Consciência

Era um dia normal de um mês qualquer. Faço isso para livrar de culpas o injustiçado calendário, já tão marcado por tragédias, crenças e superstições.

Começava a escurecer, e lá longe, no encontro do céu com o mar, a tarde se despedia melancolicamente desmanchando-se em cores que eu nem imaginava que existissem.

Sem dar a devida importância à beleza daquele espetáculo natural de vida e morte, com a mão direita euforicamente ergui o copo na forma de brinde e em seguida o levei à boca, tragando um volumoso gole daquele ensanguentado vinho. Não satisfeito, refiz o brinde. Foi quando percebi que minha sombra claudicava em repetir meus gestos...

Assustado, comecei a gesticular insistentemente com as duas mãos contra a luz o mais próximo possível daquela enorme parede branca, nua de adornos, como se quisesse reconectar o “sinal” que fora interrompido. O silêncio sepulcral do ambiente contrastava com minha baderna interior.

Com olhar fixo naquele muro branco, que mais parecia uma tela de cinema, comecei a ver trechos do meu passado, que se misturavam e me traziam lembranças de um período que havia se distanciado apressadamente de mim, tornando-se precocemente passado sem que eu percebesse. Fui tomado por um medo pueril, que me obrigou a abandonar apressadamente aquele estranho lugar.

Sem sequer olhar para os lados, desci tão rapidamente às escuras escadas que davam acesso à praia que só percebi que lá estava quando senti a textura da areia em meus pés. Sentei-me de frente para o mar e tão próximo à maré que podia tragar o hálito de algas e sargaços das ondas que se desfaziam sempre no mesmo lugar, como se soubessem seus limites, coisa que eu precisava aprender.

Cerrei os olhos profundamente e quase em transe refiz meus passos. Como se estivesse na plateia de um teatro de sombras, sem sons e sem rostos, revi todos os meus movimentos e reavaliei cada gesto meu, tentando encontrar uma explicação para aquele estranho fenômeno.

Subitamente, minha cabeça foi invadida por um turbilhão de recordações que açoitavam minha memória. Era como se a porta lateral de uma aeronave se abrisse abruptamente em pleno voo tragando uma densa nuvem de tempo. E as lembranças começaram a ganhar formas.

Lembro-me de não ter feito nada para evitar aquela paixão proibida; Lembro-me de que em nome desse louco desejo desfiz juras sagradas e promessas eternas;

Lembro-me de ter penhorado minha alma em troca da satisfação de tão insano desejo;

Lembro-me de desautorizar meu passado a me trazer referências que pudessem impedir-me de avançar na direção daquilo que somente eu não via como absurdo;

Lembro-me de ter abandonado minha dignidade fazendo-a assumir as crias das minhas grávidas mentiras;

Lembro-me de me agarrar desesperadamente àqueles momentos falsamente mágicos, e só eu agi assim, acreditando poder transformá-los em infinito;

Lembro-me, agora arrependido, do momento exato em que expulsei do corpo minha contrariada sombra, quando percebi nela o maior dos meus obstáculos;

Lembro-me, enfim, de ter agido assim por não ter tolerado vê-la rebelar-se, incitando minha consciência e negando-se a repetir os gestos que dediquei à comemoração daquela amarga conquista.