A MELHOR REFEIÇÃO DE SUA VIDA

Aquela refeição parecia muito boa. Seus pequenos olhos olhavam para a comida à frente sentindo o gosto que ainda nem chegara à sua boca. Desde que se conhecia por gente, aprendeu a valorizar cada momento que passava comendo. Não só a comida em si, mas o momento da refeição também o alimentava.

Para ele, aquilo tudo tinha um sentido quase mágico. Sempre dizia que era uma emoção muito grande sentir a comida entrando por sua boca e sentir que, dentro de seu organismo, ela se encarregaria de funções muito importantes. Ele sentia que, no mundo, tudo deve ter sua função muito bem estabelecida, e isso, para ele, incluía a comida. Imaginava cada pedaço de alimento descendo pela sua garganta, dançando enquanto chegava ao estômago e se transformava em energia para suas atividades diárias.

E ele precisava de muita energia. Suas atividades diárias eram intensas. Outra coisa que ele sempre dizia, e essa com muito orgulho, era que aprendeu desde cedo a não ficar parado. A sobrevivência, dizia ele, anda de mãos dadas com a atenção e a disposição de nunca relaxar, nem mesmo quando se dorme. Ele sabia que algumas pessoas podiam achar isso exagerado, mas ele pensava por si e, na verdade, não poderia pensar de outra forma.

Tinha pouca idade, é certo, mas pensava muitas coisas. Sem saber direito o que significavam muitas coisas, as quais esperava um dia aprender na medida em que envelhecesse, sabia muito bem o que significava a palavra “orgulho” e se orgulhava bastante dessas suas constatações.

E se orgulhava de ter essa relação que tinha com a comida, algo tão importante. E o banquete à sua frente naquele momento aumentava essa sensação.

Enquanto se preparava para comer, pensava que só era uma pena que o ambiente estivesse tão escuro. Um banquete como aquele merecia uma decoração no mínimo mais iluminada. Sem contar o cheiro, que não estava muito convidativo. Mas ele não podia perder tempo com essas lastimações.

Estranhamente, parou por um segundo e tentou se lembrar da primeira vez em que comeu. Era estranha essa pausa para se lembrar de algo que estava lá atrás na sua memória, já que na agitação dos seus dias, não dava muita importância para lembranças, principalmente porque, para ele, certas lembranças eram bem doloridas (a dor era outra coisa que ele conhecia bem. Aliás, os vários tipos de dor). Mas aquele banquete à sua frente merecia uma pausa para lembrar da primeira vez em que comeu. Isso porque a primeira vez tinha sido a melhor até então e ele achava que esse banquete de agora seria melhor ainda, não fosse pela iluminação do lugar e pelo cheiro desagradável.

Sem perder mais tempo, ele parou de se lembrar de coisas do passado e preparou-se para comer. Embora houvesse parado de pensar no passado, sentiu novo ânimo na esperara pelo futuro. Sentiu-se ansioso, como nunca antes, pelas coisas que aprenderia a respeito da vida e que sua idade não tinha lhe mostrado até agora. O banquete estava inspirador.

Começou a comer, então. A primeira mordida trouxe-lhe à boca um gosto antigo, mas que agora parecia novo. Era leite. Ele sentiu gosto de leite. Há muitos anos não sentia gosto de leite, desde a época em que ele ainda tinha mãe. Fechou os olhos, saboreou o alimento e nesse instante, voltou a lembrar.

Lembrou-se de sua mãe, que há muitos anos não via. Sentiu saudade e começou a chorar, enquanto o gosto de leite daquela comida descia pela sua garganta. Sua mãe era uma mulher da qual ele não se lembrava muito bem, pois conviveu pouco com ela e fazia muito tempo que eles não se viam. Ele nem sabia se ela ainda estava viva. Pediu a Deus que trocasse esse banquete por alguns segundos junto de sua mãe, só para que ele pudesse dizer algo que ele ainda não sabia dizer quando eles se separaram.

Ele queria dizer que a ama. Essa era uma das coisas que a vida lhe ensinou à medida que ele foi crescendo. Ensinou a falar e a dizer coisas como “eu amo você”.

Antes de morder outra comida do banquete, esperou alguns segundos para ver se seu desejo seria atendido. Como viu que nada aconteceu, entristeceu-se e voltou a comer.

Apesar de triste, ele sentiu novamente a empolgação pelas coisas novas que aprenderia no decurso de sua vida. Algumas dessas coisas talvez fossem relativas a assuntos para dizer à sua mãe, caso a encontrasse de novo.

Seus pequenos dentes morderam outra comida, que ele não conseguiu identificar. Quis ficar pensando sobre isso, para tentar talvez descobrir o que era aquele alimento, mas teve que parar de comer quando escutou um barulho atrás de si. Virou-se para olhar e viu uns animais, umas criaturas que ele já tinha visto em outras vezes, mas nunca teve oportunidade de conhecer melhor, pois sempre se assustou com elas. Eles eram ariscos, bravos.

Mas agora, animado pelo banquete, ele pensou em dividir um pouco dessa comida com esses animaizinhos. Seria uma oportunidade de tentar se aproximar deles. Outra coisa que ele aprendeu em sua vida era que os animais podem ser melhores amigos do que os humanos. Esse banquete era uma ótima oportunidade para se tornar amigo desses animais que se aproximaram.

Ofereceu um pedaço do alimento com gosto de leite, que ele achou que os animais gostariam tanto quanto ele gostou (talvez se lembrassem de suas mães, como ele se lembrou da dele). Esperava agradar, mas torcia para que o cheiro ruim do lugar e a iluminação horrível não desagradassem os bichinhos.

II

No dia seguinte, a vida continuou seu curso normal para as pessoas que, apressadas, andavam pela calçada acima do esgoto. Mas lá embaixo, misturado ao odor e aos dejetos, estava o corpo de uma criança, mastigado por ratos famintos que enxergaram naquele corpo infantil um maravilhoso banquete. Junto do corpo de criança devorado pelos ratos, estavam restos de outros alimentos, inclusive biscoitos e bolos que ainda conservavam o gosto de leite.

Talvez um dia o cadáver seja encontrado. Se bem que, durante quatro anos, desde o dia em que aquela criança foi abandonada em um bueiro com poucos meses de vida, isso nunca aconteceu. Talvez não aconteça nunca

A única certeza é que essa criança não terá tempo de aprender as coisas que só o tempo pode ensinar. As mesmas coisas que aquele banquete o animou a querer aprender.