A RODA DA FELICIDADE
     (conto filosófico)




Oh, ter vontade de se matar...
Bem sei é cousa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz! . 

M.Bandeira

 

 

 

Por que de mim há de afastar-se tudo
quanto faz esta vida mais alegre?
Em minha cauda o pelo está grisalho
e também já não vejo as coisas nítidas... 

H. Haller/Hesse




 

Mercê de mãos preguiçosas a tentar reavivá-la em intervalos cada vez maiores, a fogueira ia já em brasa; na verdade, quase só cinzas. 

Sob a escuridão das árvores, nos braços da grama impura, ou no relento sonâmbulo da praia, bêbados sós ou acasalados dormiam sobre o vômito, ou tendo os bofes a exigir-lhes. Alguns vultos desinquietos e enroscados talvez trovejassem ainda de sexo; outros, de tédio. 

À roda do falho calor do fogo, entre viola jogada ao lado, um cantador e um caosista apagados, um dito poeta entorpecido, alguns tontos mais horizontais que ele, às vezes quase pisados por um ou outro traste teimosamente verticalizado à força de pó e pinga; quase todos dominados pelo sono ou pelo fumo, pela pinga e mais sei lá, mais teimosos íamos nós ainda sentados a insistir em uma prosa quase aurora. 

A tal altura já éramos somente Rosinha e eu, mais o Nêgo, seu calado colega de moradia, e, além de um ou outro par de olhares tão acesos quanto o fogo, um retórico almofadinha-cheira-pó, arrastado pelo requebrado da moça. 

Mas, como sugeria os contornos da roda, a tal prosa fora antes madrugueira; tivera mesmo alguns momentos de sarau, bem regados a palavra e cantoria; ao menos enquanto a voz do cantador esteve acima dos cochilos que seus olhos estafados ensaiavam. Nos pequenos intervalos de seu som contagiante, a palavra corria solta e animada; passava pela boca inspirada do poeta, resvalava em um ou outro poema mais popular pela voz de algum recitador de ocasião, e, depois de se perder pelos fatídicos esforços do almofadinha em impressionar, reanimava-se nos caosos que o caosista habilmente oferecia-nos, para enfim tornar-se música de novo. 

Assim ia até que os olhos cochilosos do violeiro finalmente impediram que seus dedos embalassem-lhe a voz. O tom calmo do caosista acabou fazendo nina para o olhar do cantador. 

Abraçado à viola, ele aos poucos foi deixando o instrumento para um lado, enquanto o corpo ia curvando-se para o outro. E, com o pote dos bons caosos tão seco quanto o de pinga, logo depois o caosista também deixou-se embalar. 

Fora vítima do embalo verborrágico do almofadinha, sempre ávido da palavra.
O tal, quando viu que os dois dormiam, afetando experiência e falsa modéstia ainda lembrou que, se em vez de só tomar cachaça e dar uns pegas, eles tivessem experimentado umas carreiras – certamente ainda haveríamos de ouvir-lhes muitas canções e belos caosos, para espantar minhas anedotas sem estilo. 

– Nada disso! – interveio Rosinha. 

– Acho que sou mais versada no assunto do que o senhor. Nunca fui de dispensar cachaça numa boa prosa. E, além de dar uns pegas, também curto umas carreiras, como o Nêgo, meu amigo de poucas palavras mas como eu também versado, poderá lhe confirmar. Mas tenho cá meus princípios. Minha intuição diz que o sujeito aí da viola tava mais pra uma viagem bem cifrada, do que para uma noite inteira acesa a som e pó. Seu parceiro de sono, o contador de histórias, esse nem precisou provar sua coca, pra esgotar o repertório e deixar que o senhor o embalasse com seus ditos. Mas ele...! Depois de muito animar-nos com seu canto, deu seqüência na viagem interior que vinha fazendo desde a primeira cantiga que ouvimos, bastava reparar-lhe nos olhos. Agora está aí, entrou de vez dentro em si. Talvez esteja sonhando com os bons anjos, e até ria-se dos demônios, de nós. Talvez esteja é feliz por essa roda em que brindou-nos com o som de sua viagem; e, depois que acordar, inspirado ainda rabisque alguns versos musicais para brindarmos à ressaca desta noite. Pois a mim me parece que ele segue alguns princípios parecidos com os meus. Comigo, coca é pra extroverter, maconha é pra viajar. O pó branco, vez em quando, faz manter o corpo e a mente ativa, bem pra lá do dia-a-dia. A erva não. Essa me faz visitar os desvios da alma e dormir comigo mesma, ainda que numa roda como esta.
...

 Rosinha e seus discursos. Moça tímida e sensível, quando fuma emudece de uma vez. Mas, se cheira ou toma uns goles, solta o verbo: haja como segurar! O almofadinha que o diga. Primeiro deixou-se arrastar por seus sorrisos dançantes, desde o Bloco do Cachaça. Depois, no auge de nossa roda, quando o fogo ainda atraía toda a praia mais avessa a carnaval, foi obrigado a calar-se sem ter como competir com a conversa e cantoria que a pinga causou na moça. Ainda bem que, em vez do pó, ela preferiu dar uns peguinhas num fuminho ocasional, pensou.

Mas o fumo fê-la logo, silenciosa, aconchegar-se no meu colo protetor; de onde às vezes seu sorriso, acompanhado de um olhar anuviado, ainda mantinha o homem meio que cativo. 

Mais uns peguinhas, sob o patrocínio do poeta à chegada do cantador e do caosista, e assim permaneceria a pequena Rosa no decorrer do sarau; recostada entre minhas pernas, os cotovelos no chão, o costado e os cabelos a aquecerem meu colo, e os olhos mansos divagando sorrateiros pela roda: do olhar do cantador à abstração do poeta, às gesticulações do caosista, e, suavemente provocantes, sobre o vulto cada vez mais cativo do almofadinha falador. 

E agora, movida por grandes goles no gargalo de uma cerveja mofa, mas que a fez distanciar-se dos meus braços, eis que, reacesa, Rosinha com os olhos bem menos mansos, proferia esse discurso que acabaria por reanimar as sensações do almofadinha. 

Pois ei-lo já a bom passo de uma réplica caprichada.
...

Mas àquela altura o Nêgo, amigo de Rosinha, já enrolara e acendera o que ela costuma chamar de um basy saideiro. E eu, sob a sensibilidade de uns pegas, e definitivamente farto da retórica do homem, já nem sequer o ouvia. 

Concentrei-me nas palavras finais da moça, que, aos poucos, de novo aconchegava-se entre minhas pernas. 

Em minha mente ficara menos sua frase feita coca é pra extroverter, maconha é pra viajar, do que a ilação de que o sujeito do assunto dormia “feliz por essa roda em que brindou-nos com o som de sua viagem”, e etc., etc.
Feliz! 

Lembrei-me que, ao desertarmos do Bloco do Cachaça e acomodarmo-nos em volta da fogueira, armada e assistida pelo ensimesmado Nêgo, o semblante de Rosinha trazia um ar extasiado de alegria; um semblante talvez mais franco e espontâneo que o dos demais foliões, soando quase a felicidade. 

E, embora no trajeto seus olhos tivessem demonstrado algum prazer em acompanhar os olhares excitados do almofadinha a seus requebros, embora o tal tivesse um porte bem aparado e seguisse-lhe os passos com certo charme e desenvoltura, pelo que eu a conhecia, isso era-lhe motivo para êxtases de riso muito mais zombeteiro que propriamente de empatia com o parceiro; ou, pelo menos, não seria razão suficiente para aquela alegria aparentemente tão espontânea. 

Na verdade, apesar da aparente espontaneidade, seu êxtase soava-me mais como afetação. 

Sobretudo quando lembro que essa Rosinha discursiva ultimamente vem tentando convencer-se de uma inextricável felicidade interior. 

Ao assentarmos à roda, a autoridade retórica do almofadinha parecia que ia silenciar-lhe o êxtase então expresso em muita fala e cantoria. Fora logo obrigada a calar-se, em favor das atenções que se voltavam para a pomposa saudação do homem – aos atributos do fogo numa noite de carnaval, em um povoado litorâneo como este. Isto é o Brasil! Nisto também reside a celebridade do carnaval brasileiro. Em rodas como esta é que se sente como o milenar fenômeno do fogo é capaz de aproximar pessoas, culturas, sentimentos... 

E, ao dizer pausadamente aquela palavra, sen-ti-men-tos, seus olhos procuraram os de Rosinha. 

Mas esta, impaciente com a dimensão daquela fala, que, mais que impressionar a todos, tencionava cativá-la, e talvez ainda fosse longe, aproveitou-se da deixa.
Sorridente e zombeteira, resgatou as atenções, reentoando o tom da marcha, que ficara-lhe do Bloco do Cachaça: 


                cachaça faz coisa!

                faz gente fina engrossar
                           faz grosseria virar festa
                            
dá vontade de cantar

                 ole lê, ô ô ô!
                 ola lá, ah ah ah!


 
– Este fogo é mesmo quente! – arrematou, entre goladas de cerveja; arrancando risos de alguns circundantes. 

E, aos requebros da marchinha (ole lê, ô ô ô!/ola lá, ah ah ah!), dançando solta e feliz!, pôs-se então a despejar-nos um discurso tão envolvente quanto cômico, e cheio de felicidade – esta minha sóbria felicidade interior, aliada à emoção de poder gozar o calor desta roda... 

Esse sim, um discurso interminável; ainda que bem regido por seu gingado gracioso, sempre acompanhado pelo coro ole lê, ô ô ô!/ola lá, ah ah ah!, que, alegre, ia atraindo novos adeptos ao círculo.

Era a versão bêbada da retórica feliz, que ultimamente ela impõe-se toda vez que cheira um pó. 

Se bem me lembro, outro dia, em seu apê, quando saíamos para uma festa depois de umas carreiras, tivemos que ouvi-la, eu, o Nêgo e alguns convivas, num discurso semelhante.
...

Enfim, enquanto o replicante almofadinha pigarreava a fumaça engolida em meio à tosse de uns bons pegas, para seguir com sua retórica pueril, eu, tendo a moça novamente emudecida entre minhas pernas e a mão solta sobre o fogo de entre as dela, acabei por inspirar minha memória enfumaçada a não esquecer-se das razões de tais lembranças. O sono fundo do bodeado cantador não era mais que o sono fundo de um bodeado cantador; não tinha nada a ver com as palavras de Rosinha de que o tal aprofundara-se num mergulho, talvez tão feliz quanto ela “por essa roda em que brindou-nos com o som de sua viagem”, e etc., etc. 

Não! 

Eu já não podia admitir que os devaneios daquela infeliz felizcida a levassem a tanto. 

– O que há contigo, ó senhora Felicidade? O homem está apenas dormindo! Bodeado, depois de uma roda de loucos isolados, numa noite extasiante de carnaval a beira-mar. Será que agora você, toda vez que se empolga há de brindar-nos com esse discurso infeliz? 

– Mas eu... sou... feliz!...
Tenta replicar-me num risinho ofegante, de olhar sumido e voz quase apagada; mas que ecoa na insistência do almofadinha, sofregamente recuperado do pigarro: 

– Ora! Deixa a moça em paz, com sua felicidade. São os efeitos de uma boa roda de carnaval ao fogo. Embora esse fireworker (e apontou para o Nêgo, que, depois de circular o basy, com mãos rítmicas tentava, sempre em silêncio, uns últimos acalantos nos destroços da fogueira), esse bravo animador do fogo, que aqueceu o nosso corpo a noite toda e ainda esquenta nossa mente malucada; embora ele talvez já não consiga reavivar mais nenhum raio da fogueira desta noite, pelo menos nossos sonhos aproximaram-se (e ameaçou procurar de novo a cumplicidade de Rosinha, que, a essa altura enfim cedia ao meu discreto dedilhar de sua chama); pelo menos alguém pôde demonstrar-se manifestamente feliz, e até dividir um pouco de suas luzes com o que restou do responsável pela música que animou-nos noite adentro (e, ainda pigarreando, e bocejando, apontou para o cantador, a roncar sobre os ouvidos da viola emudecida). Quem sabe ele não acorde realmente feliz... 

– Mas que feliz que nada, meu caro! Eu conheço bem o perfume dessa rosa. – interrompo, com os dedos vazando as pétalas (o fura-bolo no mel, brincando; o pai-de-todos entrando e saindo, devagar) – Que razões pode haver nesta vida, para que alguém se manifeste possuído de um fenômeno filosoficamente proibitivo, como é a felicidade? Que razões pode haver para que esse alguém chegue ao cúmulo de enxergar isso até num amável e desconhecido cantador, sintomaticamente bodeado? Que razões, a não ser a mais pura ingenuidade ou afetação? Só faltava ela abstrair o mesmo do sono do caosista, do poeta, ou de qualquer dos bodeados que ainda restam a nossa volta. Feliz! Na verdade essa Rosa é espinhenta, e até muito tímida. Mas, quando cheira umas carreiras ou derruba um destilado, dá de exalar essências em formato de discurso, como acaba de fazer mais uma vez nessa sua roda de virtual felicidade. Bem faz seu vivido companheiro de moradia, quase sempre tão monossilábico e silencioso, quanto ela quando fuma um baseado – e indiquei-lhe o Nêgo, cujo vulto, desistindo finalmente da fogueira, aconchegara-se com a cabeça sobre os braços, próximo ao calor fictício das cinzas (o Nêgo, que por certo havia de estar enciumado, talvez vendo em pensamento o quão meus dedos leves excitavam sua amiga – amada! Afinal ele bem sabe que eu também sei cativá-la eventualmente, com meus dotes de amante. Por força de raça, sabe ser seu preferido quando trata-se só de cama; dispõe de dotes bem mais “palpáveis” que os meus. Mas sabe também que, para ela, representa tão-somente um bom amigo, uma companhia nas horas de solidão. O amante mesmo, sem aspas, sou eu; o colo que ela procura socialmente, toda vez que está fumada, é o meu. Tanto que, quando estou em sua casa e aparece um baseado, sua frase feita costuma ser outra – coca é pra sair, maconha é pra ficar em casa. Isto porque ela sabe que mais tarde, em seu quarto, haverá de me entregar o corpinho bem nascido, com gozo sentimental. Pois sou eu quem a abraça em boa sala, pra depois levar pro quarto. E lá fora, nos cafés de boa fama, quem é visto como seu acompanhante é sempre eu; o Nêgo é só um amigo, um companheiro de moradia. Ouso até pensar que, se eu tivesse o compromisso que seu coração reclama, acho mesmo que a teria como uma fêmea fiel. Mas, na falta de rigor de minha parte, os reclamos de seu corpo de mulher se entregam ao bem dotado que a abraça em minha ausência. Mesmo porque não sou lá muito chegado a rigores. No campo dessas coisas de existir como pessoa, prefiro estimular minha solidão inconseqüente. Apenas sou um solitário diferente do tal Nêgo. Se empresto meu estrume para o jardim dessa Rosa, não adiciono ao tesão nenhum sentimentalismo; nem o amor que ele dispensa-lhe, nem o romance que ela espreita. E ao penetramos a fundo em partes do mesmo corpo, a recíproca da alma nem por isso é semelhante. Ele pode até ir mais fundo do que eu, como de fato vai; mas apenas por qualidade de caralho, como já ficou implícito, e por ter o coração cativo. Penetra mais fundo o corpo, mas o sentimento íntimo não alcança toda a alma da Rosa que dividimos. O gozo sentimental, fantasiado de sonho, destina-se a minha pessoa). 

– Bem faz esse fireworker, como o senhor o chama. – prossegui – Afinal ele é de fato tão versado quanto a amiga, nessas coisas de loucura; e, como todo cravo, também tem os seus espinhos. Mas aprendeu a dividir um canteiro com essa Rosa, sem desperdiçar palavras. Esteja lúcido ou louco, sabe sempre comportar-se como quem conhece a vida; como alguém com experiência suficiente para não crer nas ilusões oferecidas pelo conceito de felicidade. E, se não se deixa atingir pelas mazelas de tal conceito, muito menos há de crer na felicidade interior, apregoada por uma louca discursiva como esta: (livrando-a dos meus dedos, aconcheguo meu. Tanto que, quando estou em sua casa e aparece um baseado, sua frase feita costuma ser outra – coca é pra sair, maconha é pra ficar em casa. Isto porque ela sabe que mais tarde, em seu quarto, haverá de me entregar o corpinho bem nascido, com gozo sentimental. Pois sou eu quem a abraça em boa sala, pra depois levar pro quarto. E lá fora, nos cafés de boa fama, quem é visto como seu acompanhante é sempre eu; o Nêgo é só um amigo, um companheiro de moradia. Ouso até pensar que, se eu tivesse o compromisso que seu coração reclama, acho mesmo que a teria como uma fêmea fiel. Mas, na falta de rigor de minha parte, os reclamos de seu corpo de mulher se entregam ao bem dotado que a abraça em minha ausência. Mesmo porque não sou lá muito chegado a rigores. No campo dessas coisas de existir como pessoa, prefiro estimular minha solidão inconseqüente. Apenas sou um solitário diferente do tal Nêgo. Se empresto meu estrume para o jardim dessa Rosa, não adiciono ao tesão nenhum sentimentalismo; nem o amor que ele dispensa-lhe, nem o romance que ela espreita. E ao penetramos a fundo em partes do mesmo corpo, a recíproca da alma nem por isso é semelhante. Ele pode até ir mais fundo do que eu, como de fato vai; mas apenas por qualidade de caralho, como já ficou implícito, e por ter o coração cativo. Penetra mais fundo o corpo, mas o sentimento íntimo não alcança toda a alma da Rosa que dividimos. O gozo sentimental, fantasiado de sonho, destina-se a minha pessoa. 

– Bem faz esse fireworker, como o senhor o chama. – prossegui – Afinal ele é de fato tão versado quanto a amiga, nessas coisas de loucura; e, como todo cravo, também tem os seus espinhos. Mas aprendeu a dividir um canteiro com essa Rosa, sem desperdiçar palavras. Esteja lúcido ou louco, sabe sempre comportar-se como quem conhece a vida; como alguém com experiência suficiente para não crer nas ilusões oferecidas pelo conceito de felicidade. E, se não se deixa atingir pelas mazelas de tal conceito, muito menos há de crer na felicidade interior, apregoada por uma louca discursiva como esta: (livrando-a dos meus dedos, aconcheguei-a no colo, como se fosse um bebê, meu bebê!). 

Ao longo do meu falante dedilhar entrecortado de pensamentos, Rosinha havia esparramado-se de vez sobre meu colo. 

Já o interlocutor fora curvando-se aos poucos, até deitar-se, pouco atento, bem próximo do Nêgo.
...

A certa altura, pensei em me esticar e cutucá-lo com meu dedo úmido de boceta, para ver se ainda estava acordado. Mas nessa hora percebi sua mão crescendo, para cima do pé-de-mesa que avolumava a bermuda do Nêgo; o Nêgo que, eu sabia, não estava dormindo.
...
Com um tapa, tirou e jogou longe a mão do homem, feito espantasse algum inseto. 

– Pois diga lá, homem, também achas que nesta vida é proibido ser feliz? – pergunta-lhe, meio sem graça, o almofadinha. 

– Calma lá – interrompo – eu não disse que nesta vida é proibido ser feliz. Disse apenas que é impossível. 

– Tá bom! Tá bom, mr. Fireworker! – retorna o almofadinha, tentando demonstrar-se refeito da atitude intempestiva – acreditas que, se não for proibido, é pelo menos possível ser feliz nesta vida? 

O Nêgo estivera atento a toda a prosa, e seu gesto demonstrava não ter gostado nem um pouco da atitude do interlocutor. 

Pois sua resposta corroborou o que digo: 

– Quem, eu? Felicidade...?! Pra mim...?...! 

– Pois eu digo que, pra mim, pouco importa se é proibido ou se é possível ser feliz nesta vida – declarou, com voz marcada e objetiva.
E, levantando-se bruscamente; e tropeçando, meio que de propósito, nas pernas do homem: 

– É simplesmente inútil! 

E saiu pisando firme. 

Andando em linha reta; certamente procurava divisar sua barraca.
... 

Depois de certo silêncio, uma respiração mais ritmada por parte do almofadinha, como se dormisse, deu-me a deixa: com Rosinha nos braços, saí por onde fora o Nêgo. Dei não sei quantos passos, abri com dificuldade o zíper, e depositei-a em minha barraca. Pela luz de lanterna na barraca vizinha, percebi que o Nêgo se recolhia. Ainda pensei em voltar, mas os primeiros raios da aurora fizeram-me também deitar, e, ao lado da feliz, esquecer aquela prosa. 

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À Rosa Kreisler