A miúda

Era tudo morto. Nem flor, ave, grão, inseto. Não havia nada. Tudo jazia na essência do fim do mundo. No entanto, existia uma ânsia qualquer no seu coração que parecia dar luz ao infinito. Desejava, sonhava, pensava. Tudo junto e no mesmo respirar.

Enquanto a miudinha carregava lata sertão a fora, sua mente brilhava mais que o sol. Viu uma vez a foto de um cavalo muito forte, negro. Passou a achar que todos os animais deveriam ser cavalos. A visão do animal lhe trouxe as batalhas mais longínquas, então ela soube que não devia negar-lhe monta, foi com ele pelo caminho que vão os heróis. Reproduzia no ar os movimentos precisos de um guerreiro decapitando seus temidos inimigos e batia os pés no chão seco dando vida a longas cavalgadas. Noites de vigília em acampamento no deserto, mapas das terras que ajudaria a conquistar, tudo era vivido com a consciência da grande responsabilidade! A mãe, possivelmente morta na raíz e viva no osso, deu-lhe, em uma ocasião, um preparado de mandacaru, grande exorcista do sertão. Ela bebeu como se fosse poção mágica de maior encantamento, imaginando o quanto invencível se tornaria. Depois a mãe largou para lá.

Toda tarefa era para a miúda um tipo de movimento místico de seu personagem na história épica de sua vida de heroína. Se andar duas horas no sol castigado, engolindo poeira, fosse para todos suplício, para ela era a chance de ir libertar algum conterrâneo de sua aldeia, alguém com importância vital na salvação de seu reino. Quando apanhava, passava fome, sofria, culpava os algozes que a capturaram por ordem de um rei sem misericórdia, com a intenção de dominar o seu povo.

Na primeira infância ouvia o pai contar a mesma história de João e o pé de feijão, talvez o pai só soubesse aquela ou não tivesse vontade de decorar outra. Seus irmãos davam conta de dormir logo no início, mas ela ficava acordada até o fim. Não porque gostasse da estória, o que interessava mesmo era a sombra que o candeeiro produzia na parede de terra batida. Muitas vezes seu pai foi um monstro marinho, mesmo sem ela saber que existia mar, foi um gigante de gelo, mesmo sem ela saber que existia gelo, foi um temido cavaleiro, mesmo sem ela saber que aquilo era sonhar.

Mais tarde, quando já fazia os quinze anos, apareceu no lugarejo um jovem vendedor de gaiolas. Ela achou mágico que o príncipe encantado vendesse gaiolas onde não havia nem árvore, nem pássaros. Deixou que ele se achegasse na conversa e levou o prometido para conhecer seus pais. A mãe avisou que se ela fosse com ele não voltasse, o pai deu-lhe umas notas velhas de dinheiro e um sorriso que mais tarde, bem mais tarde, ela descobriu ser de afeto. O irmão caçula chorou agarrado ao seu vestido azul. No mais, tudo permaneceu na morte de sempre.

Muitas vezes ela precisou desembainhar sua espada invencível no caminho que a vida estabeleceu. Uma ou duas vezes teve que admitir a fraqueza de seu cavalo, mas nunca, nunca perdeu nenhuma das guerras travadas pelos campos imensos do mundo.

Aos anos que foram se acrescentando entre ela e a casa no sertão, foi dando versões diferentes para a sua família. Fez do pai um rico fazendeiro, a mãe uma dama da alta sociedade, os quatro irmãos ministros de governo! Atrás do balcão onde trabalhou quarenta anos, irrigou terras, construiu escolas, tocou piano, fez balé, foi atriz e plantou árvores para ajudar aos vendedores de gaiolas. Tudo lá, dentro do coração que ela trazia.

betina moraes
Enviado por betina moraes em 11/11/2007
Reeditado em 11/11/2007
Código do texto: T733022
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