A Itália em mim

Texto selecionado no Concurso Brasil Itália "Vozes Italobrasileiras III" que compõe a Antologia Bilingue Voci Italobrasiliane III (31 autores) lançada em Veneza em 29/10/2019, onde estive presente (motivo da minha ausência no Recanto).

A Itália em mim

Nas fotos dos mortos na sala, na lembrança do moinho de pedra de meu avô paterno que, juntamente com o milho, prensava a melancolia da terra deixada para trás, eu sinto a Itália. Sinto também na saudade da freguesia, formada em sua maioria de oriundos que vinham ao armazém praticar o escambo: trocavam o milho pelo fubá e aproveitavam para fazer a despesa mensal.

Nos meus cromossomos, nos meus sentidos, nos meus sentimentos: de orgulho, de amor, de paixão pela culinária e pelo lavoro, pela religião, pelo palavrão, pela música e pela dança, pelas conversas no salão, pela reza, pela sanfona, pelo pandeiro e pelo violão. No simples olhar que dizia tudo, desde o “comporte-se” até o “eu te amo”. Nas histórias da Itália ouvidas dos nonos, imaginadas e sentidas pelos netos entre os quais eu, na união dos ruidosos familiares e na nobreza dos sentimentos. Exagerado amor às flores, que acabei compreendendo na primeira vez em que viajei para a Itália. Era primavera, as cidades estavam todas floridas. Entendi então porque minhas tias e minha mãe cultivavam tantas e tão variadas plantas.

Está arraigado em minhas recordações o preparo da massa e do molho de tomate (no tacho de cobre com colher de pau) pela avó paterna, em cuja casa se reuniam os filhos, genros, noras e netos para o almoço de domingo. A tômbola após a refeição, o respeito ao avô que, à tardinha, parava com as atividades familiares para se dedicar às orações. Infalivelmente.

Coincidência ou não, o avô tinha tatuada na saudade e no pulso a imagem da Madonna di Loreto. Chamava-se Nazareno em devoção a Ela, vinda de Nazaré em Israel e transportada por anjos séculos depois (segundo a lenda) até a região onde ele nasceu. Ele, que mesclava a atividade manual com a religiosidade latente, plantava no jardim o pé de contas, as quais manipulava com um alicate e arame, produzindo o rosário. Atividade que desenvolveu até os seus últimos anos de vida. E rezava.

A avó paterna plantava hortaliças e cuidava dos pés de frutas, entre elas as uvas, maçãs e peras que tanto nos atraíam, mas que só podíamos colher quando estivessem maduras. Que mundo encantador!

Por outro lado, na casa da nona materna lembro-me do avô de olhos azuis e cabelos tão loiros que pareciam amarelos. Era lavrador e partiu cedo, deixando saudade e paixão. A nona viúva era calada: diferentemente dos ruidosos nonos paternos, ela se manifestava através do silêncio e da delicadeza. Sensibilidade, emotividade, discrição em tudo: no seu caminhar parecia que os chinelos deslizavam; no seu vestir sempre usava roupas escuras, avental e lenço na cabeça. Trazia no peito a paixão pelos filhos e netos.

Ambas as famílias saíram da Itália em busca de melhores oportunidades, influenciadas pelos conhecidos que de lá vieram antes e que lhes escreveram dizendo maravilhas a respeito desta nossa terra.

Deixarem os seus e enfrentarem a viagem de “vapore” foram provas de resistência que realizaram com coragem e determinação; ao chegarem aqui encontraram um território desconhecido e a língua totalmente diferente. Eles reconstruíram suas vidas sem perspectiva de retornarem, devido à situação financeira. Imagino a saudade que sentiam... Adaptaram-se, deixaram sua contribuição, formaram família e nome honrado, como a maioria dos italianos que em nosso país aportaram.

Para eles, a música era: a enxada roçando o mato, os pés sulcando a terra, as mãos sovando a massa... As crianças ficavam sob os cuidados dos nonos enquanto os pais iam para a roça. Ali se desenvolvia o respeito, a religião, a educação em si.

Atrás da porta eu sempre ouvia alguns comentários picantes em relação aos familiares, famosa rivalidade entre os italianos do Norte e os do Sul. E a mãe, ao conversar em italiano com a avó sobre assuntos proibidos às crianças, me despertava intensa curiosidade de saber sobre o que falavam. Assim iniciei meus conhecimentos da língua tão canora e tão plena de sentimentos.

Com essas lembranças e detalhes que vêm à minha mente, na saudade que me impulsiona a prosseguir, vou tecendo esta colcha de retalhos buscando reforçar as minhas origens, a minha identidade, sempre cultivando e reverenciando o amor pela Itália que vive em mim.

Cida Micossi
Enviado por Cida Micossi em 29/11/2019
Reeditado em 11/09/2021
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