esta casa e pedimos sua proteção para esta gira e todas as outras que hão de vir.

Com a vossa licença, guardião, estão abertos os nossos trabalhos.

Todos os médiuns se ajoelharam e rezaram o Pai Nosso, Ricardo e a assistência acompanharam com fé, rezando junto.

O Ogã puxou o ponto de abertura e todos se puseram a cantar. Ricardo sabia a letra, hoje iria conhecer a musica.

- Vou abrir minha jurema, vou abrir meu Juremá. Com a licença de mamãe Oxum e do nosso Pai Oxalá! Já abri minha jurema, já abri meu Juremá. Com a licença de mamãe Oxum e do nosso pai Oxalá!

Terminado o canto todos se prepararam para a defumação. Novamente o Ogã puxou o ponto para a defumação da casa e de todos que ali se encontravam.

- Defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruda e guiné. Com benjoim, alecrim e alfazema, vamos defumar filhos de fé.

Enquanto os fiéis cantavam, o chefe do terreiro seguia defumando a casa, o Congá, os quatro cantos, em seguida os médiuns e depois todas as pessoas que estavam na casa.

Ricardo olhava a tudo maravilhado. Era igualzinho ao que ele havia imaginado. Saboreava cada momento, chegou a ficar de pé encostado na parede para não perder nada.

Terminada a defumação, o chefe do terreiro começou a saudar os Orixás. Chamaria a todos e nem todos viriam, disto ele já sabia, fazia parte do ritual. Foram entoados cantos para Oxalá, Iemanjá, Ogum, Oxossi, Xangô, Omulu, Nanã etc.

Só Ricardo e, talvez o Babalaô tenham visto, quando da saudação de Ogum, um raio brilhou sobre a cabeça de um dos médiuns. Imediatamente o Ogã começou a cantar:

-- Se meu pai é Ogum, vencedor de demanda, ele vem de Aruanda prá salvar filhos de Umbanda. Ogum, Ogum Iara....

Como se uma força misteriosa o impelisse para a frente, o médium caiu postado aos pés do Congá. Permaneceu deitado, as mãos estendidas como em uma prece, todos os filhos saudavam Ogum, o Orixá Deus da guerra, o Orixá das demandas.

Ricardo estava boquiaberto. Ele via o Orixá, não o médium. Ele via aquele guerreiro, parecia um soldado romano, vestindo vermelho e dourado. O cambono lhe entregou duas espadas de São Jorge, Ricardo via duas espadas brilhantes, Cruzou-as no peito e tornou a saudar o Congá, virou-se em direção à assistência e levantou os braços com as espadas cruzadas e abençoou aquele povo. Em seguida com uma das espadas, apontou em direção a assistência. Ninguém entendeu. Ricardo, sim. Era ele que Ogum estava chamando.

Pediu licença e foi se aproximando do tablado onde Ogum esperava imponente. Ricardo ajoelhou-se e o Orixá colocou sobre sua cabeça as duas espadas. Levantou-as e repetiu a operação. Fez sinal para que ele se levantasse e indicou um lugar entre os médiuns onde ele deveria ficar. Feito isso, saudou novamente o Congá e partiu.

Desta vez a força impeliu o médium para trás e ele foi seguro por seus companheiros. O Babalorixá assumiu novamente a sessão e disse:

-- Feliz o terreiro que tem Ogum como seu protetor.

Ricardo quis sair e voltar para o seu lugar, mas o chefe do terreiro disse que ele deveria permanecer ali, junto com os médiuns, como Ogum ordenara.

O rapaz atendeu prontamente, estava feliz. Ogum, o senhor do ferro, do aço, do fogo, dos embates materiais e espirituais estava com ele, só não pôde identificar qual, afinal eles são sete, ele sabia o nome de todos, Ogum Beira Mar, Ogum Naruê, Ogum Iara, Ogum de Malei, Ogum Rompe Mato, Ogum Megê e Ogum Nagô. Se fosse necessário ficaria ali o resto da vida.

O chefe do terreiro assumiu sua posição no centro do circulo que formavam os médiuns e pareceu se concentrar. O Ogã começou a cantar o ponto dos caboclos, o ponto que trará o chefe da legião que irá organizar os trabalhos.

-- Um grito na mata ecoou. Foi seu Pena Branca que chegou,...

O chefe do terreiro foi sacudido por uma força e incorporou o Caboclo Pena Branca. Ricardo viu a sua chegada majestosa, um cacique, lindo cocar de penas, arco e flecha na mão, saudou o Congá e cumprimentou todos os médiuns com uma espécie de abraço. O rapaz também recebeu o cumprimento de Pena Branca. Ele estava lembrando o que havia lido sobre o caboclo Pena Branca. Ele era o chefe da nação Tamoio.

Os cânticos de saudação continuaram

-- Ouvi meu pai assobiar, ele mandou chamar, bis

Vem de Aruanda Auê, vem de Aruanda, todos os caboclos da Umbanda vem de Aruanda Auê.

Um a um os caboclos foram incorporando. Ricardo mal podia crer no que seus olhos estavam vendo: índios, caboclos, caboclas, nem de todos ele ouvira falar, conhecia somente um o Caboclo Estrela Guia, mas lá estavam o Caboclo Macaré, a linda Cabocla Jurema, Caboclo Sete Flechas e muitos outros.

Saudaram-se entre si e a um sinal do Pena Branca, começou a sessão de passes para todos ali presentes. Foi formada uma fila e um a um foram sendo atendidos pelos Caboclos.

Quem deu o passe em Ricardo foi o Caboclo Pena Branca.

O rapaz não acreditava no que estava acontecendo, logo ele que nunca fora notado, que sempre fora esquecido estava tendo um tratamento especial pelas entidades.

Terminada a sessão de passes os Caboclos foram partindo como vieram, um a um. Pena Branca permaneceu em terra esperando a próxima linha.

A musica começou suave e pouco a pouco todos estavam cantando:

- Sentado no meio das flores, olhando pro céu a ver luar. São Pretos Velhos que vem de Aruanda, que vem no terreiro para trabalhar.

Novamente um a um os médiuns foram dando passagem a incorporação da linha dos Pretos Velhos. Eles foram chegando, Pai Joaquim de Angola, Vovó Cambinda, Pai José etc.

Devido ao pouco tempo que havia para os trabalhos esta linha pouco permaneceu em terra. Foram saudados por todos e iniciaram a sua subida.

Ricardo viu aqueles negros escravos bem velhinhos, consumidos pela idade e pela chibata dos feitores, todos curvados como em uma oração. A dificuldade para andar, passo a passo, alguns necessitavam de ajuda para se sentar, mas estavam todos trabalhando.

Os trabalhos tinham que ser rápidos. A passagem das linhas teria que terminar antes da virada ou seja a meia noite. Eles foram chegando, os Boiadeiros com seus laços, suas boleadeiras, a sua saudação tradicional Eh Boi... Arreia boi!

Depois dos boiadeiros foi a vez das crianças. Agora, sim era uma festa! Fizeram bagunça, (no bom sentido), pediram balas, refrigerantes, algumas pediram velas cor de rosa e as acenderam em frente ao Congá. Ricardo nunca tinha visto tanta felicidade, como via naqueles pequenos êres, emissários de Cosme e Damião.

A subida das crianças foi diferente. Deram-se as mãos e partiram todas juntas para a Aruanda.

Na realidade, os médiuns estavam um pouco cansados. Eram muitas linhas de uma vez só. Então o Chefe do Terreiro resolveu dar um pequeno descanso, para que bebessem água e recuperassem as energias.

Aproveitando o pequeno recesso, Ricardo desceu e foi até onde D. Julia estava sentada. Deu um beijo na mãe, e esta preocupada perguntou:

-- E então meu filho, está se sentindo bem?

-- Claro mãe, nunca estive melhor. Estou encantado com tudo que estou vendo. Eles são maravilhosos! Parece até que eu estou sonhando.

-- Realmente, o pessoal do Centro é maravilhoso e muito atencioso com todos.

-- Eu sei que são, mãe, mas não é deles que eu estou falando, estou falando dos guias.

-- Quer dizer que você realmente os vê, Ricardo? Deve ser muito bonito.

-- Se eu conseguisse contar com palavras, poucas pessoas acreditariam no que eu estou vendo. Mas não importa. Eu sei o que estou vendo e agradeço a graça que estou recebendo.

O som do atabaque avisou que os trabalhos iriam reiniciar. Desta vez foram chamados os baianos. Todos começaram a cantar o ponto:

- Se ele é baiano, agora que eu quero ver. Dançar catira no azeite de dendê. Eu quero ver os baianos da Aruanda, trabalhando na Umbanda pra Quimbanda não vencer.

O chefe do terreiro recebeu o seu baiano, os outros vieram quase juntos. Muita alegria, o povo da Bahia havia chegado, com seu linguajar típico. Saudavam uns aos outros, chamando de peste e saudando o Senhor do Bonfim e a Senhora dos Navegantes. Era um povo alegre, não tinha como controlar a espontaneidade dos baianos. Eles iam até a assistência, cumprimentavam a todos. Alguns perguntavam que festa é essa se não tem leite de cabra, ou coco? Os cambonos explicavam que era apenas uma passagem para marcar presença. Para eles, não importava, estavam em terra prontos para qualquer trabalho.

Devido ao horário avançado, começaram a cantar o ponto para a subida da linha. Um a um, saudaram o baiano chefe e foram partindo, o último a subir foi o baiano chefe. Saudou a todos agradeceu aos Orixás por mais um ano de existência daquela casa e partiu rumo a sua Aruanda.

Quando a linha dos baianos partiu, começaram a entoar o canto para o povo das Águas, para limpeza dos médiuns e dos assistentes.

- Ai ie ie Ai ie ie Mamãe Oxun....

E o povo dos águas começou a baixar naquele terreiro, limpando os médiuns, a casa, a assistência, levando para as águas tudo de mal que pudesse estar presente.

Como eram lindas aquelas ninfas, sereias, mães dágua, só Ricardo conseguiu vê-las. Estranho que estavam tão perto e ele só conseguia vê-las bem distantes. Era como se uma cortina os separasse, uma cortina que parecia água, um mistério para ele.

Tão logo partiu o povo das águas, o chefe do terreiro reuniu todos, voltaram ao círculo inicial e o mesmo canto de abertura foi entoado. Havia apenas uma pequena mudança na letra para o encerramento.

- Vou fechar minha Jurema, vou fechar meu Jurema (bis] Já fechei minha jurema, já fechei meu Juremá, com a licença de mamãe Oxun e do nosso pai Oxalá.

Feito isto, todos se ajoelharam e rezaram o Pai Nosso, levantaram-se, bateram a cabeça no Congá e começaram a retirar as guias.

Uma cortina foi puxada e escondeu o Congá. O chefe do terreiro pediu que quem estivesse com crianças se retirasse. Avisou que o trabalho que faltava era muito pesado e não convinha a presença de crianças. Quem quisesse também poderia se retirar.

Algumas pessoas se retiraram, umas pelas crianças outras pelo adiantado da hora, estava passando da meia noite. O chefe do terreiro reuniu os médiuns e o círculo foi novamente formado, só que todos estavam de costas para o Congá.

- O sino da igrejinha faz delém delom (bis) Deu meia noite o galo já cantou, todos os exús são donos da gira, Oi corre gira que Ogum mandou ....

Foi a vez do povo da escuridão, das encruzas, dos cemitérios marcar a sua presença. Arrogantes falando palavrões chegaram os Exus, os senhores da noite, da sombra.

Ricardo não sentiu medo de estar ali lado a lado com estas entidades. Sabia que elas trabalham na base da troca. Tanto podem fazer o bem como o mal, isso em troca de algum agrado, se o terreiro é sério como este que ele estava, eles só trabalhariam pelo bem, trabalhariam em conjunto com os guias da direita. O rapaz conhecia alguns pelo nome: Sete Porteiras, Tranca Rua, Tiriri, Molambo, Corcunda. Chegaram também as Pombas Gira, todas conhecidas: Maria Padilha, Pomba Gira Cigana etc. Participaram da comemoração, beberam marafo, champagne, fumaram charutos e os compadres partiram.

Estava encerrada a comemoração daquela casa e todo mundo foi cada um para a sua casa, com a certeza do dever cumprido.

Ricardo, Claudia e D. Julia saíram juntos, moravam perto um do outro e foram comentando o que havia se passado. Elas não se conformavam que o rapaz conseguisse ver as entidades. Era um dom diferente e elas sabiam disto. Ele era uma felicidade só. Finalmente estava sendo notado e por entidades de um nível espiritual superior.

Ricardo nem pôde falar do seu sonho. Não era dia nem hora. Aliás, nem se lembrou. Foi tudo muito rápido. Conheceu novas emoções naquela noite e fez novos amigos entre os freqüentadores da casa. Principalmente entre os guias. Considerava as entidades como os amigos que ele nunca teve.

Agora, deitado em sua cama, procurava organizar os pensamentos. Procurava rever tudo o que havia acontecido naquela noite especial, desde que Ogum o chamara para ficar entre os médiuns da casa. A vida dele parecia ter dado uma reviravolta, estava animado e confiante. Lembrou-se da moça que havia conhecido no intervalo da sessão, Jandira, sobrinha de D. Claudia, moça bonita, educada e o tratara com respeito. Também, pensou ele, com esse nome só podia ser boa gente. Além do mais, ela era parecida com uma imagem que ele havia visto da Cabocla Jandira e era idêntica a Sarita dos seus sonhos. Seria coincidência ou ele estava imaginando coisas?

Com a cabeça forrada por esses pensamentos, Ricardo virava-se de um lado para o outro e não conseguia dormir. Levantou-se e bebeu um pouco de água, sentia a garganta seca. Tornou a se deitar e, cansado, dormiu.

CAPÍTULO IX

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Miguel estava escondido atrás do que havia sido uma carroça. Viu Diego voltar com vários ciganos e começarem a cavar covas para enterrar os mortos. Eram muitos, então eles passaram a escolher os que seriam os primeiros, aqueles que estavam com feridas expostas. Pegaram folhas das arvores e cobriram todos até que fossem enterrados. Pensaram em fazer uma grande fogueira, mas José foi contra. Achou que deviam ser enterrados e aquele local seria considerado sagrado por todo o povo cigano. Seria um lugar de paz e meditação. Diego prontamente concordou.

O trabalho teria que ser feito com rapidez. Eram poucos homens e muitos corpos para enterrar. Passaram a fazer grandes valas e famílias de quatro ou cinco pessoas eram enterradas juntas.

José estava atarefado em uma vala quando foi chamado por um dos homens. Havia encontrado o corpo de Rodrigo. O cigano pulou do buraco, chamou Diego e foram para o local onde estava o corpo de Rodrigo.

O jovem cigano tentara o tempo todo ser forte, não ceder às emoções, mas quando viu o corpo do irmão de mãos dadas com a sua Rainha, não se conteve.

Aquele choro estava preso em sua garganta. Não conseguiu mais segurar. Chorou e foi consolado por José que também não conseguiu segurar. Choraram abraçados a morte do Rei, do irmão, do amigo.

Miguel, escondido, também chorou. O remorso e o arrependimento machucavam mais que a ferida que ele tinha no peito. A flecha ainda estava encravada. Soluçava baixinho, com medo de ser descoberto. Estava arrependido. Era um crápula, havia matado o amigo, a mulher que amava e quase toda uma raça. Merecia ser castigado por toda a eternidade.

Ficou distante, olhando o movimento dos homens. Queria poder ajudar, queria pedir perdão a todos e depois ser executado. De repente, um dos ciganos chamou José para perto de uma moita, havia mais um corpo. José e Diego se encaminharam para o local e ajudaram o homem a carregar aquele cigano. Engraçado, aquele cigano estava com uma roupa igual a sua, nem parecia cigano. Sorrateiramente, se aproximou para ver quem era.

O susto foi enorme: Aquele cigano, vestido com roupas diferentes dos outros, era ele. Ficou pasmo. Como era possível? Ele estava ali, ferido, mas vivo. Não se conteve e gritou:

- Eu estou aqui, nem a morte me aceitou!

Ninguém pareceu ouvi-lo. Continuaram fazendo o serviço. Tornou a gritar. Saiu do local onde estava para que todos o vissem. Ninguém notou. Ficou desesperado, não estava entendendo nada. Começou a caminhar por entre os homens, ninguém o via. Estava cansado e deitou-se ao lado de Rodrigo e Sarita. Tentou falar com o que fora seu melhor amigo. Chamou por Sarita e não obteve resposta. Nem os vivos, nem os mortos sabiam que ele estava ali.

Os trabalhos continuavam acelerados. Realmente, eram muitos corpos para baixarem à sepultura. A noite caiu e ainda faltava muito para terminar. Fizeram uma fogueira e pararam para o merecido descanso. Tão logo raiasse o dia, reiniciariam as atividades.

Aos primeiros raios da manhã, José foi o primeiro a se levantar e foi só aí que percebeu que, na pressa para enterrar os corpos as valas tinham sido feitas aleatórias, só que existia um sincronismo exato: Os homens haviam feito um círculo que acompanhava toda a extensão do acampamento. Sem querer, ou sabe-se lá porquê, aquele cemitério estava sendo modelado. Ele iria ter uma formação única. Realmente era para ser um santuário.

José pegou um graveto e na terra desenhou o círculo que estava formado. Tinha duas entradas. Dentro deste círculo ele desenhou outro com duas entradas nos lados opostos ao primeiro. Feito isso desenhou mais um círculo dentro do menor, também com duas entradas opostas às do segundo círculo e assim por diante, terminando no sétimo círculo, bem pequeno mas com três entradas. Parecia um labirinto. Olhou admirado o que havia feito e acordou todo mundo. Reuniu o grupo e mostrou a posição que deveriam ficar as covas. Todos gostaram e o chamaram de inventor.

O CEMITÉRIO CIGANO

E assim foi feito. Como o primeiro círculo estava pronto, só teriam que fazer os outros tomando por base este. Claro que o trabalho aumentou e muito, mas ninguém se importou.

Miguel andava em meio a todos, também achou bonita a formação que estava acontecendo. Andava por todos os lados, olhava os corpos sem vida, parecia querer se castigar, se auto punir. Cada nova visão de uma mulher ou criança era como uma nova flechada.

No final da tarde deste dia, os homens começaram a cavar a cova que deveria ficar dentro do último círculo. Diego pediu que esta fosse mais larga. Queria que o irmão e Sarita ficassem juntos, e foi o que fizeram.

Pequenas cruzes feitas rusticamente com gravetos marcavam o novo local de paz e meditação para o povo cigano. Todos que haviam morrido no massacre estavam naquele círculo, menos um,... ele.

Miguel, apesar de tudo teve um enterro cristão. Não merecia estar entre aqueles que o amaram e ele traiu. Sua cova ficava uns dez metros longe do primeiro círculo. Não mereceu a cruz.

Miguel estava conformado. Realmente, ele achava que não merecia nada, não merecia nem mesmo ser enterrado. Deviam deixar seu corpo para os abutres e as feras. Ao ver seu túmulo se sentiu mais culpado. O povo cigano era bom e cristão.

Quando Rodrigo e Sara foram enterrados, todos os homens se ajoelharam e fizeram uma prece por todos aqueles infelizes. José pediu que Santa Sara os guiasse em busca de um mundo melhor, um mundo sem guerras, sem maldade, um mundo onde eles pudessem manter o que tinham de mais sagrado que era a liberdade. Pediu também que ela os mantivesse sempre unidos, tanto os que partiram como os que ficaram.

Terminada a prece, levantaram-se e partiram. Miguel permaneceu ali solitário e ferido.

Ricardo acordou suando. Sentia o suor escorrer de sua fronte. Levantou-se e foi lavar o rosto. Não conseguia explicar o que estava sentindo. A euforia da noite anterior e a tristeza do sonho, era um contraste muito grande. Pensava na festa e pensava no funeral. Na festa era apenas mais um. Em compensação no sonho era o vilão, o malvado, o traidor. Já não conseguia separar uma vida da outra. Em uma estava vivo, na outra não sabia.

Terminou sua higiene pessoal e saiu para a casa de D. Julia. O cumprimento foi um beijo. Sentou-se e tomou o café forte que desceu queimando, mas era bom, ajudava a despertar.

Alegando estar atrasado pouco conversou com D. Julia. Saiu diretamente para o trabalho. Hoje já tinha um serviço fixo, estava trabalhando em uma grande obra de uma construtora. Começara como servente de pedreiro mas aos poucos o capataz foi notando Ricardo. No horário da folga estava sempre lendo e fazendo anotações, era um servente diferente. Sabia ler, escrever e se expressar. Ricardo foi promovido à encarregado. Logo seria registrado. Pelo menos no serviço as coisas estavam bem encaminhadas.

Naquele dia em especial, durante o horário do almoço, o rapaz não ficou lendo. Almoçou rapidamente e saiu para o centro comercial do bairro onde estava trabalhando. Andava devagar, olhando as lojas, sabia o que estava procurando e encontrou.

Uma loja de artigos religiosos. Olhou a pequena vitrine e entrou. Alguém veio dos fundos e perguntou se podia ser útil. Ricardo estava de costas, olhando as imagens, virou-se e sorriu com a surpresa: quem estava ali, na sua frente era Jandira, a cabocla, Jandira, a cigana.

A moça também ficou surpresa. Gostara do rapaz filho de D. Julia. Esperava vê-lo no Centro outras vezes, mas ele estava ali, no dia seguinte! No mínimo havia perguntado para sua tia onde ela trabalhava. Agora vinha como se não soubesse que ela trabalhava ali. Golpe antigo, mas ela gostou.

Ricardo disse que queria comprar uma pequena imagem de Ogum para ter em casa. Queria homenagear o Orixá, e também queria uma guia de contas verdes, em homenagem ao Caboclo de D. Claudia que o havia ajudado.

Conversaram muito e se conheceram melhor. Eles tinham muita coisa em comum. Infância parecida, perda dos pais, morar com os tios. Tinham gostos parecidos. Ambos eram tímidos, não tinham muitos amigos, ali estava nascendo uma grande amizade.

A conversa estava tão animada que Ricardo quase perdeu a hora de voltar ao serviço. Saiu quase correndo e gritou que pegava a encomenda quando saísse do serviço.

Jandira ficou na porta da loja vendo o rapaz dobrar a esquina correndo. Entrou sorrindo. Ele era bacana, parecia um bom rapaz, trabalhador e sério. Quem sabe fosse ele o rapaz que a Pomba Gira havia dito que estaria em seu caminho? Quem sabe desta vez desse certo?

Jandira, dezoito anos completados a pouco tempo, até hoje não tinha encontrado um relacionamento sério. Moça do interior não estava acostumada aos modismos da cidade grande. Não gostava daquela garotada confiada, por isso quase não saía de casa e tinha poucos amigos.

Não queria admitir, mas não via a hora de Ricardo voltar para pegar a sua encomenda. Gostara dele desde a primeira vez. Era muito ajuizada e não se deixou levar pela primeira impressão. Agora depois de conhecê-lo um pouquinho melhor, estava entusiasmada. Tinham muito em comum, gostavam das mesmas coisas, os guias acertaram mais uma, tinha que ser ele.

Ricardo, por sua vez voltou correndo para a obra. O capataz estava ausente, portanto o responsável era ele. Tinha que fazer tudo certo para depois ser reconhecido.

A tarde passou rápida e ele também estava ansioso por rever Jandira, a Cabocla, a cigana. Um novo sentimento estava brotando naquele coração. Ricardo estava conhecendo uma nova força, algo que nem sabia que possuía. Jamais havia se interessado por mulher alguma. Verdade é que as notava, achava uma ou outra bonita, algumas interessantes, mas sabia que iria ser ignorado, por isso se afastava.

Os últimos raios de sol sumiam no horizonte. Jandira estava à porta da loja, com um pacote na mão. A loja já estava fechada. Esperava o rapaz com a sua encomenda. Ele já deveria ter chegado e até agora, nada. Resolveu esperar mais quinze minutos. Passado isto, foi em direção ao ponto de ônibus, desanimada.

Ricardo, quando estava chegando o seu horário, desceu do andar onde estava trabalhando. Lavou-se e se trocou. Já estava saindo, quando chegou um carro com alguns homens. Ele não os conhecia. Dispensou os empregados, que foram saindo um a um e foi atender os visitantes.

Caminhou em direção aos homens e perguntou se podia ser útil.

Um dos homens deu um passo a frente e estendeu a mão para Ricardo, se apresentando:

- Boa tarde, sou o Dr. José Maria de Andrade, o arquiteto da obra. Este é o Dr. Osvaldo, o engenheiro. Dr. Carlos, da Incorporadora, e este o Sr. Almeida, diretor da construtora.

Ricardo cumprimentou a todos e disse ser o encarregado. O capataz estava ausente, se ele pudesse ajudar, estava a disposição.

Foi o Sr. Almeida quem tomou a palavra. Disse que queriam ver em que ponto estava a construção. Afinal eles tinham um prazo para a entrega. Os apartamentos já estavam todos vendidos.

Ricardo, atencioso acompanhou o pessoal na inspeção. Mostrou o adiantado das obras, o estoque de materiais, passou as faltas que iriam surgir, deu sugestões, ouviu outras, mostrava conhecimento. Os visitantes saíram impressionados com Ricardo, tão jovem e tão responsável.

Assim que os visitantes saíram, correu para a loja. Queria rever Jandira. Chegou esbaforido, mal conseguia respirar. O esforço fora em vão: a loja estava fechada.

Aquele desânimo voltou e Ricardo quase chorou. Nada dava certo, um dia uma alegria, no outro uma tristeza, não havia um equilíbrio. as tristezas eram sempre maiores. Abaixou a cabeça e partiu para casa. Ainda tinha D. Julia, uma das poucas alegrias.

Caminhava de cabeça baixa lamentando o azar. Realmente, era muito azar. Aqueles homens tinham que aparecer logo hoje! Nunca tinha compromisso. No primeiro encontro, falhou. Caminhava e se lamentava.

Chegou ao ponto do ônibus e nem olhou para as pessoas que também estavam esperando o coletivo. Continuava olhando para o chão. Alguém bateu em seu ombro. Virou-se e um sorriso iluminou aquele rosto abatido: era ela, a Cabocla Jandira, a sua cigana.

Sentiu vontade de abraçá-la, mas se conteve. Pediu desculpas pelo atraso, perguntou se podia retirar a sua encomenda no dia seguinte.

Jandira ficou tão feliz com o encontro que nem soube disfarçar a felicidade. Duvidara dos Guias e errara. Ricardo estava ali, na sua frente. Sorrindo disse:

-- Se você quiser retirar amanhã, pode, mas não será preciso. Está aqui comigo. Se precisar de mais alguma coisa, disponha. Agora você já sabe o caminho.

Ricardo agradeceu e juntos tomaram o ônibus. Conversavam sobre tudo, pareciam velhos conhecidos. Descobriram a proximidade das casas e dos serviços. A partir do dia seguinte, iriam e voltariam juntos do trabalho.

Despediram-se com o compromisso marcado para o dia seguinte. Ricardo e Jandira estavam ligados por forças superiores, o cigano e a cabocla iriam trazer felicidade para aqueles dois jovens, iriam guiá-los no caminho do bem e do amor.

Ricardo chegou em casa. D. Julia já estava preocupada com a demora, ele nunca se atrasara. Mas ali estava o rapaz, sorriso no rosto e dizendo-se faminto. Jantaram e Ricardo contou sobre Jandira, sobre os engenheiros da construtora, estava radiante. A mãe acompanhou a felicidade de Ricardo com uma lágrima nos olhos. Ele merecia tudo de bom que viesse a receber.

Nesta noite, não conversaram muito. Ele tinha que se levantar cedo para o trabalho e havia jurado para si mesmo que nunca mais deixaria a moça esperando. Colocou a imagem de São Jorge ao lado de São Judas e saudou : Ogum iê meu pai! Colocou a guia de contas verdes aos pés da imagem e foi se deitar. Não podia esquecer de levá-las quando houvesse sessão no Centro, elas deveriam ser cruzadas por alguma entidade.

O sono desta vez chegou suave e tranqüilo. Alguns minutos depois de haver deitado, o rapaz adormeceu.

No cemitério cigano, não havia mais ninguém, os ciganos haviam se retirado. Miguel andava entre as covas. Vez por outra se detinha a frente desta ou daquela. Continuava andando, dava voltas em torno daquela formação. Parecia um labirinto que terminava em Rodrigo e Sarita. Não sabia dizer quantas vezes fez aquele percurso. Nada, apenas o silêncio que foi quebrado por muitas vozes roucas, urros, palavras que não davam para entender. E eles foram chegando, os senhores dos cemitérios, vinham ocupar mais um.

Miguel pode ver que havia um líder. Era obedecido pelos outros, impunha respeito. Chegaram até onde Miguel estava. Um deles perguntou:

- Quem é você? Quem lhe disse que pode ficar aqui?

Miguel, assustado, não sabia o que responder. Estava ali porque não tinha para onde ir. Ficou calado.

Desta vez quem falou foi o líder.

-- Eu sei quem é você, e você sabe que eu sei. Muitos dos que me acompanham não fizeram nem a metade das suas maldades, por isso estão aqui. E você cigano tem alguma dúvida?

-- Eu sei que fui malvado, traidor, assassino e tudo de ruim que se possa imaginar, mas estou arrependido. Estou sendo consumido pelo remorso, mas não tenho a quem pedir perdão.

-- Você é tudo isso que falou e muito mais. É frouxo, covarde, aqui não há lugar para arrependimentos. Fora da minha casa, você quer ser perdoado? Não é aqui que você vai encontrar o perdão! Fora! Fora! E Miguel saiu empurrado por aquelas estranhas criaturas para fora do círculo que formava o cemitério, ficou ao lado do seu túmulo. Nem os Exus aceitavam a sua presença ali.

Ricardo acordou com o som do despertador. Engraçado, estava com pena de Miguel. Apesar de todas as maldades, ele estava arrependido. Estava em busca do perdão. Quem sabe um dia ele consegue, pensou. Ele ou eu. Sei lá, já não sei mais nada, preciso de ajuda e ela está chegando. Ogun vai me ajudar e tudo voltará ao normal.

Tomou o seu café da manhã com a mãe e foi para o ponto de ônibus esperar Jandira. Não precisou esperar muito, ela chegou e o cumprimentou brincando:

-- Há quanto tempo Ricardo!

Ele sorriu. Puxa como ela era bonita! Seus cabelos negros brilhavam à luz do sol. O sorriso era encantador, os olhos pareciam duas pedras preciosas. Ricardo estava apaixonado.

Jandira seguia o mesmo caminho, o da paixão, mas ainda resistia. Não queria se enganar. Precisava manter os pés no chão. Nada de paixões fulminantes. Tinha que ser aos poucos. Teria que ser conquistada. Queria ser cortejada. Só entregaria seu coração a quem merecesse e soubesse retribuir.

Durante todo o percurso até o trabalho, os jovens conversaram. Ricardo contou sobre a sua vida, seu passado triste, seu presente animador e sobre seu futuro incerto. Jandira ouviu e disse quase a mesma coisa. Já não estava tão sozinha. Na pior das hipóteses, havia encontrado um grande amigo. Mas se dependesse dela, não ficaria nisto, eles iriam adiante. Quem sabe noivar, casar, ter uma família. Ela mesma admitia para si mesma: são muitos planos para um segundo encontro.

Todos os dias saíam para o trabalho juntos. Às vezes se encontravam para o almoço. Final da tarde, hora de voltar para casa juntos. Já eram dependentes um do outro. A relação entre os dois estava em um impasse. Não namoravam oficialmente porque Ricardo não pedia. Jandira ficava esperando. A cada encontro, pensava: é hoje! Mas Ricardo, tímido por natureza, não sabia como pedir. Para todos o casal já estava noivo. Estavam sempre juntos, não se misturavam com outras pessoas, estavam sempre conversando entre si. Pareciam cheios de segredos.

Finalmente chegou o dia de nova sessão no Centro. Estavam os dois ansiosos. Jandira estava desenvolvendo e Ricardo, não sabia, mas também já estava neste processo.

Desta vez, D. julia teve que ir com Claudia. O casalzinho iria direto do serviço. As duas tias estavam contentes com o relacionamento dos jovens, eles mereciam a felicidade.

CAPÍTULO X

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No centro todos se encontraram. O rapaz e a moça sentaram juntos no último banco e aguardavam o início da sessão. A abertura foi quase a mesma, o chefe do terreiro pediu proteção para esta e para todas as giras que iriam haver, foi feita a defumação da casa e dos presentes e logo em seguida foi chamada a linha dos Caboclos.

Pena Branca foi o primeiro a incorporar e passou a coordenar a chegada dos outros caboclos. Novamente, um a um, os caboclos foram chegando. Saudavam o Congá, saudavam o ponto que havia sido feito pelo chefe do terreiro, saudavam-se entre si. Alguns saudavam os presentes e finalmente se postaram todos em um semi círculo, aguardando a palavra de Pena Branca.

Pena Branca desceu o pequeno degrau que separava os médiuns da assistência e caminhou entre as pessoas. Foi até onde estavam Ricardo e Jandira. Os jovens, com a aproximação do caboclo, se levantaram e retribuíram o cumprimento. Uma saudação mais demorada, aquele abraço pela direita, pela esquerda e finalmente pela direita. Só que para Ricardo foi mais demorado, parecia um abraço de amigos que hà muito não se viam. Em seguida, pegou os dois pelas mãos e os levou para o centro da gira.

Foram os primeiros a receber o passe. Ricardo, feliz em meio aos índios, Jandira esperando para ver o que ia acontecer. Depois que todos da assistência receberam seus passes, Pena Branca colocou Jandira no centro e foi entoado o ponto dos caboclos.

Ricardo viu Jandira pender para um lado, voltar ao centro, parecia que ia cair, e ele viu quem estava ao lado dela: era ela, a Cabocla Jandira. Ele sabia, as duas eram muito parecidas, a sua cabocla terrena e a Cabocla Jandira do plano espiritual. Não houve incorporação desta vez, faltava muito pouco, talvez um pouco mais de concentração por parte da moça, mas não importava. Pena Branca sabia que estava chegando o dia, breve o Centro teria mais uma médium para ajudar nos trabalhos.

Pena Branca pediu que os dois permanecessem junto aos outros médiuns. Coordenou a subida dos caboclos, e por último partiu.

Houve uma pequena pausa e agora seria a vez dos Pretos Velhos. Foi entoado o ponto de chamada e os escravos começaram a chegar um a um. Desta vez foram providenciados bancos, tocos de madeira, cachimbos, todos os negros e negras se sentaram e passaram a atender os assistentes.

Pai Joaquim de Aruanda sinalizou para que Ricardo se aproximasse. O rapaz se ajoelhou ao lado do velho escravo, e este pediu que ele se sentasse. Fez sinal para que Jandira se aproximasse, a moça sentou-se ao lado de Ricardo.

- Pódi falá, mizifio, pódi abri o coração po nego véio. Zuncê chegô na casa di nosso sinhô Jisus Cristo i ele vai ajudá zuncês dois. Podi falá, num devi havê sigredo entre zunces dois.

Ricardo começou a contar do seu sonho. Contou tudo que havia sonhado, procurou não omitir nada e depois perguntou para o velho escravo:

-- Aquele cigano era eu, meu pai ? será que fui assim tão malvado e sem coração?

Pai Joaquim ouviu a tudo pensativo. Continuava pitando o seu cachimbo. Olhou para os jovens e disse:

-- Fio, zuncê sabe qui têm um dom, zuncê cunsegui vê u qui ninguém mais inxerga. Zuncê tem midiunidade, zuncê tem vidência, zuncê tá sendo chamado prá ajudá uma alma penada. Exe ciganu que apareci prá zuncê im sonho, tá pidindo ajudá, i só vósmice vai pode ajudá. Tú, zifia, vai ajudá tamém, cês dois vão ajudá muita gente, com a graça de nosso Sinhô Jisus Cristo.

Os jovens de mãos dadas e de joelhos ouviam as palavras do preto velho com atenção.

- Fio, zuncê pode sinti pena do cigano, mas num deve sinti remorsu. Num foi zuncê qui fez mardade, foi ele e como só zuncê vai pode ajudá, ele contou tudo qui fez nos sonho qui tú têm. Foi tão bem feitu que zuncê pensou que era o marvado. Zuncê num vai deixá di sonhá, só qui agora vai sê di veis in quandu. Tú já sabi onde ele tá, quando tú sonhá vai se só pra lembrar que ele ta lá isperando ajuda. Logo zuncê, mais tua cumpanheira, vão pude ajudá, intendeu?

- Entendi, meu pai. Graças a Deus, não fui culpado por tanta maldade. Eu me sentia culpado, parecia que eu era o malvado. Era só sonhar e lá estava eu fazendo maldade. Estava ficando desesperado! Graças a Deus, não fui eu.

Jandira ouvia a tudo impressionada. Ricardo nunca havia falado dos sonhos. Coitado, devia estar passando por maus lençóis. Já pensou sonhar toda noite com maldades? Só tinha que acordar doente. Agora estava explicado porque sua tia havia ido às pressas na casa de D. Julia.

Ricardo pediu licença ao velho e foi até onde estava D. Julia. Pegou o pequeno pacote e levou ao velho escravo. Desembrulhou e lá estavam a imagem de Ogum e a pequena guia de contas verdes. Pediu que o velho as cruzasse para sua proteção.

Pai Joaquim pediu uma pemba branca e riscou na base da imagem. Disse algumas palavras que Ricardo não conseguiu entender e a devolveu ao rapaz. Em seguida, pegou a guia de cristal verde e passou a pemba por toda a sua extensão. Apertou o nó que fechava a guia e queimou a ponta de linha que sobrou . Ficou com ela na mão e disse:

-- Fio, quem vai usá essa guia num é zuncê. É ela. A guia é da cabocla Jandira. Num disse qui ocês vão fazê muita coisa junto? Taí a prova. Zuncê sabia da cabocla antis dela! E zuncê, minina, tá chegando tua hora, num disse que zuncê ia incontrá?

Os dois jovens sorriram e o Preto Velho se preparou para partir. Os outros já haviam subido, só faltava o velho escravo. Despediu-se do casal e eles ajudaram o velho a se levantar. Caminhou devagar, com dificuldade e encurvado, foi até o Congá e saudou dizendo:

- Salve, Salve nosso sinhô Jisus Cristo! Salve a senzala di Nego, salve Zumbi di Palmares! Salve! Salve!

Tão suave como fora feita a incorporação foi a subida de Pai José. O médium voltou a sua posição normal como se nada houvesse acontecido. Havia um perfeito sincronismo entre ele e a entidade que havia partido.

Não houve tempo para mais nada. O ponto começou a ser cantado pelo Ogã e logo todos o acompanhavam:

-- Se ele é baiano, agora que eu quero ver.....

O povo baiano foi chegando, trazendo descontração para o ambiente. Eram alegres e comunicativos. Todos gostavam dos baianos. Sua chegada era sempre esperada por todos. Um a um, os baianos chegaram e passaram a dar consultas.

Cada linha que era puxada, causava um estremecimento em Jandira. Sentia tudo girar, as pernas bambas, mas durava muito pouco. Quando isso acontecia, Ricardo a amparava, dizendo saudações à linha que estava chegando. Agora saudava os baianos, com o tradicional Salve a Bahia.

Uma das baianas incorporadas se chamava Carmem. Alegre, boa conversa, compreensiva. Os baianos trabalhavam assim, com descontração. Muitas vezes, os filhos que procuravam a casa em busca de ajuda só conseguiam se abrir com os baianos. Pareciam ser iguais a todos. Os filhos conversavam como se estivessem falando com um amigo, com um irmão.

Pois muito bem. Carmem chegou-se até onde estavam os dois jovens e saudou:

-- Salve a Bahia, peste, para Ricardo e Salve tú, bixiga, para Jandira.

Os jovens retribuíram o cumprimento e ficaram esperando o que a baiana ia dizer, e ela não se fez esperar.

-- O peste, tú gosta dela ?

Ricardo sentiu o rubor subir pelo seu rosto, abaixou a cabeça e disse envergonhado:

- Claro, baiana, e muito.

- I tu, bixiga, gosta dele tumém ?

-- Gosto demais, baiana.

- Intonce, já qui ninguém toma uma atitude, eu vou juntá us dois: di agora im diante, tú é a mulé dele, i ele é o teu home. I tenho dito!

O primeiro beijo entre os dois aconteceu educado, na face, mas dizia tudo. Eles se amavam. Carmem sorriu e se afastou. Os jovens permaneceram de mãos dadas. Ele não pediu, ela aceitou, eram namorados graças ao povo da Bahia. Ricardo, mentalmente agradeceu ao Senhor do Bonfim. E Jandira,à Senhora dos Navegantes.

Terminada a sessão, todos foram para suas casas. Ricardo e Jandira felizes. Ela com o seu cigano, ele com a sua cabocla.

Mais uma vez o Preto Velho tinha razão. Ricardo já não sonhava todos os dias. Quando acontecia, via Miguel ainda ao lado de seu túmulo esperando. Já não sentia remorso ao acordar, sentia pena do cigano. Ele estava arrependido, merecia ajuda. Ele se Deus quisesse iria ajudar.

A vida para os dois jovens mudou muito. Sempre juntos, trabalhavam não só nos dias de sessão, mas todos os dias. Ricardo com seu conhecimento, passou a organizar a papelada, passou a cuidar das despesas da casa. Eles praticavam a caridade com fé e só precisava de mais organização. Com a ajuda dos demais médiuns e a ajuda de alguns colaboradores, começaram a cuidar melhor daquela casa. Foram trocadas portas, alguns bancos, a fiação elétrica e pintura, a casa estava um brinco.

Jandira organizara um pequeno bazar que funcionava nos fundos da Instituição. Arrecadava mantimentos e roupas e os distribuía à população mais pobre que freqüentava o centro, algumas coisas eram vendidas e a arrecadação era transformada em bens para a casa. Hoje não pediam nada a ninguém. Qualquer trabalho que o filho precisasse correria por conta do Centro. Para isso, já havia um pequeno estoque de velas, defumadores etc.

Nas sessões da casa, também um progresso muito grande, Jandira já estava bem sintonizada com os seus guias. Assim sendo, foi feita a cerimonia de cruzamento, para maior e melhor aproximação, firmeza e entrelaçamento com seu Orixá.

Foi uma cerimônia simples, interna entre os médiuns da casa. Assim Ricardo e Jandira foram cruzados na Umbanda.

Pena Branca, usando uma pemba virgem, riscou sete cruzes em Jandira. Começou por cima: uma cruz na testa, uma na nuca, uma no peito do lado esquerdo sobre o coração, uma no dorso da mão direita, outra na mão esquerda, as duas restantes na planta dos pés, direito e esquerdo.

O mesmo ritual foi aplicado em Ricardo e em outros médiuns iniciantes que mostraram progresso. Depois disto, todos foram defumados, um a um, com uma mistura de sete ingredientes básicos: Arruda, Alecrin, Alfazema, benjoim, Incenso, Mirra e Sândalo.

Terminada a cerimônia, os médiuns ficaram com as cruzes até o final da sessão. Depois foram apagadas e lavadas.

Ricardo e Jandira resolveram que já era hora de se tornarem noivos. Afinal todo mundo achava que eles eram, só faltava comunicar D. Julia e D. Claudia. Isto foi feito em um almoço de domingo, só os quatro. Já eram uma família. A união dos jovens havia unido ainda mais as duas senhoras.

No trabalho de Ricardo, a situação havia melhorado e muito. Havia sido promovido. O pessoal que havia visitado a obra, saíram dali impressionados com o rapaz. Depois de algum tempo, o capataz foi transferido e Ricardo assumiu o seu posto. Ótimo salário, registro em carteira e garantias trabalhistas, era tudo o que ele queria.

Chegou em casa e foi direto conversar com a mãe. Ela não precisava mais alugar aqueles quartos, ganhar uma miséria e ser maltratada por aqueles inquilinos que viviam bêbados. D. Julia já podia fechar a pensão, seu filho iria cuidar de sua velhice.

Com a casa já sem os inquilinos, Ricardo derrubou aquelas divisórias, a sala voltou a ser uma sala. Idem com os três quartos que os inquilinos ocupavam. Uma faxina geral, uma nova pintura e a casa estava linda. O trabalho de D. Julia passou a ser cuidar do jardim, mais nada. Para cozinhar, já havia uma empregada. Ricardo queria retribuir o que a mãe fizera por ele nos seus momentos difíceis.

D. Julia via a sua casa voltando ao passado, quando seus pais eram vivos a casa era exatamente o que Ricardo estava deixando. Os pais cuidavam e diziam que a casa seria dela um dia. Queriam ver os netos correndo pelo jardim, mas não foi possível. Os dois tinham problemas de saúde. Julia, como filha única, passou a maior parte de sua vida cuidando dos pais. Quando eles partiram, já era tarde para ela, não tinha mais idade para pensar em casamento ou filhos. Só lhe restava viver com dignidade e esperar a sua vez.

Na sua mocidade, Julia era muito religiosa. Freqüentava a Igreja todos os domingos em companhia dos pais. Aos poucos, os pais não puderam mais ir e Julia também foi abandonando. Continuava fazendo suas preces em casa, jamais deixara de ter fé.

A enfermidade consumia os pais aos poucos. O caso da mãe era mais grave, definhava dia a dia. O pai, hipertenso, piorava com as crises da esposa. Realmente, é muito duro ver um ser amado sofrendo e se sentir impotente, não poder ajudar, isto matava o pai aos poucos. Julia também sofria. As vezes sentia o desanimo, fazia de tudo para mostrar coragem e resignação, mas quando estava só chorava. Estava à beira de um ataque de nervos. Estava emagrecendo, não queria nem pensar se acontecesse alguma coisa a ela. O que seria dos seus pais? Tinha que ficar firme.

As crises da mãe foram aumentando dia a dia. Dores lancinantes. Os remédios, pouco faziam para aliviar. O câncer era invencível. A mãe terminou por ser internada. Como se fosse uma reação em cadeia, o pai piorou e também foi internado.

A filha permanecia o tempo todo no hospital, hora com o pai, hora com a mãe. Se um estava bem, corria para saber como estava o outro. Dormia no banco da sala de espera, comia qualquer coisa na lanchonete do hospital. Isso não era vida.

Certo dia, estava sentada na sala de espera do hospital. Chorava baixinho e uma senhora se aproximou e perguntou se Julia estava passando mal, se ela podia ajudar.

Julia Agradeceu o interesse e disse estar apenas cansada. A mulher a convidou para tomar um café, sair um pouco de dentro do hospital, respirar ar puro, Julia estava abatida e com olheiras.

A princípio recusou o convite. Mas aquela senhora parecia tão calma, inspirava confiança. Aceitou o convite e foram tomar o café em um restaurante longe do hospital. Saíram conversando, a luz e o calor do sol fizeram bem à Julia. Sentiu-se mais animada, a cor pareceu voltar ao seu rosto.

Escolheram uma mesa no fundo do restaurante e se sentaram Olga, este era o nome da boa senhora. Perguntou quem estava internado no hospital, se era alguém da família.

Julia começou a chorar e disse:

- Meus pais, os dois estão internados. E a senhora tem alguém internada no hospital ?

- Tenho, é minha filha. Tem quase a sua idade, está na UTI desenganada pelos médicos. Está apenas esperando ser chamada por Oxalá, meu pai.

Julia não conteve a curiosidade e falou:

- Perdoe a minha ignorância, D. Olga. A senhora passando por algo tão triste, não demonstra dor. Aliás, inspira quem está sofrendo. É Oxalá quem faz isso, quem é ele ?

- Oxalá minha filha. Para alguns é Jeová, para os muçulmanos Alá, Jesus Cristo para os católicos etc. Todos esses nomes são para o mesmo ser superior. No meu caso, a minha profissão de fé é o espiritismo. Sou Umbandista, acredito na reencarnação e sei que a dor nada mais é que uma forma de resgatar faltas passadas. Sei que a minha filha está sofrendo, mas ao mesmo tempo resgatando seu espírito e evoluindo. Estou sendo cansativa ?

- De maneira alguma Dona Olga, estou aprendendo algo novo e que com certeza vai me ajudar no futuro, continue por favor.

Julia ouvia interessada aquela nova forma de lidar com a dor e com a perda de um ser amado.

Dona Olga continuou.

- Quando chegar a hora do desencarne da minha menina ela vai estar com a graça de nosso Pai Oxalá, purificada, seu espírito alcançará um nível superior.

Julia tentava imaginar como seria viver assim.

- Minha filha, sei que falando assim é difícil acreditar. Porque você não vem comigo um dia? Quem sabe assim você encontra uma maneira mais fácil de aceitar o que você está passando, você não tem nada a perder.

Julia ouviu tudo o que a boa senhora falou. Quanto ao convite, ficou de pensar. Depois daria a resposta. Pagaram o café e saíram rumo ao hospital.

Quase não conversaram. Julia vinha com o pensamento longe. Será que Olga tinha razão? Havia uma certa lógica no que ela dissera e outra: descobrira que os espíritas não eram macumbeiros, nem feiticeiros como lhe haviam ensinado. Amavam como ela, a Jesus Cristo. Não custava nada descobrir.

- Eu vou, D. Olga, quando a senhora quiser. Quando vamos?

Olga sorriu e disse:

- Amanhã, minha filha, amanhã.

Foi assim que Julia conheceu a Umbanda, sua doutrina, seus guias e mensageiros. Era mais uma filha de fé, quando seus pais desencarnaram sabia que iriam para um plano superior e um dia se encontrariam. Sabia que tudo que ela havia passado fazia parte de sua missão.

Levara Ricardo para o Centro e ele havia se tornado mais um filho de fé. Oxalá, com a sua sabedoria e justiça havia lhe dado o filho que ela não tivera. Ele iria se casar e morar ali, na casa de seus pais, com ela. Iria ver os netos, que os pais tanto queriam e não conseguiram, correndo pelo quintal. Abaixou a cabeça em agradecimento e falou baixinho:

- Que assim seja.

O centro que D. Julia esteve pela primeira vez não era o mesmo de agora. O outro era muito distante de sua casa. Soube que havia um no bairro e foi em uma sessão só para conhecer. Sabia que nem todos eram iguais, a princípio temerosa, mas sentiu-se muito bem e nunca mais deixou de frequentá-lo.

A vida de Ricardo caminhava para um futuro promissor. Bom emprego, boa casa, a companheira perfeita, só faltava marcar o casamento. O sonho que tanto o incomodava já não era constante, passava muito tempo entre um e outro, e toda vez que sonhava via o cigano no mesmo lugar. Sentia pena do cigano que parecia arrependido, por mais que tentasse, ele não esquecia de Miguel. Queria tanto poder ajudá-lo! Quando seria, não sabia. O Preto Velho havia dito que seria em breve.

CAPÍTULO XI

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No centro, Jandira estava pronta, Ricardo, com seu dom de vidência, havia previsto seria hoje, nesta sessão, que Jandira receberia seu guia protetor.

O Caboclo Pena Branca já estava incorporado e o ogã começou a cantar o ponto dos caboclos. Ela chegou pela primeira vez, a Cabocla Jandira se manifestou, uma incorporação perfeita. A cabocla caminhou até o Congá, saudou, virou-se para os presentes e fez uma saudação. Pediu uma pemba e traçou seu ponto de segurança. Pediu uma vela branca e a colocou em um local, dentro do círculo que fechava o ponto. Fez uma espécie de oração e se levantou. Caminhou até onde estava o cacique Pena Branca e se ajoelhou. O caboclo fez um sinal e o cambone trouxe a guia de contas verdes de Ricardo. Pena Branca levantou a guia, como se estivesse pedindo permissão a Oxossi. Em seguida colocou-a no pescoço da Cabocla. Ela estava pronta para trabalhar pelo bem e praticar a caridade.

A partir da incorporação da cabocla, tudo foi muito rápido. Todas as linhas se apresentaram e Jandira recebeu o seu preto Velho, a sua baiana, o boiadeiro, a criança etc. Aos poucos eles iriam instrui-la quanto às guias que deveria usar e o que mais fosse necessário para eles trabalharem.

Fora do Centro, o jovem casal já estava comprando os móveis para o casamento. D. Julia ofereceu a casa e os jovens aceitaram. Ela mudou-se para a parte dos fundos. Eles não queriam, mas ela fez questão. Não precisava de mais nada. Já não precisava lavar ou cozinhar, a casa era muito grande para ela. Nada mais justo que seu filho e a futura nora morassem na casa maior. Afinal, logo viriam os netos, eles precisavam de espaço e privacidade.

O que o jovem casal não sabia era que D. Julia em companhia de D. Claudia, havia procurado um advogado e passado aquela propriedade para o nome de Ricardo. Seria o seu presente de casamento.

Quem havia resolvido pelo casamento não tinha sido nenhum deles. Novamente foi a baiana Carmem. Em uma sessão, reuniu os dois e disse que já estava na hora do casório. E eles, sorrindo, concordaram. Só que queriam se casar na Umbanda. Carmem, sorrindo, disse:

- É só marcar a data. Se vocês quiserem, eu marco.

Ricardo, sorrindo, disse que não era preciso. Eles marcariam juntos.

Como sempre faziam em dias de gira, Ricardo e Jandira agiam diferente: saiam de casa cedo, durante o dia bons pensamentos, nada de carne, evitar aborrecimentos e se preparar para a prática da caridade. Mas alguma coisa naquele dia estava diferente. O rapaz levantou cansado, sentia um leve torpor nos membros, sentia o corpo todo dolorido, uma dorzinha estranha na altura do coração. Pensou em faltar ao trabalho e procurar por um médico. Lavou o rosto e acendeu uma vela para o se anjo da guarda. Iria esperar a sessão da noite. Saiu para o trabalho a muito custo.

Jandira também acordou indisposta. Não sentia nenhuma dor, apenas cansaço. Ela também acendeu uma vela para o seu anjo da guarda e foi ao encontro do noivo. Ricardo já estava esperando. De vez em quando, abria o boca, bocejando e tentando espantar aquele estranho sono. Olhou para a noiva e ela estava fazendo a mesma coisa.

- O que será que está acontecendo? Perguntou. O rapaz

- Boa pergunta, ela também queria saber o que estava acontecendo.

O dia para os dois jovens transcorreu devagar. As horas custavam a passar.

Jandira pediu que outro funcionário atendesse o público. Foi para os fundos da loja e ficou esperando o tempo passar. Com Ricardo não aconteceu diferente. Não tinha cabeça para trabalhar. Alegando uma forte dor de cabeça, deixou tudo com os outros empregados e foi se deitar no alojamento.

O dia parecia não ter fim. Foi passando vagaroso para os dois jovens. Nenhum dos dois teve apetite para almoçar. A parte da tarde infindável. Ricardo ligou para a construtora e pediu para ir embora, não estava passando bem. Foi autorizado e deixou o serviço. Passou na loja para avisar Jandira. Ela já estava indo também. A dona do estabelecimento mandou que Jandira também fosse para casa e os dois saíram.

Passaram o resto da tarde juntos. Fizeram uma prece e ficaram aguardando a hora de ir para o centro. Quando faltava apenas meia hora, Ricardo tomou o seu banho de defesa e acompanhou Jandira até a sua casa, para que ela fizesse o mesmo. Somente depois deste ritual foram em direção ao centro.

O jovem estava tão acostumado em ir ao centro que já não olhava para nada. Aquele dia ele, em especial, olhou para a placa que estava sempre acima da porta de entrada. Ela parecia brilhar. Estava escuro, mas ele conseguia ler os dizeres a mais de cinqüenta metros de distância. A placa, humilde e descorada parecia ter brilho próprio. As letras pareciam luze, brilhando na escuridão. Ricardo sabia o que estava escrito, mas tornou a ler. Parecia haver algo diferente:

ASSOCIAÇÃO BENEFICIENTE ESTRELA DO ORIENTE

Parecia normal, mas havia uns desenhos pequenos que ele não conseguia identificar de longe. Comentou com Jandira se ela também estava vendo. Ela respondeu que mal conseguia ver a placa, quanto mais o que estava escrito.

Ricardo procurou firmar a vista e foram se aproximando. Em meio a tanta claridade que emanava da placa, ele pode ver o que eram aqueles pequenos desenhos: uma meia lua, um punhal, um violino e sete estrelas unidas. Agora sim ele sabia o que estava acontecendo com ele e Jandira.

Era hoje, finalmente havia chegado o dia de ajudar Miguel. O cigano iria se libertar. Comentou com Jandira e ela disse:

- Se você diz que é hoje, eu acredito, mas eu não vi nada do que você falou.

CAPÍTULO XII

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Realmente, aquela parecia ser uma gira diferente. Alguma coisa estava no ar e o chefe do terreiro sentiu. Antes da abertura, pediu que todos firmassem o pensamento em oração. Mandou que todos os médiuns acendessem uma vela para seus anjos de guarda e deu início aos trabalhos.

As correntes foram descendo normalmente. Os Caboclos vieram, deram seus passes e atenderam alguns assistentes que queriam mais que o passe, queriam consultá-los. Todos foram atendidos, Pena Branca, antes da partida disse que a linha dos baianos iria atender o que estava para acontecer.

Em seguida, chegou a linha dos Pretos Velhos. Atenderam alguns assistentes e partiram. Pai José disse para Ricardo não se preocupar. O jovem se sentia tonto e com dores por todo o corpo. O velho escravo, disse que logo ele estaria melhor. Dito isto partiu rumo a Aruanda, era o último de sua linha.

O Ogã começou a cantar o ponto dos baianos. Somente o chefe do terreiro incorporou. Saudou a todos e chamou Jandira e Ricardo para o centro. Um médium que estava do lado esquerdo do Babalorixá sentiu um leve tremor. O baiano o trouxe para o centro dos trabalhos.

O que estava acontecendo ali era uma perfeita sincronia. Todos pareciam estar unidos para uma só causa: entidades, médiuns, assistentes, tudo parecia seguir um itinerário previamente ensaiado e executado com perfeição.

O atabaque começou a soar. Era uma batida diferente, um compasso jamais ouvido por todos eles. O Ogã parecia tomado por uma força superior, força esta, que comandava os seus movimentos, daí, aquela batida diferente.

E aconteceu.

Um a um, os ciganos foram chegando. O chefe do terreiro, com o baiano incorporado, coordenava a chegada daquela nova linha, que vinha em busca de uma casa. Todos os médiuns incorporaram a nação cigana. No meio do circulo que se formou um Ricardo incorporou o cigano Miguel que se contorcia como se estivesse mortalmente ferido. O baiano pegou na mão de Jandira e do outro médium e esperou um segundo. Ricardo não estava vendo, mas a luz que brilhou naquela casa daria para iluminar uma cidade. E eles chegaram: Rodrigo, o Rei dos Ciganos e Sarita, a sua Rainha. Como José havia pedido em orações, eles estavam todos juntos na eternidade.

Rodrigo saudou o Congá, saudou o baiano, agradeceu pela passagem concedida ao seu povo e pediu uma pemba. Rapidamente o cambone lhe entregou uma. Sempre de mãos dadas com Sarita ajoelhou-se e traçou seu ponto de segurança.

Se Ricardo estivesse consciente, veria que no ponto estavam os mesmos desenhos que ele havia visto na placa: um violino cortado pelo arco, do lado direito a meia lua, do esquerdo um punhal, na base as sete estrelas que compunham o ponto. Rodrigo pediu uma vela branca, acendeu e a colocou no centro do violino. Sarita fêz o mesmo, a sua vela ficou sobre o punhal. Em seguida, levantaram-se e Rodrigo, caminhou até onde estava Miguel.

Sentado no chão, contorcendo-se em dores, cabeça baixa, humilhado, estava Miguel. Era assim, que Ricardo iria ajudá-lo. Cederia seu corpo para a incorporação do cigano.

Ali estava ele, aos pés do Rei, do irmão, do amigo traído.

Rodrigo estendeu as mãos e ajudou Miguel a se levantar. Não disse nada, apenas um abraço que dizia tudo. Um abraço que significava o perdão esperado por Miguel. Lágrimas corriam por suas faces, aquele abraço era a libertação, era o perdão divino.

O rei cigano se afastou e Sarita também abraçou Miguel. Assim, um a um, todos os ciganos deram o abraço do perdão a Miguel.

O rei cigano pediu mais uma vela que o cambono prontamente entregou, com a vela na mão virou Miguel em direção ao Congá e

Pediu que ele a colocasse no ponto.

Vela acesa e Miguel ajoelhou-se e a colocou sobre o violino, fez uma pequena prece e se levantou.

Rodrigo segurou em sua mão direita, Sarita se aproximou, e segurou em sua mão esquerda. Todos os ciganos se aproximaram e fizeram um círculo entre os três. Partiram todos juntos rumo ao infinito.

O baiano parecia ter uma lágrima nos olhos. Foi até o Congá e falou:

- Salve o senhor do Bonfim e sua infinita bondade.

Em seguida, antes que os outros baianos incorporassem, deu uma rápida explicação para todos aqueles que haviam visto aquela cerimonia tão bonita. Contou em poucas palavras a história sofrida daquele povo e a maravilha do perdão. Este povo será sempre bem vindo nesta tenda, com a graça de Nosso Senhor do Bonfim.

Os baianos chegaram e trouxeram a descontração para o ambiente. Carmem, como sempre, cumprimentou Ricardo e disse:

- Agora nada mais vai impedir o casório, pode marcar a data.

O rapaz sorrindo, disse:

- Agora vai haver casório, baiana, com certeza.

Ricardo e Jandira se casaram no civil. Cerimônia simples, com poucas pessoas: D. Julia e D. Claudia, alguns amigos do serviço. Os padrinhos foram os seus patrões. Despedida e cumprimentos na porta do cartório. Haviam ganho de presente uma viagem para qualquer lugar do Brasil e eles escolheram a Bahia.

Como a cerimônia foi realizada no período da manhã, os noivos e alguns convidados saíram para o almoço festivo. Ricardo olhava a todo instante para o relógio, parecia ansioso. Ele e a esposa pouco comeram, estavam com o pensamento distante. Estavam casados Ricardo e Jandira, mas faltava para eles o mais importante: o casamento do cigano com a cabocla. Era assim que eles se tratavam na intimidade. Ricardo chamava Jandira de cabocla desde o dia que viu a entidade ao seu lado. Ela, por sua vez, o tratava de cigano desde que soube de seus sonhos.

CAPÍTULO XIII

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Seis horas da tarde. Ao som da Ave Maria, o cigano e a Cabocla adentraram em seu lar espiritual. A casa Estrela do Oriente estava em festa. O Centro Espírita estava todo decorado com bom gosto e simplicidade. Flores brancas ornamentavam os bancos, o Congá com muitas flores, todos os orixás foram lembrados, suas cores estavam presentes aqui ou ali na decoração.

Em lugar do tradicional atabaque, estava uma senhora com uma pianola tocandoo a Ave Maria. O som era mavioso, os noivos caminharam entre os presentes rumo ao Congá onde estava postado o Chefe do Terreiro.

Ricardo e Jandira imaginavam que poucas pessoas iriam ao seu casamento. Alguns médiuns e talvez alguns dos fiéis, mas se enganaram. Nunca houve tanta gente naquela casa. Todos os médiuns estavam presentes com suas respectivas famílias. O pessoal que costumava freqüentar de vez em quando a casa, compareceu. Aqueles que nunca faltavam estavam presentes, uma verdadeira multidão. Muitas pessoas não puderam entrar. Os jovens eram muito queridos e havia também a curiosidade de muitos. Todos queriam ver como era um casamento entre Umbandistas.

Os noivos estavam de branco. Idem o chefe do terreiro e todos os médiuns. As cores de Oxalá imperavam naquele recinto. O branco da paz, do amor, da fraternidade.

Segundo as normas Umbandistas o casamento no civil deve ser realizado anteriormente. Seguindo especificamente a lei de Xangô, que ordena fiel cumprimento às leis do Brasil. Portanto, só depois de apresentada a certidão de casamento civil, e por livre e espontânea vontade dos noivos, se realiza o casamento na Umbanda.

O chefe do terreiro confirma a autenticidade da certidão e, perante a todos os presentes diz :

- Em nome das forças vivas de Aruanda, imploro para vós proteção das forças vivas da natureza, encarnadas nas sete vibrações originais. Que essas vibrações vigiem perpetuamente pela vossa felicidade e pela dos filhos com que Iemanjá, símbolo do princípio procriador tiver de abençoar da vossa união. Irmãos, dada a pureza deste ato convido-os a repetirem comigo.

Houve uma pequena pausa e, nesse ínterim o Ogã entregou um pombo branco para Ricardo e um para Jandira. Eles passaram a repetir o que o chefe do terreiro dizia.

“Eu, Ricardo, e eu, Jandira recebo de ti por minha legítima companhia, para ter-te e conservar-te de hoje em diante na felicidade ou na desventura, na riqueza ou na pobreza, enfermidade ou com saúde, de acordo com a divina vontade de Zambi, para isso, diante de todos, empenho a minha honra.”

Os jovens abriram as asas dos pombos e fizeram com que os bicos se tocassem. Ergueram as aves sobre suas cabeças duas vezes. Na terceira, eles foram soltos e voaram por todo o terreiro. Em seguida encontraram a porta e partiram.

O chefe do terreiro pegou as alianças e disse:

-- Que o vosso amor seja puro como o ouro que essas alianças contém e intérmino como o círculo que elas representam.

Entregou a aliança a Ricardo e pediu que ele repetisse:

- Com este anel em nome de Zambi, de Oxalá e Ifá, selo minha união contigo enquanto viver.

Em seguida, entregou a aliança à Jandira, que também repetiu as mesmas palavras.

Com esse anel em nome de Zambi, de Oxalá e Ifá selo minha união contigo enquanto viver.

O som da Ave Maria voltou a ecoar por todo o templo e os noivos se ajoelharam. O chefe do terreiro leu uma oração muito bonita e singela. Terminada a oração, o chefe elevou os braços aos céus e tornou a falar:

- Envia, pai um raio da tua divina complacência, luz e misericórdia para os teus filhos pecadores que aqui labutam pelo bem da humanidade. Assim seja! SARAVÁ, UMBANDA!

Com os olhos brilhantes, como se uma lagrima fosse cair, o chefe do terreiro estava emocionado. Aquela celebração era um prêmio para ele e para a sua casa. Colocando as mãos sobre a cabeça dos jovens, pediu:

- Zambi, Oxalá e Ifá vos abençoe, conserve e guarde. Que o senhor ponha favoravelmente os olhos sobre o vosso lar, estreite os vossos corações e, de tal modo encha de graça e bênçãos espirituais que, vivendo unidos no senhor, haja paz em vosso lar neste mundo. Que no outro possais participar da bem aventurança eterna em Oxalá, nosso Senhor e Mestre. Assim seja!

Todos respoderam:

Assim seja

- Meu pai, abençoai esta união, fazendo com que o compromisso assumido aqui na terra seja registrado no mundo astral, unindo através do matrimônio os irmãos Ricardo e Jandira que são paraninfados, neste ato pelos irmãos, Rubens e Claudia, Roberto e Julia.

A este casal que com a sua proteção e permissão, Oh! Abençoado pai, é abençoado pelo matrimônio e pelas entidades, Caboclo Pena Branca, Caboclo Estrela Guia, Pai Joaquim de Aruanda, Baiana Carmem rogo-lhes que protejam e amparem seus afilhados, para que sempre amem a Zambi sobre todas as coisas e ao próximo como a eles mesmos. Pai, que permitiu que fosse eu o instrumento de vossa vontade para transmitir a esses irmãos os fluídos divinos vindo do vosso reino e trazendo as forças que representam as legiões hierárquicas da Umbanda. Em nome do supremo Pai, do divino Uno e de todas as entidades espirituais da Umbanda, eu vos abençôo e declaro confirmada a vossa união matrimonial.

A PAZ ESTEJA COM TODOS ! ASSIM SEJA.

Os jovens se levantaram e foram sendo cumprimentados por todos os presentes. D. Julia e D. Claudia choravam de alegria, algumas senhoras tinham os olhos vermelhos, como se houvessem chorado durante a cerimônia. Realmente, havia sido emocionante. O som da Ave Maria parecia continuar ecoando por todos os cantos da casa.

A recepção foi na futura casa dos noivos. Ali também o branco imperava. Tudo novo, parecia uma casa de bonecas. Ricardo e Jandira recepcionaram todos que foram à sua casa. Houve uma verdadeira festa: fotos, cantos, a alegria imperou.

Julia corria de um lado para o outro, servindo hora aqui, hora ali. Estava preocupada com o horário, os meninos tinham que viajar, não podiam perder a passagem. Pediu silêncio a todos e disse que iriam cortar o bolo.

Todos procuraram se acercar da mesa onde o casal estava em frente ao bolo.

O corte tradicional e Ricardo tirou o primeiro pedaço. Separou-o. O segundo, claro foi para D. Julia, ela ganhou o bolo e um beijo do filho. Em seguida, foi a vez de D. Claudia. Recebeu seu pedaço de bolo e o beijo da sobrinha. Feito isto, os jovens pegaram o prato com aquele pedaço de bolo, pediram licença e entraram em um dos quartos da casa.

Aquele era o cantinho sagrado da casa. Uma luz delicada iluminava o ambiente, no fundo uma cortina branca cobria o pequeno altar dos jovens.

Ricardo puxou a cortina e lá estava Ogum, lá estava a imagem de Oxalá, de Oxossi, de Xangô, ali estava a imagem do Preto Velho, Iansã, Oxum, Iemanjá, todas as linhas de Umbanda estavam representadas naquele pequeno Congá. Um copo de água, um vaso com flores brancas e uma vela de sete dias completavam o pequeno altar.

O cigano e a Cabocla se ajoelharam e depositaram o prato com bolo sobre o pequeno Congá. Fizeram uma prece de agradecimento e saíram.

Nem todos que estavam na recepção eram Umbandistas. Assim devido à presença de estranhos à sua religião, discretamente foram até o portão e ali na entrada, do lado esquerdo de quem entra, fizeram sua homenagem a Exú, deixando uma garrafa de aguardente aberta em meio ao jardim.

Voltaram para a casa e começaram a se despedir dos amigos. O carro que iria levá-los ao aeroporto já estava esperando. Presente da construtora: passagens, estada e transporte para o promissor jovem e sua esposa.

Ricardo e Jandira partiram em lua de mel. Por aqui, ficou D. Julia e D. Claudia. A amizade entre as duas aumentou muito com a relação dos jovens. Já estava tudo acertado: Cláudia viria morar com Julia na casa dos fundos, o jovem casal na frente. Aproveitando a ausência dos dois, começaram a fazer a mudança de Cláudia. As duas ficavam contando os dias. Logo teriam uma criança correndo por aquela casa. Julia queria que fosse menino e Cláudia que fosse menina. As duas ficavam fazendo previsões e brincavam quem viria primeiro, o cigano ou a cabocla.

Ricardo e Jandira, por sua vez estavam aproveitando a viagem. A Bahia rica de tradições e misticismo. Foram a todos os lugares históricos, conheceram as escadarias do Bom Fim, o Pelourinho, foram ver os pescadores voltando da pesca, fizeram a sua homenagem à Iemanjá em suas águas, naquele mesmo mar que havia em uma época distante trazido os navios negreiros. Tudo era uma felicidade só e faziam planos eles também queriam filhos, e se Oxalá permitisse seriam três.

Ricardo voltou a sonhar com o povo cigano. Hoje seus sonhos mostravam a recuperação daquele povo, a força, a vontade de vencer. Eles ainda eram muitos, estavam espalhados por todos os lugares, cidades, países. Em todo lugar havia um grupo cigano. Continuavam livres e nômades, não tinham uma moradia fixa, a mudança era constante, pareciam pássaros que buscam sempre a primavera. Ricardo via a pequena Sarita correndo em meio à outras ciganas, a tradição mantida, eles também eram eternos.

EPÍLOGO

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Ricardo e Jandira voltaram de suas núpcias e retomaram suas vidas. O tempo foi passando e Jandira ficou grávida. Muita festa naquela família. As avós dobraram a aposta, quem seria o primeiro a chegar, a cabocla ou a cigana. Para manter o suspense, Jandira também não procurou saber qual seria o sexo do filho, deixaria a natureza seguir o seu curso.

O rapaz hoje tinha uma ótima posição em seu emprego. Era um dos dirigentes do Centro Espírita, continuava puro de coração, ajudando aqueles que procuravam a casa em busca de apoio ou de uma palavra consoladora.

Como os jovens deixaram à cargo da natureza, nove meses depois Jandira deu a luz ao seu primeiro filho. D. Julia ganhou a aposta e como os pais haviam combinado, a criança se chamou Rodrigo.

Restava apenas esperar que Oxalá, em sua divina bondade concedesse aos jovens uma nova graça. Quem sabe a próxima seria Sarita. Mas os planos do casal não paravam nisso, queriam um terceiro filho. Quando este chegasse estaria completo o círculo da vida. Chegaria, quem sabe, Miguel para uma nova vida, viria resgatar suas faltas passadas e Rodrigo e Sarita já estariam esperando por ele, para ajudá-lo nesta nova missão.

Será que Sarita viria em seguida? Será que Miguel seria bom o bastante para apagar as marcas do passado? Rodrigo já estava por aqui, restava a chegada dos outros dois para, finalmente fechar o círculo da vida.

Desta vez eles teriam a ajuda dos pais, os pais que eles escolheram.

Quem sabe?

Mas isto já é uma outra história.

Fim

Gidelson Esperidião da Silva

03/01/1997

Gil o sete
Enviado por Gil o sete em 20/09/2019
Código do texto: T6749745
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