Coisas que não se deve fazer II

Boa tarde meus 23 fieis leitores e demais 36 que não se emendam e de quando em vez passam de novo por aqui para espiar pelo buraco da fechadura do meu WC literário para conferir se este Bacamarte está fazendo coisa que se deve fazer. Pois já que tuzes voltaram aqui, eu também volto ao assunto, mas com causo diferente e numa forma literária pouco usual por mim: um conto. Claro que será na primeira pessoa e eu serei personagem dele, pois sou muito autocentrado para não escrever sobre mim mesmo.

Quero contar pra tuzes que uma coisa que eu realmente acho que não se deve fazer é ir chorar em enterro de gente que tu não gosta só para bancar uma de "solidário". Ah não, sem cinismo e hipocrisia numa hora dessas, né! Tudo ok, conhece os parentes, se dá bem com eles, vai lá dar apoio, mas não fica mentindo que gostava, que lamenta e que sentiu a morte do cara se tu não suportava ele. Foi o caso do enterro do Xergão, há algumas décadas, em Charky City.

O Xergão morreu. Mataram ele, para ser mais preciso. E, no exato, descarregaram um treiszoitão na lata dele. Isso mesmo, na lata, que pra quem não sabe é sinônimo de que o assassino odiava a vítima, tem uma passionalidade envolvida. E não era pra menos, pois o Xergão era o cara mais odiado da cidade. Fora a mãe e o pai, nenhum outro charkycityense ou charkycutyensa gostava dele. Tanto que a absoluta maioria das pessoas, embora não desejassem o mal dele e tampouco teriam coragem de liquidá-lo, não lastimaram o ocorrido. Pior: esse pessoal entendia que o assassino, na boa, fizera um favor para Charky City.

O Xergão, claro, era terrível! Usava drogas, bebia muito, roubava, aplicava golpes, mentia, pedia emprestado e não pagava, comprava e não pagava, incomodava de noite e de dia as pessoas na rua, falava mal dos outros publicamente, provocava as pessoas. Era "tolerado" porque era filho da dona Mirinda - que, quando jovem, fazia jus ao nome oriundo do esperanto - e do seu Deoclédio. Um casal muito bom, respeitado e querido. Não se sabia como daquela cruza de pombinha com canário belga saíra aquele urubu. Mas saíra, era o Xergão. Luiz Otávio era o nome dele, entretanto todos os chamavam pelo apelido.

Bem, um dia o Xergão, como sempre acontece nesses casos, mexeu com quem não devia, anoiteceu e não amanheceu. Encontraram morto, do jeito que eu falei, num terreno um pouco afastado da cidade. Eu também fui no velório, meus pais foram, muita gente foi, consolar os pais, os únicos verdadeiramente arrasados ali, as únicas lágrimas sinceras, o único desespero concreto. O Xergão era filho único, coitados. Eu, na minha. Não tinha nada contra ele a ponto de querer ver morto, ele nunca me fizera nada de grave, além de ter enchido o meu saco algumas vezes, mas eu também não gostava dele, como todo mundo.

Eu só observando algumas pessoas lá, que eu sabia que detestavam o Xergão, falando que ele uma boa pessoa, que gostavam dele, com lágrimas nos olhos. Cruzincredo, como as pessoas conseguem ser teatrais e falsas quando querem. Eu, na minha, ainda. Vai que mentiam e dissimulavam para diminuir a dor do estimado casal, por uma boa causa, né. Deixa assim, então. Mas quando eu vi o Desidério lá, lamentando o trágico destino do Xergão, aí não me contive. Fui até ele e disse, encarando-o:

- Ah não, tu não, né Desidério!

Todo mundo sabia que o Desidério nutria ódio mortal do Xergão. Nem era pelo fato desse lhe dever uma grana e não lhe pagar e tampouco por ter roubado o bujão de gás da casa dele para comprar maconha, que isso o mala já tinha feito com outros e o bom casal acaba ressarcindo as vítimas. O motivo era passional: Desidério era chifrudo. Não que o Xergão tivesse andado a Marília, pois era um cara repulsivo, chakycityensa alguma tinha coragem ou estômago de deitar com ele. Só que o Xergão começou a caçoar do Desidério quando o via na rua. Claro que todos sabiam da conduta da esposa do Desidério em Charky City, mas ninguém falava nada, pois ele não era do tipo manso, era bravo. Marília era realmente muito bonita - quase mirinda - e ele não conseguia largar dela, apaixonado que era. Entretanto, não era pessoa que tu fosse cutucar com vara curta, era um cara violento e quieto, um cachorro que não latia, só mordia. E o Xergão fez mais essa coisa que não se deve fazer justo com a pessoa com a qual não se deve fazer. Detalhe: até as moscas de Charky City sabiam que Desidério possuía um revólver 38. Ah não, matar e ir chorar no enterro não! Tinha certeza que o Desidério era o assassino do Xergão!

Ele me olhou furioso quando lhe dirigi a palavra. Tive a ousadia de emendar, debochado:

- E aí, Desidério, já conseguiu vender o teu revólver? O Xergão me disse que tu queria vender...

Seus olhos me queimaram, tamanha a frieza que emitiam. Não vacilei. Não por mim, que eu era café pequeno pro Desidério, mosquito, mas meu pai não e ele sabia disso. O sr Bacamarte era policial, homem duro e firme, andava armado com 38 e espingarda calibre 12 de sua propriedade. Ele não era páreo para o Sr Bacamarte e eu me prevaleci disso. Óbvio que eu fiz uma besteira, coisa de guri de bosta, coisa que não se deve fazer. Tanto que o pai chegou perto e mandou eu ir embora pra casa na mesma hora. Ele e Desidério só se olharam, sem trocar palavra. Entre homens como eles, palavras não são necessárias, só atitudes, pois cada um sabe o que pode ou não fazer em cada situação e o que cada situação requer de atitude ou resposta. E tudo ficou por isso mesmo, pois eu não valia a incomodação para o Desidério. Nunca "descobriram" o matador do Xergão e não mais o interpelei, tanto por ordem do meu pai quanto por depois, pensando sobre o assunto, ter me dado conta da tremenda estultice que fizera.

Nunca tinha contado essa história publicamente, quanto mais publicá-la. Só queria falar pra tuzes que não acho legal as pessoas irem no enterro de quem não gostam fazer média, que isso é coisa que não se deve fazer. E mentir também não. Inventar é coisa que pode se fazer; mentir, não. Eu já falei aqui antes que sou muito mentiroso, mas só conto mentirinha inofensiva.

Fui. Inté.

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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.

Mais textos em:

http://charkycity.blogspot.com

(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 23 de outubro de 2013: "23/10/2013 00:18 - Giustina

Oi, Antônio! Como hoje não é mais aquele hoje, acredito que não estejas mais chateado... rsrrs! Quanto ao teu blog, sugiro que continues a divulgá-lo, afinal, numa dessas tu lembras tua senha... Grande abraço".).

Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 05/06/2020
Reeditado em 07/06/2020
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