DISTOPIA DOS SILENCIADOS - Parte 1

Acordei para meu primeiro dia de “trabalho” e meu instinto foi o de tentar articular a fala. Embora a língua continue amortecida e dificulte até a ingestão de certos alimentos já não babo mais. Tive um sonho ou lembrança de quando podíamos falar livremente. Já faz alguns anos essa lembrança. Não sei ao certo quanto. Já não importa. Deixei de conta-los, pois me causam dor, embora eu tenha informações que eles ainda desconhecem. Já não sou mais a mesma. Ninguém é na verdade. Vivo a opressão do silencio dos novos dias. Já deveria ter me acostumado. Me doutrinado ou, melhor, me adestrado como um caozinho doméstico. Não consigo, sei que outras também não. Somos resistência. Vamos a luta, talvez também por ser mulher.

A lembrança é do primeiro dia do atual governo. A primeira dama discursou ao lado do marido em libras, emocionando a todos. Sua fala era de um pais mais inclusivo para os Surdos e demais deficientes. Não imaginávamos como se daria essa inclusão. Parecia um sonho. Hoje vivo o pesadelo.

Era o inicio de um governo supostamente democrático, com propostas de mudanças e fim da corrupção. Na época diversos países na América latina reivindicavam mudanças em seus governos. Ainda recebíamos noticias de fora e tínhamos um presidente que respeitava o trabalho da imprensa. Agora somos prisioneiros no próprio país sem poder enviar noticias pra fora ou noticia-las aqui dentro. Sei que eram tempos de esperança. Nunca imaginei, alias nunca ninguém imaginou que teríamos as mordaças como forma de controle. Agora sou uma silenciada.

No começo as mudanças que o governo impôs foram tão gradativas que ninguém em sã consciência podia prever que chegaríamos nesse ponto. Primeiro vieram os cortes na Educaçao, criticas aos livros didáticos, a algumas disciplinas da grade comum curricular e propostas de escolas militares. Depois foi a vez do esfacelamento do ministério da Cultura juntamente com o fim do patrocínio a qualquer filme, programa ou outras manifestações culturais que não doutrinassem para as causas do governo, também nisso o fim de discussões de pautas progressistas, tais como lutas feministas, direitos da população negra, masculinidade tóxica, direitos dos LGBTQIA+, etc, foram suspensos ou revisados. Ameaçavam o status quo e o patriarcado. Paralelo a isso ministros, deputados e senadores foram afastados ou sumariamente trocados num processo que talvez um dia entre para os livros de História como Movimento Arca de Nóe. Nisso só os justos escaparam, melhor dizendo, aqueles que seguiam a cartilha do governo e estavam dispostos a trocar a Constituição pela Bíblia Sagrada. Foi o fim da bancada evangélica de deputados e senadores no congresso. Eles não eram mais uma parte. Eram o todo.

Agora temos as mordaças químicas, instauradas através de um decreto pelo conhecido e temido D4C (Departamento de Controle de Condutas, Comportamentos e Comunicações) que é o órgão regulador e opressor do governo. Vivemos em censura absoluta. Qualquer um que no passado tivesse se posicionado abertamente contra o governo ou a favor de pautas progressistas recebe uma injeção do silencio. O decreto tem caráter retroativo, portanto a duvida não era saber quem na imprensa receberia a injeção, mas quando. Todos fomos castigados. Era como uma praga messiânica.

Minha condenação veio, pelo que sei, devido a uma reportagem que fiz defendendo a igualdade salarial de homens e mulheres e nela sinalizava a falta de participação de nós mulheres no governo ou na presidências de grandes empresas, ao mesmo tempo que somos cada vez mais responsáveis pelo sustendo do lar em famílias solo. Algo que era quase banal, com algumas estatísticas (ainda tínhamos acesso a elas). O tipo de pauta que caia nas mãos de uma jornalista recém-formada e não apta a temas investigativos. Fui sentenciada numa terça feira através de um telegrama me convidando a comparecer a UBS mais próxima no dia útil posterior ao recebimento do telegrama, levando comigo o telegrama e documento de identidade. O não comparecimento ou recusa resultaria no confisco de meu dinheiro em bancos, até que eu “quisesse comparecer de modo voluntário”. Sei é irônico.

O soro químico injetado no pescoço tem a função de amortecer a língua e dessincronizar os movimentos da mandíbula e lábios. Atua obviamente na neuroquímica do cérebro. Não tem contraindicações (ao menos divulgadas) e seu efeito dura 6 meses mas que pode ser prorrogado para mais uma dose se o D4C julgar conveniente. Os primeiros a recebê-la entravam em estados mentais semelhantes aos antigos pacientes de lobotomia dos hospitais psiquiátricos do século passado. É uma lobotomia moderna pensávamos. Hoje o efeito colateral são cerca de 10 dias babando, sobretudo pela manhã. Os babadores de pano de cores e estampas coloridas se tornaram a ultima moda e são vendidos em araras nas grandes lojas de departamento com preços variáveis a depender se são de marca ou assinados por um estilista nacional famoso (o retorno do patriotismo). Eles ficam onde antes eram expostos os biquínis (proibidos). As cores tem o objetivo de tornar o seu uso menos humilhante. Não adianta. Há a opção pelos que são distribuídos gratuitamente nos postos de saúde para a população de baixa renda, mas que tem a estampa única da bandeira do Brasil. Eles parece que estão encalhados em algum estoque. Não os vejo nas ruas. Acredito que seu uso é ainda mais humilhante.

Após o período de adaptação ao silencio de não poder falar e fim dos dias de babador os “candidatos” são obrigatoriamente convocados para as aulas de Libras que tem o objetivo de transformar os transgressores em interpretes. Todos vão as escolas especiais criadas pelo governo com esse objetivo e passam dois meses em período integral sendo ensinados e doutrinados a não emitir opnião própria, mas somente traduzir e interpretar as falas de outros, nesse caso especialmente falas de homens. Os conservadores recorriam inclusive a versiculos biblicos fora de contexto para dizer que as mulheres deveriam guardar o silencio. Sobre as aulas de libras não são tão ruins quanto parece. O governo e as empresas diziam ter um déficit desses profissionais e era uma forma de inclusão da comunidade surda na sociedade e em postos de trabalho, conforme citado pela primeira dama. Hoje já não sabemos se ainda faltam esses profissionais. O governo não nos informa nada. Sei que com o tempo as turmas foram reduzidas, assim como também o numero de programas de tv que tratavam dos temas proibidos e os youtuberes que passaram a ler reportagens de revistas femininas, ler histórias em quadrinhos, literatura, falar de jogos eletrônicos ou ensinar receitas veganas. Os influenciadores digitais controlados pelo governo precisaram ser criativos e se reinventar.

Sei que essa narrativa faz parecer que todos nós aceitamos essas arbitrariedades do governo sem lutar, mas não. Houve resistência. Sempre há. Formaram-se diversos grupos clandestinos, entre eles o GRITO (Grupo de Resistência Intensiva pelo Termino da Opressão) que foi responsável por tornar uma escola de libras e fazer centanas de pessoas reféns há alguns meses. Uma parte de nós ainda luta, sobretudo as mulheres e alguns homens gays (creio que os demais homens não se importam com a luta, por terem interesse na manutenção do poder). Os gays se calaram principalmente depois que o governo resolveu devolver para o Estado a guarda das crianças por eles adotadas com o absurdo argumento de que filhos criados por casais homoafetivos seriam influenciados a também se tornarem gays. É pura baboseira sem nenhum respaldo cientifico, mas os que detêm o poder utilizam-no para propaganda ideológica e manipulação da opinião publica em favor dessas falácias. O efeito poderia ser o contrario. Eles, os gays, se rebelarem ainda mais. Infelizmente não foi. O medo transforma as pessoas.

No passado houve protestos, carros bomba, passeatas... Hoje o exercito patrulha as ruas a espera de um pretexto para instaurar guerra civil. Agora os ainda não silenciados vivem com medo. E o medo controla as pessoas. Alguns ainda têm as lembranças do período de ditadura militar quando centenas de cidadão saíram de suas casas e nunca mais voltaram - os desaparecidos políticos, certamente mortos. Silenciamos a nós mesmos. Os que se adaptam sobrevivem, não é o que dizem? Então nos calamos para não perder a própria voz. É irônico pensar, isso me dói.

Ainda tenho esperança. Sei dos planos do novo ataque, dessa vez no Congresso, quando um grupo de nós interpretes formos para lá num simpósio sobre educação inclusiva e direitos humanos (parece que o governo ainda defende alguns direitos humanos) A comunidade Surda, passou meses introduzindo códigos secretos entre os sinais de libras a fim de organizarem o ataque sem que o governo percebesse. Incrível que fizeram isso debaixo do nariz deles. Usando o veneno, contra eles mesmos. Embora os Surdos fossem beneficiados pela politica de maior inclusão imposta pelos governantes, eles certamente são empáticos a nossa dor de silencio forçado e não compactuam desses métodos.

Depois de mais de 6 meses de silencio. Estou num ônibus a caminho do simpósio. Estou pronta. Eles saberão que podem tirar a nossa voz, mas não os nossos ideais... (CONTINUA).

*qualquer semelhança com o atual governo, não é mera coinscidencia.