LABIRINTO

A super lua azul

Reinou sete noites

Esculpiu enredos humanos

Transitou parques e ruas

Deslizou no espelho das águas

Saltou da cama nos primeiros acordes do despertador e, de imediato, caminhou em direção à janela. Ao olhar pelo vidro, notou uma cena repetida. Era profunda a escuridão. Relâmpagos intermitentes acentuavam o marinho carregado das nuvens.

Embora a densa paisagem lhe invadisse os olhos, Acético sentia-se vitalizado. Preparou o café, leu o jornal e, na hora habitual, incursionou pelas ruas. O desenho urbano e os caminhos percorridos eram os mesmos, mas os rostos passageiros eram indiferentes. Nem a vizinhança do escritório parecia familiar. Ao entrar no seu gabinete, foi cumprimentado por um secretário inteiramente desconhecido.

Diante do insólito, buscou ligeira explicação. Afinal, não despedira o antigo funcionário e nem lembrava de ter admitido o atual servidor. Entretanto, como tudo estava nos seus lugares, ele mergulhou no trabalho. Nesse dia, conforme a agenda informava, era preciso ultimar o estatuto da Geheimnis. O regulamento era complexo e deveria ser encaminhado para registro em cartório até às 18 horas.

Antes de se posicionar junto ao computador, Acético viu pela janela relâmpagos intermitentes que exibiam o marinho profundo das nuvens.

O cenho carregado do dia em nada o atrapalhava. Era preciso concluir a redação do estatuto. Precedentemente, ele se pôs a revisar os itens elaborados. Em dado momento, observou certa incongruência entre a faculdade arbitral contida numa cláusula, e a arbitragem imperativa mais adiante encontrada para solucionar os mesmos impasses societários. A impropriedade necessitava ser desbastada. Essa tarefa exigiu-lhe cuidado. Lá pelas tantas, Geist surgiu em sua sala. Ao servir o cafezinho, o secretário ouviu atentamente as dúvidas do chefe e resolveu expressar uma opinião:

- Senhor, o fato dos raios de sol não perpassarem as nuvens, não autorizaria concluir-se pela inexistência da manhã. Portanto, sem prejuízo da essência estatutária, o caso se ajustaria a uma mera faculdade.

Bingo! Isso mesmo. O secretário de nome estranho mostrou-se útil. Acético agradeceu a intervenção de Geist e logo se voltou ao trabalho que prosseguiu ininterrupto até a hora do almoço.

Finalizado o expediente da manhã, Acético dirigiu-se à casa de pasto. No restaurante, observou que os atendentes e frequentadores eram-lhe desconhecidos. Buscou ligeira explicação para o fato, mas como foi prontamente atendido e tudo fluía com normalidade, logo apascentou a fome. Depois, pensou no trabalho. Era preciso compor o estatuto da Geheimnis e passá-lo às mãos do secretário para registro em cartório antes das 18 horas.

Ao percorrer o costumeiro trajeto de volta ao escritório, Acético não identificou os vultos que cruzavam seus caminhos. Procurou efêmera explicação para isso, mas não se deteve em respostas. Seria perda de tempo.

No cair da tarde, sob o despencar de raios e o retumbar dos trovões, Acético mostrou a costumeira eficiência. Em tempo hábil, passou ao secretário, concluído e revisado, o estatuto da Geheimnis para o necessário registro. A seguir, deu por findo o expediente. Apanhou a gabardina, o guarda-chuva e saiu. Ao passar no jornaleiro, comprou uma revista especializada em economia e rumou para casa. Enquanto caminhava, buscou explicação para o fato de não ter encontrado um único rosto que lhe fosse familiar, afinal, o trajeto era invariável e o horário era o costumeiro. Mas isso não importava. Logo, estaria em seu confortável divã.

Após a leitura e o lanche habitual, bateu-lhe o sono. Antes de dormir, Acético foi à janela respirar fundo, sentir o frescor da noite. Quis trazer algumas estrelas ao rápido passar dos olhos, pois não era homem de perder tempo. O que restou todavia, foram relâmpagos intermitentes que expunham o marinho carregado das nuvens.

Entregue ao sono, Acético viu-se diante do estatuto da Geheimnis e da cláusula arbitral de custosa redação. Nem por ocasião da atividade onírica ele perdia tempo, por isso, estava a repreender o novel secretário que o teria induzido a erro:

- Geist, você não estava autorizado a palpitar em assuntos de minha responsabilidade. Ao dar ouvidos ao seu atrevimento, cometi erro imperdoável. Agora, de forma urgente, precisaremos anexar cláusula retificadora junto ao cartório.

- Não era minha intenção, senhor...

- Veja Geist, com ou sem nuvens, eu poderia sim concluir pela ausência da manhã. Bastava que não contemplasse raios de sol. Ao passar essa alegoria para os estatutos, a faculdade para dirimir impasses societários previstos em regras contraditórias não se aplicaria. O imperativo arbitral seria da essência estatutária.

O diálogo com o secretário perdeu-se de vista nas glebas do sonho.

Ao recobrar a consciência, sob os primeiros acordes acionados pelo despertador, Acético nutria a certeza de que era necessário anexar cláusula retificadora ao estatuto da Geheimnis. Por isso, vestiu-se depressa, desistiu do café e incursionou pelas ruas. Geist agora saberia o que era mesmo da essência estatutária.

Em seu trajeto, uma profunda escuridão. Intermitentes relâmpagos exibiam o cenho carregado das nuvens. Como sempre, nenhum rosto familiar em volta. Ao entrar no escritório, foi cumprimentado por um secretário desconhecido. Onde afinal estaria Geist? Bom, isso até não mais importava. Ghost, o atual servidor, mantinha tudo nos seus lugares. E como Acético não era homem que se dedicasse a perda de tempo, foi tratar da cláusula retificadora.

Ao trazer o café, por volta das 10 horas, o secretário deparou-se com um homem agitado e sem inspiração. O atento servidor compartilhou as dúvidas do chefe, e, por fim, palpitou:

- Desculpe senhor, aqui parece inexistir faculdade ou imperativo condicionados a um tribunal de mediação. A exclusão das cláusulas sob análise, não traria prejuízo algum. Retirando-se esses itens do regulamento, impasses societários estariam naturalmente destinados à apreciação judicial.

Bingo! O secretário mostrou-se conhecedor do assunto. Acético agradeceu a intervenção e se dedicou ao reexame das regras estatutárias. Ao ver a intermitência dos relâmpagos que invadiam o gabinete, inspirou-se ainda mais; chegou a pensar em outros ajustes que se fizessem necessários para aclarar o regulamento societário.

A partir de então, o trabalho prosseguiria ininterrupto. Não havia tempo a perder. O almoço foi dispensado. Inúmeras seriam as retificações.

Por fim, anexos e correções foram entregues para registro em tempo hábil.

Aliviado, Acético apanhou a gabardine e o guarda-chuva e se foi em busca do divã que o aguardava na solidão do apartamento. Nem buscou explicações para os semblantes desconhecidos que cortaram seus caminhos, afinal, não era homem de perder tempo. Sequer foi à sacada respirar fundo ou para repousar algumas estrelas na brevidade do olhar. Lanchou, terminou a leitura econômica e dormiu. No sonho, para seu desespero, o estatuto da Geheimnis, por entre raios e trovões, espalhou-se pelos ares. Acético conseguiu recolher cada uma das peças do precioso regulamento. Ainda durante a atividade onírica, viu-se a pensar em novas retificações que atendessem o seu íntimo perfeccionista.