Saliva

Saio do trabalho no fim da tarde e recebo um telefonema de minha mulher, que me pede para comprar azeite e café. Cansado e com fome, compro a encomenda no supermercado ao lado da empresa, mas não resisto a um pacotinho de bolachas recheadas com goiabada.

Sacola numa mão, pacotinho de bolachas na outra, caminho em direção ao tubo. Já salivando, abro meu acepipe. Na escada do tubo me deparo com uma mendiga velha e gorducha. A pedinte estava sentada sobre uma sacola de roupas sujas. O cheiro de suor e urina seca era nauseante. Mão estendida, unhas sujas, dedos rachados e lá se vão minhas bolachinhas recheadas, não sem que eu tomasse uma para mim.

De dentro do tubo, enquanto como minha bolachinha, observo a velha. A boca, murcha e sem dentes, sorri com lábios finos e ressecados. Os olhos débeis, por trás do cabelo empastado e grisalho, agradecem a benesse.

Percebo que a velha, talvez pela ausência dos dentes, quebra a bolacha em pequenos pedaços e os leva à boca. Após cada pedacinho, parece aguardar, um ou dois segundos, para que a saliva amoleça o alimento. Por fim mastiga e sua boca parece ainda mais murcha e grotesca.

Mastigo minha bolacha. Saboreio aquele biscoitinho recheado, mas não consigo engolir. Sou invadido pela consciência de que estou sentindo a mesma coisa que a velha. O ônibus chega e entro apressado. Estação e velha ficam para trás, o súbito desespero não. De alguma maneira estou ligado àquela boca murcha e sem dentes. O prazer da guloseima é substituído pela náusea. A ligação com aquela mistura pastosa de bolacha e saliva me causa engulhos. Não consigo pensar em outra coisa. Com ou sem dentes eu e a velha experimentamos uma espécie de união espiritual. Lembro da barata em “A paixão segundo G. H.”, de Clarice Lispector e minha ânsia aumenta.

Desembarco na Rui Barbosa e vomito sobre um canteiro de flores.