Hom (su) icídio

O Hom(su)icídio

Havia alguma coisa diferente naquele entardecer, desde o seu rosto corado até a falta de dor em sua cabeça. Para o detetive Jaime, o dia apenas começava. Jaime levantou, causou seus chinelos azul marinho e vestiu cuidadosamente o seu único terno. Como sempre, sua mente não conseguiria pensar em nada antes de um primeiro gole de uísque. Fugitivo de si mesmo, ele acreditava ser um homem de alma tão perdida quanto o seu próprio reflexo enfrente ao espelho, sentindo-se o homem mais triste do mundo. Um culpado que só conseguia ver lágrimas e gritos de dor em qualquer lugar onde fosse.

Aquele seria o início do dia mais difícil de sua existência.

O detetive estava angustiado, movido pelas recentes lembranças :

Jaime foi um dos quatro que seguraram as alças no cortejo choroso de Mary, deixando-a, definitivamente, coberta de tijolos e cimento, e um buquê com 12 rosas brancas. Ali ele deixou, também, o que restava de sua alegria.

Jaime penteou os cabelos, limpou os óculos, fundo de garrafa, na barra da blusa, assoou o nariz e deu uma última olha nos seus olhos encoleirados. Acompanhado por um vigor imaginativo, resolvido a instaurar inquérito para investigar o caso da “velha” amada, seguiu desatento à versão que havia dado o caso por encerrado. Na nuvem de seu mistério, querendo devassar a sua culpa em busca da punição que acreditava ser merecedor, Jaime recebeu o castigo.

Da janela dava pra ver o céu como uma tela azul, amontoada de imagens estranhas.

O detetive Jaime estava decidido em desvendar a sua verdade, vestiu seu sobretudo preto, ajeitou a sua pistola na cintura, pegou a chave do carro de cima da geladeira, completou sua garrafinha com uísque, tirou da parede um crucifixo e uma medalhinha de São Francisco de Assis e saiu ...

Jaime já estava prestes a entrar pelo portão principal do Cemitério São Lucas, quando acomodou-se num banco em frente à entrada para apreciar o seu “pequeno” prazer. Abaixou o olhar e enfiou as mãos nos bolsos procurando a tal garrafinha. Enquanto bebia observava as pessoas passando sem imaginarem o mundo de suas visões, onde o céu e o inferno estão sempre interconectados.

— O que você quer ? - perguntou o porteiro, com voz firme e provocativa.

Surpreso, Jaime limpa os lábios com o lenço e sorri amargo .

— Dá pra eu entrar ?

O detetive contou toda a sua história, de seu grande amor proibido e de como ele recebeu o seu valioso presente, sob a promessa de jamais ser feliz.

— O horário já acabou, mas você me convenceu - disse o porteiro, fazendo o sinal da cruz e se afastando devagarinho.

Tudo o que Jaime havia lhe dito ainda rebatia em seus ouvidos, ecoando em sua mente superexcitada.

O Sol já havia se desfeito por completo.

O interior do cemitério, para Jaime, parecia ser quente e aconchegante, pois o seu cenário era apenas a imagem de Mary. Jaime se aproximou dos túmulos transformando sua seriedade em produto de sua própria imaginação, vivendo a ficção que havia criado para si mesmo, numa espécie de realidade parcial. Descontraiu o rosto e passou a fazer perguntas ...

— Vocês sabiam que eu amo Mary ? - repetindo várias vezes.

Mostrando um olhar assustadiço começou a caminhar na direção do que supôs ser a do túmulo de sua amada.

Jaime Henrique Penha, nos seus 58 anos, era um homem que refletia a sensibilidade, extremamente pessimista, de olhos matizados por um azul gélido. Alcoolizado transformava-se em um patético sobrevivente solitário e deprimente. Os seus “amigos” o descrevem como um louco raivoso que adorava se afundar, um perdedor de mente inquieta e sofrida. Sempre mal vestido, no mesmo terno branco, sapatos sempre sujos. Seu ideal político sempre foi à utopia anarquista. Bebia uísque quase o dia todo, fumando mais do que deveria. Jaime identificava-se com qualquer pessoa sofrida e constrangida. Sua maior realização seria casar-se com Mary Mor (como dizia). Seu maior sonho era morrer sem sofrimento.

Infelizmente um homem desinteressado pela vida só pode morrer porcamente.

O detetive Jaime conheceu Mary pelas mãos de um amigo, pelo que se sabe dela, ela era uma mulher aberta. Achava que tudo e todos viviam em torno de seu umbiguinho, na verdade tudo acabava sendo como ela quisesse. Mostrava o seu lado agressivo para qualquer um que lhe contraria-se . Com apenas 22 anos era uma mulher com inestimável autocrítica, uma mulher de teatro disposta a calar a boca e abrir os olhos de qualquer desavisado. Não perdia seu tempo com críticas sem fundamento, nem com conversas com psiquiatra. Mary Stevens era uma mulher normal, provocante, independente.

Não sei. Fico imaginando como Mary conheceu o jaiminho (como ela o chamava na intimidade). Eles eram tão diferentes ! Sempre fui cético quanto à possibilidade de ter havido alguma paixão por parte de Mary, talvez ela representa-se um texto vivo quando transbordava do papel um toque de mãos firmes sobre sua pele sensual e sempre, quente.

— Perdão, não me julgue um assassino. Eu não sei viver sem o teu amor gritava ele, aos prantos, já em frente ao túmulo de sua amada.

O frio que percorreu sua espinha adivinhava o que viria a acontecer.

— Fique aí, desgraçado, remoendo o seu remorso.

Jaime sentiu suas pernas afrouxarem, o ar fugir de seus pulmões em velocidade acelerada ...

— É você meu amor ? - perguntou ele, tateando o bolso atrás de um gole de uísque.

O suor corria sobre sua testa enrugada e nos óculos.

— Eu sei que enlouqueci, mas foi por amor ... — Não sei porque você fez isso comigo, eu não dei motivos.. Agora não adianta mais.

A noite estava fria. Uma nuvem espessa parecia cobrir o solo. Jaime se aproximou ainda mais do túmulo, quem sabe de Mary, sem nenhum sinal de pavor e disse:

— Graças a Deus, você esta viva !

A mão que segurava a bebida custou a entender o que a mente havia lhe ordenado.

Eram 03 minutos do dia seguinte quando o porteiro, às pressas, foi ao encontro do detetive, já sem vida, com uma das mãos sobre a lápide que dizia.

“A morte não existe...”

— Fim —

Autor: Alexandre Abrantes

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Alexandre Abrantes
Enviado por Alexandre Abrantes em 14/11/2005
Código do texto: T71245