A mãe

... entrei. Meus olhos passearam pelo bar Bem Brasil à procura de uma mesa vazia, limpa e próxima à janela, para que eu pudesse, dela, avistar Vitorino, amigo de infância que chegara ontem de viagem feita à Irlanda, onde fora, como jornalista, fazer várias reportagens sobre a eterna e lastimosa guerra santa que lá...

- Pois não, posso ajudá-lo?

- Por favor, uma mesa próxima à janela?

- Se o senhor esperar um pouquinho mais, aquele casal já está pagando a conta!

- Obrigado, eu espero.

O bar não estava lotado, havia mesas disponíveis, porém preferia aquela a outra, da janela também via-se toda a praça com seu imponente busto bronzeado de Zumbi ladeado por um chafariz que banha crianças com fome, via-se o shopping cuspindo e engolindo as pessoas felizes, via-se...

- Senhor?

- Ah, obrigado.

- O que vai ser?

- Por enquanto, um chope.

- É pra já.

Lá fora o sol castiga os transeuntes, unta-lhes a pele, retirando deles a própria gordura, e assa-os. As crianças com fome não se importam com o calor, estão banhadas em águas de Zumbi. As pessoas felizes cuspidas pelo shopping se incomodam com o calor, se incomodam com as crianças banhadas, se incomodam...

- O chope, senhor.

- Obrigado.

Espero que ele não demore.

- Você vai participar?

- Hum, hum.

- Que horas são?

- Uma e dezessete.

A conversa ao lado me chamou a atenção sobre o atraso de Vitorino. Dois minutos. Ele já estava atrasado.

- Se a gente deixa, eles montam na gente.

- Eu sei. Por isso vou. Não sou burro de carga.

- Muita gente vai, e vai pra lutar, se for preciso. A gente tem que deixar de ser besta! Nem a polícia, nem o exército, nada vai nos deter agora!

- É, mas é só o povo ver os cacetetes, os cachorros, os tanques, e pronto! Contra a força é muito difícil se manter a ideologia, meu amigo.

- Mas precisamos parar com isso! Basta a polícia dar um peido e sai todo mundo correndo?! A gente quer ou não quer mudar essa porcaria?

- Com sangue?

- ...

- É fácil falar, amigo, mas não pertencemos a nenhuma seita religiosa fanática, somos apenas trabalhadores em busca dos nossos direitos, da nossa dignidade, da nossa cidadania, só isso! Não estamos aqui para mudar o mundo, só queremos aquilo que nos parece justo, só!

- Para isso, às vezes, é necessário um pouco de sangue, nem que seja nas nossas próprias veias...

A conversa ao lado era estimulante. Ainda não sabia exatamente do que falavam, apenas tinha uma vaga ideia do conteúdo. Eu também já pensara assim, de forma bélica, aguerrida, queria lutar contra o mundo se o mundo contra mim fosse, não media esforços para alcançar metas, muitas delas inalcançáveis, e inalcançadas. Quanto tempo perdido, quantos murros-em-ponta-de-faca, quantas inglórias, quanta dor...

- Mais um chope?

- Como? Ah, sim, mais um, por favor.

- O que o Sindicato disse?

- Não tem como apelar. As empresas entraram com um recurso irrefutável e apelaram ao juiz para que demita os trezentos e quarenta e cinco funcionários do setor de usinagem.

- Balela.

- Não sei.

- Saberemos hoje à tarde. Trezentos e quarenta e cinco?

- É.

- Todos virão?

- Você sabe que não, não todos.

Vitorino já está bem atrasado, eu não gosto de atrasos, ele sabe bem disso, ele sabe...

- Que horas são?

- Uma e vinte nove.

- Tá na hora. Vamos lá?

- Com cautela.

- Lógico. E com martelo. Garçon?... a conta.

- ...

- Senhor, outro chope?

- Não, obrigado. Posso ver o cardápio?

- Pois não.

Vou comendo, e quando ele chegar, ele almoça.

Daqui o verei chegar... daqui vejo o shopping... o chafariz... toda a praça... as pessoas em torno dos seus ideais...

- Demorei?

- Ué, de onde você saiu?

- A pergunta é: por onde você entrou.

- E aí, tudo bem com você, como foi lá, bebe alguma coisa?

- Um chope.

- Garçon! ... Você se atrasou!

- É, eu sei.

- Pois não?

- Dois à moda da casa.

- O que é isso?

- Você vai gostar, não se preocupe!

- É pra já, senhor.

- Obrigado. E aí? Conta devagar porque temos muito tempo! Como foi a viagem? Como é o povo de lá? Você sentiu medo? Eu...

- Ei, devagar, devagar! Cheguei agora, deixa eu respirar um pouco, sentir o ar daqui, olhar as pessoas daqui, viver aqui! Não parece, mas quando a gente sai assim, demora-se a chegar, parece que parte do seu corpo ainda está por vir, é estranho, ainda mais...

- O chope, senhor.

- Obrigado.

- Ainda mais?

- Ainda mais eu que me apaixono por essas causas! Cara, você não sabe o que é determinação, luta, guerra! É fantástico!

- Mas neste caso, triste.

- É. Isso é.

- ...

- ...

- Obrigado.

- Mais alguma coisa, senhores?

- Por enquanto não... você quer mais alguma coisa?

- Não, tá ótimo.

- Com licença.

- E aí?

- O que aquele povo tá fazendo ali?

- ...

- Tem algum acontecimento importante na cidade sendo comemorado? É data festiva?

- Não que eu saiba.

- Não, não me parece que queiram festejar alguma coisa. Isso eu já vi na Irlanda. Cara, você tem que ver como o povo de lá é determinado, consciente, evoluído, coeso...

Eu me lembrei da conversa daqueles dois que estavam aqui, assim que cheguei. Seria o povo do qual falavam? Tomava agora toda a praça, circundando-a, Zumbi no meio, o shopping já não cuspia gente, as crianças banhadas pelo chafariz foram engolidas pela multidão. Não sei quantas pessoas, mas eram muitas, mais do que a praça conseguia suportar. As pessoas se empilhavam, subiam no chafariz, subiam à cabeça de Zumbi. Alguém se armara de um megafone e subira ao chafariz, dirigindo-se à plateia com veemência, com entusiasmo! Do restaurante nada se ouvia, o ambiente era refrigerado, mas a confusão, como num filme mudo, se desenrolava. O sol tostava a todos. A cada reverberação do braço do homem no lugar de Zumbi, a massa lançava ao ar o braço, em um só gesto.

- Ei, come, se não vai esfriar!

- O quê?

- A comida!

- Ah.

- Daqui a pouco chega a polícia e pronto, sai todo mundo correndo. É diferente, aqui é muito diferente, o povo ainda não é cidadão, não sabe dos seus direitos, dos deveres do Estado, do...

- E você sabe?

- A gente aprende, amigo! Mas não só com palavras, discursos, retóricas, não, mas não mesmo! É preciso algo mais! É preciso sentir na pele, na carne, no coração, na alma! É como mexer com bicho acuado, quanto mais acuado, mais feroz, mais coragem, mais determinação, porque o medo e a dor e a morte geram o desejo de sobreviver, porque do medo tira-se a coragem; da dor, a esperança; da morte, a vida! Mas isso tudo é preciso que se passe em nossos corpos e almas, infelizmente só nos olhos não se sente o efeito. É lindo ler sobre as Revoluções e suas consequências... eu via as imagens sobre a Irlanda, lia sobre ela, mas nada, nada é tão contundente, tão sensibilizador, do que você viver a própria situação, in loco, ...

- Você é um apaixonado!

- Pode ser...

- A polícia.

- Observa bem, vão todos correr.

Não correram. Não arredaram pé. Não avançaram. A polícia, acostumada com o recuo, recuou. Não havia tempo entre os dois blocos de gente, só espaço. Daqui nada se ouvia. Aparentemente havia uma guerra de megafones. Do lado da polícia, uma barreira de escudos e cacetetes e pastores alemães. Do outro, sonhos, esperanças e medo. O povo estava tenso. A polícia estava tensa. Os pastores estavam tensos. Não vi, quando vi, um homem já se atracara com um cão no espaço deixado pelas duas multidões. Um tiro. Dois. Três. Já não há mais espaço, as multidões já são apenas uma. Aos poucos vão se mesclando mais e mais... roupas, homens, cachorros, mulheres; forças, esperanças, ordens, dor, medo e medo...

- Gente, o que é isso?... Não acredito...

Começaram a cair. Os tiros, agora rajadas, derrubavam os manifestantes, separando-os da polícia. Novamente abriu-se espaço, mas os dois lados continuavam ligados, agora pelo traçante das balas. A multidão caía, aos poucos, de acordo com o número de balas eficazes. Mas o interessante é que, agora, a multidão avançava, meu Deus, a multidão avançava! Como? Agora muitos caíam, mas não se acabavam, aparentemente se multiplicavam, caíam, e se multiplicavam, caíam, e se multiplicavam...

- Não é a sua mãe?

- ...

- Não é a sua mãe lá?

- O quê?

- A sua mãe!

Eu estava no meio da multidão, pessoas caíam, as balas sibilavam, eu não via minha mãe, gritava:

- Mãe! Mãe!

- Meu filho, meu filho!

- Mãe! Mãe!

- Meu filho, meu filho, acorda, meu filho!

- Mãe?

- Meu filho, são sete horas, você vai se atrasar!

- ...