Uma história inacabada e, até aqui, muito mal contada
Minha mãe sempre me disse que a hora certa para provar ser um verdadeiro amigo, seria a hora em que um amigo estivesse fudido (minha mãe não usaria esse adjetivo funesto, mas os dias de hoje pedem crueza). Igor estava fudido. Afinal, depois de inacreditáveis seis anos, oito meses e dezesseis dias, sua mulher, “A maluca” como ele mesmo dizia, mandou ele pastar, sim: pastar, porque o quinto dos infernos seria longe ou fundo demais para cava um buraco; enfim aquela mulher, mais instável e insegura que a economia deste país saqueado, decidiu se tornar uma maluca estável e segura: parou de jogar seu rico dinheirinho fora. Ela me deixou na rua sem amargura, porque a amargura é a mais vívida manifestação do ser humano e eu não consegui ser um rato com o dente empregado num naco de queijo, ele me disse mais tarde com olhos marejados.
Eu não queria visitá-lo naquela situação, mas era a tal sinuca de bicos: se não fosse, seria o escroto que lhe deu as costas; se fosse, seria o canalha, não menos escroto, que foi vê-lo para ter do que rir e comentar depois. A velha história de jogar a gargalhada para alguém no fundo do poço. A despeito desses apertos de mente: fui ver meu amigo. E não gostei do que vi, embora não fosse tamanho desfavor.
A separação foi o horror para “Vovchanchyn” (a gente, eu e Bezerra, lhe deu esse apelido porque, além d’ele ter o mesmo prenome, é a cara do ucraniano mais malvado dos últimos cinquenta anos: baixo, atarracado, mais branco que neve, mais forte que o mais duro concreto e com dois zóio esbugalhados como ovos mal estalados sobre o nariz achatado. Pare de ler e confirme o que digo. Deixe a cínica curiosidade de rir da desgraça alheia de lado, e vá rir do que de fato tem graça, dê uma olhada no Youtube a luta do cara contra Edson Carvalho e abandone suas ilusões quanto à lucidez de alguns lutadores de artes marciais. Foi, de longe, o mais avassalador atropelo já visto na história do MMA: se durasse mais uns 45seg. Carvalho sairia dali pronto para comer capim pela raiz. Assista e volte aqui, eu espero.), mas esse “horror” foi exagerado por sua veia dramática, aliás: “aveia dramática”, como ele diz ver no prato de mingau (sim: meu amigo adora mingau de aveia pela manhã, sei porque eu mesmo já comprei aveia às vezes que ele dormiu lá em casa). A maluca foi embora, mas não o deixou de todo a ver urubus no lixão. Deixou alguns meses de aluguel pago no cafofo que ele arrumou e, ao que parece, toda mobília de que precisava: sofá dois lugares, fogão, máquina de lavar, geladeira, micro-ondas, armários, cômoda, cama, até comprou estante para sua pilha de livros (coitado, nunca abandonou a ideia de ser escritor, Bezerra disse que é mais fácil uma mosca cagar um barril de ouro do que Igor viver do que escreve); na verdade o horror não era tão horror quanto se pensava. O horror a que me tornei tão recorrente é o próprio Vovchanchyn: não parou mais em emprego nenhum. E isso bem antes de a maluca ter recobrado o pouco de juízo que perdera ao conhecê-lo e pular fora daquele barco que ia a pique. Um carma, zica dos diabos: não tinha patrão que aturasse o cara. A última vez que soube de suas “peripécias empregatícias” (Bezerra diz que isso é firula para não dizer: tô fudido) foi demitido do restaurante Brasileirinho, no qual arrumou vaga de motorista. Pelo que entendi as marmitas que deveriam ser entregues no almoço, aos peões da obra na Vila Lenzi, chegou na hora da janta e quase que o motorista/entregador virou ceia. Tive problemas com velas e injeção, fiquei parado perto da ciclovia em frente à Igreja Batista e a polícia ferrou tudo, foi meu dia de cão, nada podia dar certo, se justificou a mim e a Bezerra ao emprestarmos o cheque. Acho que essa foi a mesma justificativa dada à maluca, e, pelo visto, ela não aceitou nem as vírgulas. Acho que a história da demissão na marcenaria, onde fabricavam móveis rústicos, era mais inverossímil, porém, o que é o peido para o cagado?
Cheguei a seu cafofo, na rua 36 no Morro da Boca de Gia, eram umas 14h, o calor tava desgraçado àquele sábado. O Homem de Gelo me recebeu ainda de cueca e a marca da freada denunciava que não tinha tomado banho àquela hora da tarde ou a faltava de papel higiênico. Ao entrar senti o ranço de lugar abafado. Tirou as roupas, que pareciam estar limpas, de cima do sofá e me ofereceu para sentar. Sentei. Me ofereceu cerveja ou vinho, aceitei cerveja. E passei os olhos no cafofo: duas peças. Na verdade, caixa com parede no meio: duas janelas, frente e fundo, banheiro na peça que servia de quarto e a cozinha era sala e lavanderia também. Seria mais arejado se deixasse as janelas abertas às vezes, dava para viver com algum conforto ali, ou, senão, com algum fingimento disto. A cara de Vovchanchyn estava horrível, mas evitei encarar e tocar em assuntos espinhosos, afinal, sair do ap. 3 quartos, com direito a sacada e churrasqueira na rua principal do bairro, para aquele cafofo no morro, abalaria até o psicológico de Freud. Enfim, ele vestiu uma bermuda das que estavam no sofá e sentou com a garrafinha de água mineral cheia de vinho pendurada no beiço (tinha a mania de deixar garrafinhas com vinho na geladeira, bebia como se fosse água). Continuei sentado e, à medida que secava sua mamadeira, seu rosto tomava aspecto mais caroável: a cara do bêbado chorão. Foi aí que vi a tal foto, que Bezerra falou, pendurada acima da cômoda no quarto. Quem é aquele? Perguntei.
Tolstói.
Para que isso? Insisti.
Inspiração, mas quem consegue escrever uma linha depois de ler esse barbudo maluco? Odeio esse cara.
E por que deixa essa merda pendurada aí?
Aff. Esquece esse filho da puta. Odeio esse russo maluco, odeio todos os russos, mais ainda os do século XIX. Odeio, mas deixa quieto. Oh, não quer me emprestar cinquentão?
Meu Deus, seria isso um teste? Qualquer amizade fica abalada se o bolso começa a sofrer, porque ele não diz: me dá cinquentão? Nunca paga “empréstimo”. Tive que fazer ouvido mouco. Claro, respondi e perguntei: mas me diga como você está, meu amigo?
É tão difícil enxergar? Tô fudido porra. Respondeu e passou a mão na testa, sinal de que os neurônios estão em combate, sempre que age assim é indício de que seu raciocínio está nublado. Bebida, que desgraça.
Ora, você nem está tão mal assim, falei e bati em seu ombro, até continua com a escrita, vi seus cadernos ali.
Você é abestalhado, crioulo? Quer enganar quem com esse papo? Tô fudido, cara, fudido. O que eu tenho? Tenho 36 anos. Uma ex-mulher que me odeia e se sente muito feliz por ter me deixado pior do que na sarjeta, embora a ideia fosse me ver na cadeia. Uma filha que não registrei, só vi uma vez na vida e hoje já trepa com algum calhorda feito o próprio pai. Minha mãe faleceu e só gozou dois anos de aposentadoria depois de mais de cinco de insistência e lágrimas às portas do INSS. Meu pai, fez bem: me deu as costas. Eu não tenho 1centavo, nem para uma puta que preste, nem para o pão amassado pelo diabo. Maldição, maldição. Tudo filho da puta: a vida, a sorte, as editoras, todo mundo filho da puta. Às vezes penso que a única coisa que está pronta para me aceitar é a morte. Nada nesse mundo parece me querer, crioulo, nada parece lembrar-se de mim, porra. Quem ia sentir falta de mim se eu sumisse do mapa? Nem você, que é outro arrombado. Lembra do Arara, aquele filho da puta? Pedi ajuda para que me aceitassem como servente de pedreiro lá onde ele está, e, depois disso, nunca mais atendeu minhas ligações. Sabe o que acho dessa vida desprezível? Quer saber mesmo? Vou abandonar essa história de romances e concentrar meu talento – se é que tenho algum – no que quer não seja escrever. Ela me deixou na rua sem amargura, porque a amargura é a mais vívida manifestação do ser humano e eu não consegui ser um rato com o dente empregado num naco de queijo, crioulo, o inferno, o inferno acaba em lágrima, lágrima ardida como fogo.
E caiu no choro. As lágrimas lavam – ou levam? – tudo. Fez uma pausa sufocante e apontou a pilha de cadernos escritos em cima da mesinha no canto perto do raque arrebentado. Fora os que estavam digitados, encadernados e enviados a algumas editoras. Tomou um gole largo da garrafinha, como se reabastecesse o fôlego, e voltou.
O que sei é que existem apenas dor e desespero à espera de todos nós, à minha espera mais do que de qualquer outro sacana. Sou o mais solitário escritor do país, ninguém sabe disso, e vou lhe dizer porquê: escrevi três longos romances desde janeiro de 2013, mais dois livros de contos e dois de poesia durante o ano passado e nenhum deles foi aceito até agora, entendeu? Até agora: nada, nada.
Fiquei calado alguns segundos. Depois disse: taí bom esquema, escreva sobre isso, que mais pode dar errado, se já está na merda? Deveria ficar calado, hoje o dia não amanheceu azul. A cara, mais branca que neve, em centésimos de segundo tornou-se rubra feito sangue animal. Ficamos calados enquanto ele esfregava as mãos e passava na garrafa gelada. A verdade é que nem cheguei ao assunto da visita e tinha certeza de que Bezerra ia chiar depois. Mas cada sambista quebra conforme a batida de sua viola.
Crioulo, como é: vai ou não vai emprestar o cinquentão?
Por um instante, ilusório como a loteria, achei que ele tinha esquecido esse papo. Claro que vou, falei, relaxe fera. Aí a sorte me sorriu: ele fez uma cara estranha e correu para o banheiro, pela rapidez com que baixou a bermuda antes de sair da minha vista, era caganeira.
Não saia agora, vou ler para você um trecho do romance que tá quase terminado.
Continuei sentado. Escutei o barulho da descarga, depois começou a ler o tal trecho.
Escute, escute: aquele totem bundeiro era como o mamute acometido do Mal de Parkinson que dança em cima de um varal, com Ed Motta e Tim Maia nas suas costas, e canta Lounge Act pelo nariz e ao contrário em javanês e sonha que está numa rave, de sunga, no topo do Everest ao som de Amado Batista, Banda Lilás e Chico do Bandolim e consegue, consegue anotar uma placa; então o ônibus para em pleno voo e o Papa João Paulo II oferece o banquete e a carne de porco é servida por aiatolás com bermudas Ciclone e bonés do Los Angeles Lakers, dali partem duas carpideiras mauritanas com passagens aéreas marcadas para 12h do dia 12/12 no ponto de ônibus número 12 na mesma esquina onde Zé da Pinga jogou caipira com Mestre Salu em Trinidad e Tobago; o Boeing supersônico 7412, construído com tecnologia israelopalestina, será pilotado por um turco (...) nada demais, nada demais, neste momento Chico do Bandolim consegue cantar Sinatra e Ed Motta e Tim Maia começaram a jogar capoeira e...
Aí escutei uns resmungos – merda, puta merda – e a porta do banheiro bater com violência.
Ao sair deixei o dinheiro em cima da mesa e gritei o aviso: o cinquentão você paga junto com o cheque, beleza?
Mais tarde disse a Bezerra: não foi dessa vez.