Escrever é fácil

Escrever é fácil

Lia Derrida

Acho engraçado quando a pessoa diz que escrever é complicado e que entre ter uma ideia e colocá-la no papel leva horas, dias, meses e até anos!

Pior! Citar Bilac e seu poema claustrofóbico sobre o processo de escrever, citar Poe e sua teoria furada de criação. Dizer que Flaubert levou várias décadas para escrever Madame Bovary, e que até Suassuna, o mestre, e Lima Barreto, o doce revolucionário, riscava seus textos antes de os escrever. Acha mesmo que eles juntavam folhas e mais folhas de anotações sobre suas próprias obras?

(Ouve o interlocutor que a acompanha. Ou faz que ouve, porque continua seu raciocínio mesmo depois de o escutar.)

Isso são falácias para dizer que por isso tal obra merece ser clássica e outra não!

Eu não. Eu sento, logo escrevo. Bem, nem sempre sento para escrever, logo posso descartar Descartes e sua frase filosófica de botequim.

Hoje mesmo, é meu dia de escrever. Dia de recarregar as energias e fazer algo novo, irrepetível e inenarrável. Bem, inenarrável, não, porque escrevo para a posteridade. Logo, precisa ser algo que se possa narrar.

Apaguemos esta palavra bonita. Irrepetível e inédita - ineditismo é interessante para a produção literária. (Divaga.) E uma linguagem mais coloquial. Quem sabe um narrador direto, próximo do real?

Bem. Mas ainda não vou escrever.

Preciso fazer uma leitura de jornal e assistir alguns vídeos para saber o que o mundo quer ler - é, mas ninguém lê no Brasil!

Espere. Vou dar uma olhada nos índices atuais… Poxa! Uma hora de leitura! É, os índices ainda são aceitáveis. Vou, mesmo, escrever hoje.

Revendo o que já fiz até aqui: li jornal, assisti umas postagens sobre notícias pelo celular, fiz algumas pesquisas nas revistas semanais…

Colocar um vinho no 'frigo' e substituir as taças no quarto.

Falta o café! Preparar água e colocar na garrafa, gelar água, providenciar frutas secas e amanteigados - que, quando escrevo, não gosto de ser interrompida nem pela fome.

Ah! Colocar junto aos outros, na estantezinha portátil, o novo dicionário de frases e expressões idiomáticas brasileiras. Que brilhante ideia da Editora Valer! Comprei em minha primeira saída pós-pandemia. Bonito, não acha?

Deixar fácil um incenso e o mata carapanã. O ventilador! Deixa eu buscar, esqueci na estufa ontem, depois que o limpei. Não quero que nem a temperatura interfira no meu trabalho.

Um caderno para algumas notas insurgentes! Tem horas que as ideias se rebelam.

Pronto. Agora sentar, ligar o computador e… não. Falta algo!

(Enquanto isso, o computador inicia.)

Faltava prender o cabelo. Ufa!

"Ad summus". Vou escrever. Você vai ver como fluem rápido ideia e produção do texto.

(Na tela, em que ela ainda não pôs os olhos, porque está limpando as lentes do óculos, um "Post-Its" em particular chama a atenção: "preciso retomar o livro Confissões de um Perdido".)

Opa! Que é isso? Ah. Desconsidere esta nota!

(Sorri desconcertada.)

É só um daqueles bloqueios criativos. O livro corria solto, personagens decididos e bem posicionados e na hora do climax, tchum! perdi o fio da meada. Desconsidere, é só um lapso em toda a minha carreira.

Bem. Voltemos. Pode colocar aí que comigo a escrita não tem método científico ou engrenagens complicadas: as ideias surgem e escrevo.

Simples assim.

...

Conto escrito para o Desafio Engrenagens da Criação, do EntreContos e não enviado. Lia Derrida é pseudônimo e um trocadilho e alusão a Jacques Derrida.

Referência: Bilac, o poema "A um Poeta".,

Poe. "Filosofia da Composição", de Edgar Allan Poe.

Elisabeth Lorena Alves
Enviado por Elisabeth Lorena Alves em 26/02/2021
Código do texto: T7193651
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