Conto V - Quirino

Maria saiu do banheiro enxugando o cabelo com uma toalha e Quirino cravou os olhos nela como se aquela cena lhe tivesse trazido algo à memória.

- O que foi meu bem? Viu um fantasma? – Ela perguntou, casualmente.

- Não. Não. Só estou na dúvida se tranquei a porta do meu quarto.

- Só isso mesmo?

- Sim minha filha. Só isso. Não gosto que mexam nas minhas coisas.

Maria largou a toalha em uma cadeira e sentou na cama bem ao lado dele.

- Você anda tão sério.

- Os dias têm sido difíceis ultimamente.

- Eu imagino.

- Você se incomoda?

- Com o que?

- Que eu esteja assim.

- Não, meu bem. Eu até gosto. Você lembra muito o meu pai. Ele tinha o mesmo jeito quando estava preocupado com algo.

- Não sei o que pensar sobre isso.

- Ah... Eu gosto de homens rabugentos.

- E mais velhos, não é?

Maria riu e sentou-se no colo dele.

- Eu gosto de cabelos brancos e cicatrizes. Gosto de ouvir tuas histórias, os teus causos, as tuas angústias e incertezas. Quando estou com homens mais novos, sempre fico entediada. Com você, nunca.

Quirino beijou os seios de Maria e ela entrelaçou os dedos entre seus cabelos. Ele se sentia em casa ali. Apesar de tudo. Apesar de toda a transgressão que ela representava. Maria se levantou e se deixou cair deitada na cama do lado dele, com o corpo desnudo.

- No que você estava pensando quando eu saí do banheiro? De verdade... – Perguntou.

- Eu estava pensando em Deus e Abraão. – Ele confessou.

- Sério? Como assim?

- Na bíblia há uma passagem em que Deus pede a Abraão que sacrifique o seu único filho, Isaac, como prova de Fé.

- E por que Deus faria isso? – Ela perguntou curiosa.

- Aí é que está o ponto. Deus havia prometido a Abraão que seus descendentes encheriam o mundo. Só que Isaac era o único filho de Abraão, e este já era um homem velho. Então como é que Deus poderia cumprir sua promessa se ele exigia o sacrifício do único filho de Abraão?

- Realmente não faz sentido.

- E também não faz sentido que um Deus amoroso e justo peça o sacrifício de um jovem inocente. Sendo que o próprio Deus havia proibido o sacrifício humano já em Levítico.

- E então, por que é que Deus fez isso? E Abraão? Ele matou o filho?

- Ele estava disposto, assim como Isaac também se dispôs a morrer. Mas quando Abraão estava prestes a matá-lo, um Anjo desceu dos céus e segurou a sua mão. Então Abraão sacrificou um cordeiro no lugar do filho.

- Então só foi um teste de Deus.

- Sim.

- E Abraão passou no teste.

- Bem. É justamente nisso que eu estava pensando. As pessoas creem que Abraão provou sua fé a Deus, mostrando a disposição de sacrificar o filho. Mas o que me veio à cabeça é que Abraão só provou que não conhecia a Deus, e que a fé dele era cega. Quem é que mataria o próprio filho de bom grado? E que Deus bondoso é esse que pede esse tipo de sacrifício?

- Eu não mataria. Eu iria direto pro inferno se fosse o caso. Mas nunca mataria um filho por algo assim.

- Exatamente. Por isso que eu acho que Abraão falhou no teste de Deus.

- E no fim quem se ferrou foi o cordeiro.

- Pode-se dizer que sim.

- E por que você estava pensando nessa história?

- Porque ela me fez pensar nas vezes que eu posso ter entendido errado a vontade de Deus. E nos caminhos errados que eu posso ter tomado na vida.

- Você está pensando em me deixar? – Ela perguntou, se levantando da cama bruscamente.

Quirino cruzou as pernas e respirou fundo antes de falar.

- Não penso em deixar você. Mas nem por isso eu esqueço que estou em pecado.

- O que é o pecado, meu amor?

- Você sabe muito bem do que eu estou falando.

Maria ficou de pé e olhou irritada para ele. Depois andou até a escrivaninha e pegou uma bíblia na mão.

- Alguma coisa nesse livro aqui diz que é proibido amar?

- Não. Mas não se trata de amor.

- Você não me ama?

- Amo. Claro que amo.

- E então?

- Você fala como se tudo fosse simples.

- Deveria ser. Pelo menos se você quisesse.

Maria largou a bíblia sobre a cama e foi até o armário. Separou uma muda de roupas e se vestiu.

- Isso tudo me dói, sabe? Te ver assim definhando de culpa.

- E o que é que você quer que eu faça Maria?

- Se você escolheu estar comigo, esteja por inteiro. Sem essa culpa toda. Se não aguenta, meu amor, beba leite em vez de vinho.

Quirino ficou um bom tempo com o olhar perdido na parede do quarto, com os pensamentos revolvendo tudo o que haviam dito.

- Me desculpe... você está certa. – Ele falou finalmente.

Maria não respondeu e o deixou sentado sozinho onde estava. Depois de alguns minutos ela voltou com um bolo de roupas debaixo do braço, as estendeu sobre a cama e Quirino pôde sentir o cheiro de amaciante tomando o quarto.

- Suas roupas já estão secas. Quer que eu passe ferro?

- Não precisa.

- Tem certeza? Não gosto quando você anda com roupas amarrotadas por aí.

- Eu não ligo.

- Mas eu ligo. Parece que você não tem mulher.

- Acho que é justamente isso que esperam de mim.

- Não me interessa – Ela disse finalmente, pegando um ferro de passar. – Você só sai daqui com a roupa engomada.

- Tudo bem, meu amor. Obrigado.

Maria separou as roupas e começou a estirá-las com o ferro quente, enquanto Quirino acendeu um cigarro na janela.

- Minha mãe me mataria se soubesse de nós dois. – Ela falou por fim.

- Por quê?

- Ora porquê... Ia gritar comigo por ter me amancebado com um Padre. E diria que nós estamos condenados ao inferno.

- Talvez estejamos realmente.

- Você sabe que eu nunca fiz questão do céu.

- Pra mim tanto faz.

- Tem certeza?

- Contanto que você esteja do lado, está tudo certo. Acho que Deus é capaz de entender isso, não acha?

- Quem entende de Deus aqui é você, meu bem.

- Eu entendo de igreja. De religião... da minha pelo menos. Mas no fim das contas nada disso significa estar perto D’ele.

- Verdade.

Quirino deu um último trago no cigarro, o apagou na janela e soltou a fumaça pro lado de fora.

- Onde sua mãe mora?

- Mora no interior. Na cidade onde eu nasci.

- Longe daqui?

- Dá umas 10 horas de viagem.

- Espero conhece-la um dia.

Maria riu um tanto nervosa e desligou o ferro de passar.

- Você está de graça não é?

- Não. – Ele respondeu laconicamente.

Maria dobrou as roupas e colocou dentro de uma mochila preta.

- Não gosto quando você brinca com coisas sérias.

- Não estou brincando.

Quirino então tirou o crucifixo que carregava ao redor do pescoço e estendeu para Maria.

- O que isso significa? – Ela perguntou.

- Que nem Deus vai ficar entre nós dois.

Maria pegou o crucifixo nas mãos sem tirar os olhos de Quirino se questionando se ele falava sério.

Quirino a puxou pela cintura e sussurrou ao pé do ouvido.

- Não olhemos mais para trás.

E aí Maria teve a certeza que ficariam, enfim, juntos.

A eternidade era dos dois.

Nem que fosse apenas para queimar.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 22/08/2020
Reeditado em 03/06/2021
Código do texto: T7043117
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.