A FUGA

Houve tempos em que cursos de formação continuada para professores eram realizados com certa periodicidade, dentro ou fora do estado, sempre destinados a disciplinas específicas.

Um dia, Carlos foi convidado pela primeira vez. Por ser em outro estado, o número de participantes, oriundos de várias partes do país, seria grande, o que não chegava a ser um inconveniente. Ele teria, no entanto, que ficar longe da esposa por quinze dias e isso sim, era um obstáculo. Pensou... pensou... era uma oportunidade de interação com colegas da área, portanto, de aprendizagem, crescimento... conversaram e a decisão foi tomada. Iria.

Carlos era uma pessoa tímida, todavia excelente professor de língua portuguesa, profissional exemplar, íntegro, apaixonado pela profissão e acima de tudo, apaixonado por Maria Rita, sua linda e jovem esposa, com quem se casara havia pouco mais de um ano. Tudo o que ele fazia, era pensando na profissão e na esposa.

O dia do início do curso chegou e Carlos partiu, em companhia de alguns colegas. O local de destino era um grande salão de um bonito hotel, num estado do sul.

A primeira manhã do encontro transcorreu descontraída, plena de olhares curiosos. Naquele período, nada mais foi feito, além das apresentações, de um ligeiro debate sobre os temas a serem explorados e da divisão da grande turma em pequenos grupos.

Carlos procurou uma mesa, junto da qual acomodou-se e ficou na expectativa. Sem demora, os demais colegas que formariam o quarteto foram chegando. Primeiro veio César, que se apresentou e perguntou se poderia sentar. Depois apareceu Pedro e na sequência Luís Paulo. O bate-papo entre os quatro começou animado. Falavam sobre suas expectativas a respeito do curso, quando perceberam que, de uma mesa pouco a frente, uma jovem muito bonita os olhava com interesse.

- Conheço-a, disse Pedro, nos apresentamos há pouco. Parece que deseja falar comigo. Vou ver o que quer, com licença.

Em dois minutos, Pedro estava de volta em companhia da jovem e apresentou-a aos colegas:

- Esta é Raquel, ela não está muito à vontade naquela turma e pediu para trocar comigo. Vocês a aceitam em meu lugar?

- Da minha parte será um prazer, respondeu César.

Como os outros dois também não fizeram objeção, Raquel sentou-se. Tratava-se de uma jovem de fato linda, loira e sensual. Já nos primeiros minutos, ela esticou para cima de Carlos, de forma perturbadora, seus belos olhos azuis. Ele corou ligeiramente, perdeu a espontaneidade, fez menção de levantar-se, mas repensou e ficou. A conversa fluiu, falaram sobre vários assuntos, antes que os professores tomassem conta. E Raquel não parava de olhar para Carlos, daquele jeito que o deixava nervoso.

Na pausa para o coffee break, a linda colega aproveitou para monopolizar a atenção de Carlos, embora contra a vontade dele; mas ela era persistente.

Naquele resto de manhã, Carlos não conseguiu mais se concentrar, estava distante; pensava na situação delicada na qual o metera Raquel e pensava em Maria Rita. Precisava conversar a respeito com alguém, razão por que decidiu convidar César e Luís Paulo para almoçarem longe da insinuante loira, num restaurante uma quadra distante do hotel e para lá se dirigiram

Assim que deixaram o local, Carlos não perdeu tempo para desabafar:

- Amigos, estou atônito, sem saber o que fazer, por isso convidei vocês para almoçar noutro lugar, preciso falar. Já perceberam que Raquel está dando em cima de mim, né?

- É verdade, já percebemos, sim. Ela parece fazer questão de deixar evidente qual é seu objetivo, falou César.

- Estás com sorte, meu caro, é uma mulher e tanto, que não pode ser ignorada. Eu não a perderia; ela que me dê bola, pra ver, acrescentou Luís Paulo.

- Eu não quero saber dela, não é para isso que estou aqui. Amo minha esposa, jamais a trocarei por outra, seja lá quem for. Estou nervoso, tanto que até já pensei em abandonar o curso e é isso que vou acabar fazendo, se ela continuar me assediando. Já lhe disse que sou apaixonado por minha mulher, mas a loira parece que não está preocupada com isso.

- Nem penses em deixar o curso, meu amigo, aconselhou César. Dá um chega pra lá definitivo na gata e continua tranquilo. Afinal, ninguém pode te obrigar a fazer o que não desejas.

- Mas ela não para de me olhar, que coisa louca! Parece que quer me engolir com os olhos e isso me incomoda. Espero que à tarde ela venha mais sossegada e me deixe em paz, do contrário vou perder a esportiva.

O assunto Raquel foi tirado de pauta durante o almoço, mas no retorno para o hotel ainda falaram sobre a exuberante e atrevida colega.

Durante período vespertino, enquanto os temas propostos e os objetivos do curso eram debatidos, os eloquentes e sedutores olhares de Raquel eram só sensualidade para cima de Carlos, que desapareceu, mal terminara o horário.

Voltou tarde da noite e refugiou-se em seu quarto, no décimo andar. César e Luís Paulo estavam no oitavo. Raquel, porém, era vizinha de Carlos, no quarto ao lado. Provavelmente dera um jeito, para que assim fosse, haja vista que as mulheres haviam sido alojadas todas no sexto andar.

Madrugada já, leves e insistentes batidas na porta despertaram Carlos. Eram duas horas. Ainda meio dormindo, sem atinar no que acontecia, atendeu. Era Raquel, apenas de baby-doll, pura imagem da lascívia e entrou. Sem dar ao rapaz tempo para pensar, agarrou-o. Na tentativa de desvencilhar-se do abraço fatal, Carlos foi ficando excitado e o que ele mais temia aconteceu. Quando se deu conta, quando pode, afinal, raciocinar com discernimento, arrependeu-se, sentiu nojo de si mesmo, mas já não poderia retroceder. Traíra aquela para quem jurara fidelidade eterna e nem teve tempo de mais nada, a devoradora deu a cartada que o remeteria às penas do inferno:

- Bem-vindo, meu anjo, disse ela, cínica.

- Bem-vindo? Do que estás falando?

- És o mais novo membro do clube.

- Mas... que membro? Que clube?

- Do HIV, para o qual acabaste de entrar. Sabes o que é isso?

Ele sabia. Naquele tempo, estar com aids equivalia a uma sentença de morte. A pessoa portadora do vírus era altamente discriminada, afastada do convívio, ninguém mais tocava nela, virava escória humana e assim vivia até morrer.

- Meu Deus! exclamou Carlos, quando pôde, afinal, reagir. Isso é uma brincadeira, não é? E de muito mau gosto. Anda, por

amor de Deus, diz que é! Só pode ser e eu não estou gostando nenhum pouco; aliás, não gostei de nada, se queres saber!

- Não, meu caro, não é brincadeira. De hoje em diante, tua missão é fazer o vírus circular, como eu faço, por vingança, enquanto não morrer. Estou apenas me vingando e te escolhi.

- Que espécie de ser humano és tu? Não sou igual a ti! Mas, se tenho que me vingar, vingo-me, sim, agora mesmo, desgraçada, te mato!

Ela saiu correndo para seu quarto. Carlos refreou o impulso de correr atrás e esganá-la, atirou-se na cama e chorou como jamais havia chorado. Quando já não tinha mais lágrimas, os pensamentos começaram a fluir desenfreados e, então, se deu conta do tamanho do problema no qual se afundara. O que faria, agora? Em segundos, que lhe pareceram séculos, passou em revista toda sua vida. As lembranças chegavam como relâmpagos, numa sucessão vertiginosa e se concentravam, principalmente do tempo em que conhecera Maria Rita para frente.

A primeira vez em que a vira, fora no primeiro dia de aula, na faculdade. Ela era a garota mais bonita da sala. Em uma semana estavam apaixonados e os planos começaram, assim como as juras de amor, os passeios, as festinhas, os dias inesquecíveis de praia, o noivado, quando o curso caminhava já para a conclusão. O casamento ocorreu um ano depois da formatura. Ele a amava incondicionalmente. Jamais tivera olhos para outra, desde o dia em que a conhecera. E agora? Jamais poderia contar a ela que quebrara sua jura de amor e, principalmente, em hipótese alguma, poderiam tornar a fazer amor. Não voltaria para casa. Não a veria mais. Não veria o filho nascer, com o qual tanto sonharam e que ela esperava, numa gravidez já a meio caminho. Tudo acabado... E a culpa era toda sua. Melhor mesmo seria desaparecer imediatamente, deixar que aquele pesadelo o consumisse bem distante de sua amada. Ela sofreria, no entanto não ficaria sabendo a respeito da abominável traição. Mas, como faria? Seus pensamentos fervilhavam tumultuados, fora de lógica e não o ajudavam, mas teria que decidir.

O hotel dormia em completo silêncio. Como um autômato abriu a porta do quarto, olhou através do longo corredor e caminhou, atônito, até a janela. Abriu-a, ouviu o murmúrio do mar e pensou que a praia deserta poderia propiciar-lhe alguma alternativa, um lenitivo, quem sabe. Iria até lá. Mas, então, olhou para baixo. Dez andares... a altura era grande, suficientemente grande, não obstante assustadora... e não teve tempo de pensar em mais nada. Pulou.

Eram quatro horas e meia.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 09/06/2023
Reeditado em 07/07/2023
Código do texto: T7809494
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