Lágrima do absurdo ou brilho eterno de uma mente com lembranças

Já faz tanto tempo que nem sei por onde começar, foi no verão passado, verão em que não vi ninguém morrer nem participei do assassinato de ninguém. Foi e ainda é muito estranho para mim. Ficou na memória, não quero lembrar, e lembro, aceitei que ficasse comigo porque poderia usar algum dia. Thedy Corrêa mentiu: as coisas não aconteciam com alguma, com alguma explicação nada acontecia. Na verdade, as coisas aconteciam sem nenhuma explicação, sem nenhuma explicação. Mas parece que Lobão estava certo e errado na mesma música: nem sempre se vê lágrima no escuro e quase sempre se vê lágrima no absurdo. Tentei contar isso de tudo que foi jeito. Ora, contar aos amigos numa bebedeira seria fácil; aos casais de amigos, num jantar informal, além de fácil, soaria engraçado e casuístico, mas por escrito dá trabalho. Escrevi 19 poemas sobre o assunto, depois juntei todos num só texto. Não havia linha que justificasse a existência, tanto de todos juntos como separados. As coisas não se explicavam, de nada adiantava dizer de onde eu vinha e para onde ia; tudo bem, vambora: eu vinha não me lembro de onde e ia para um dos dois lugares que mais frequento no Calçadão (não faço ideia do que fiz depois do que vi), subia a Reinoldo Rau e as gatinhas (quem leva a sério texto que trata garotas por gatinhas, nos dias de hoje?) iam a poucos metros à minha frente, falavam ao celular e conversavam e riam muito; isto soa anódino. Além do mais tinha muita gente na Reinoldo, era horário de pico: tinha duas garis em frente à farmácia de manipulação; o cara de jaleco branco em frente ao consultório odontológico na esquina, onde meu ex-cunhado atendia há anos atrás; a loja de colchões recebia entrega: um caminhão travava o trânsito; o posto, em frente à loja de colchões, tinha falido e trabalhadores desmontavam as instalações enquanto caminhões carregavam as bombas de combustível; crianças saíam da escola e caminhavam ao ponto de ônibus e os carros faziam o resto do escarcéu; na verdade tinha muita coisa e muita coisa acontecia ao mesmo tempo. Eu não fazia diferença e não me encaixava no contexto, senão o fato d’eu ter presenciado e muita gente presenciou. Pensei, falcão desavisado, em escrever um romance, porém não tinha nada além de duas linhas e a coisa logo se esgotou em meia página. Aliás, sou generoso em dizer meia página, o assunto se esgotou ou esgotaria em uma frase, fui resistente e cheguei à meia. Depois tentei escrever contos, acho que escrevi uns três logo de chofre. Depois cozinhei mais a vida e a coisa e escrevi mais dois. Num destes contos fiz um paralelo com o atentado de Beckett, ficou uma porcaria (pouquinho pior do que este, mas serviu como exercício e homenagem ao orelhudo franco-irlandês). Depois de insistências, percebi que dava um conto, ah dava. Poema seria impossível escrever e, embora tenha escrito 19, não era tema que valesse a pena ser tratado como poema. No romance caberia como cena, apresentação de personagem, complemento, qualquer degrau para cena dramática ou preparação para o clímax ou até anticlímax. No romance precisaria ter graça e reter a atenção do leitor sem quebrar o ritmo da narrativa, eu não aprendi a construir diálogo, com certeza mataria o parágrafo e, ao retornar à narrativa, não conseguiria conectar a cena anterior à que retomaria a história; em resumo: seria ajuntamento de merda. Poderia começar também por algo tipo: subia a Reinoldo, com duas gostosas à minha frente, aí logo cairiam as palavras de Maradona como um martelo sobre minha narrativa: me mostre uma mulher gostosa e eu te mostro um fudido cansado de fudê-la, me mostre duas mulheres gostosas e te mostro 12 coroas com as batatas inchadas de tanto andarem às farmácias para comprarem Viagra e aos caixas eletrônicos para alimentarem a ostentação das ninfetas, no mais, tudo puta. E acabaria com meu projeto. Além do mais sou péssimo para lascívia, putaria, erotismo, estou três categorias atrás da 5ª, não consegui ir mais longe. Confesso que esperei que me acontecesse o que aconteceu com Ace Ventura naquele filme (que muito babaca finge que gosta) em que ele abre porta atrás de porta, atrás daquela mulher que deixou DiCaprio virar picolé no Atlântico Norte, no final, acho que dá merda, pouco importa, se eu tivesse sorte me aconteceria aquilo. Nada aconteceu. Guardei o que tinha feito com o que tinha presenciado, esperei que o tempo desse cabo de tudo e deixei a onda ir até a praia. Depois de meses com acessos àquele recôndito de sombras na memória, tentei retomar o caso e resolver a querela que tanto me assombrou. Tive a tarde de folga e comecei a rabiscar tudo de novo: palavra atrás de palavra, frase atrás de frase, ideia conectada à ideia e pensamento enleado a pensamento (acompanhado de uma garrafa do melhor vinho barato que pude comprar). Fiquei nesse embate por horas, dormi com a labuta na mão. Não dormi muito, sei lá, 1h e 30min., 2h no máximo e sonhei com a praia que elegi para que a eternidade, um dia, me faça dormir o eterno sono. O sonho foi estranho, como todo sonho atribulado estava mais para sonhodelo: pessoas desaparecidas, mortos que só tiveram seu passamento em minha memória anos e anos depois de terem virado comida de vermes; acho que minto em dizer que tive um sonho. Tive um pesadelo e este se disfarçou de sonho. Foi assim: eu tinha ido visitar meu pai que eu não via desde o aniversário de meu tio em SP, tinham-se passado dois anos e pouco, fui recebido com estranheza por alguns, porém eles eram mais estranhos a mim. Meu pai falou comigo na manhã em que cheguei e sumiu. Sua filha não me lembro de ter visto, assim entrei em casa. Fiquei sentado na varanda perto do araçazeiro até que escutei alguém chamar. Era Seu Cazinho, que tinha morrido uns quinze anos antes, chamava para avisar que alguém queria me conhecer. Abri o portão, nos cumprimentamos e, ao apertar minha mão, notei o tamanho enorme da sua. Era duas vezes o tamanho da minha, nunca vi morto com mão tão grande e, aliás nem vivo. Seu Casinho me fez acompanhá-lo até à praia. Ao sentarmos no muro de D. Vanda, ele saiu e foi chamar o estranho visitante. Era o santa-lucense de canelas finas e olhos verdes (ao acordar fui pesquisar a vida de Walcott e vi que ele morreu no dia do aniversário de Maradona. O que isso quer dizer? Nada. Apenas fluidez e coincidência. Eu sabia que tudo era sonho, sabia até onde dormia aquele sono intranquilo e suarento e não sentia necessidade de interferir além do que era permitido por minha consciência em estado de abulia. Gostaria de estudar essa zona em que, no sono, em seu estado mais amplo e relaxado, a consciência mantém a tenência e consegue distinguir o que é do que não é, o que foi, o que não foi e o que será do que jamais será e, antes que a vontade de mijada, o despertador ou desespero nos queira despertar, alerta: relaxe dorminhoco, é tudo mentira) e Seu Casinho seria nosso tradutor (nesse instante ri. Seu Casinho era um simples prático nas docas, duvido que soubesse duas palavras em inglês. Posso até ver meu riso durante o sono, ao saber que ele seria o tradutor da conversa onírica). Eu falava em português e Seu Casinho traduzia para inglês, Walcott falava em inglês e Seu Casinho traduzia para o português; assim conversamos por horas e horas, sem honras e sem promessas. Walcott falou do meu desejo de escrever a odisseia, a saga pobre da Ilha, e não me animou muito. Comentou o quanto teria que doar de minha alma no ritual de erguer o espírito milenar daquela Ilha esquecida naquele canto esquecido do mundo. Falamos mais sobre muita coisa e, como toda historinha de velhos e jovens, ele, Walcott, caminhou para o lado direito da praia (o belo horizonte, triste por ser condenado a abençoar aquela praia) e Seu Casinho ficou sentado e mandou que eu fosse para onde quisesse ir. Não fui a lugar nenhum. Andei até a areia molhada, deixei as marolas molharem meus pés e acordei. Acordei decidido a terminar minha empreitada. A história, toda história é a seguinte: eu subia as Reinoldo Rau, duas menininhas bem gostosas caminhavam na minha frente, tinha gente de todo lado, horário de pico. Um catador de latinhas remexia a lixeira do Mercado Mundo 1,99. Depois de fechar e amarrar o saco, as menininhas passaram dele e eu fiquei atrás. Então, ele amarou o outro saco e, no mais insano acesso de fúria que já vi, partiu aos gritos e socos para cima das menininhas. A mais rápida escapou, a outra foi nocauteada. E ambas caíram no choro (lembra da lágrima no absurdo da qual Lobão falou? Ei-la aqui: louca, fria e cristalina como gelo picado capaz de afogar a cidade). Ninguém entendeu nada, e hoje acho que não havia o que entender. Não cheguei a um nível razoável, mas tenho tempo, ainda acerto o ponto. Esta é só a décima segunda vez que tento contar essa história.

Grouchesco
Enviado por Grouchesco em 03/10/2019
Reeditado em 03/10/2019
Código do texto: T6760290
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