No volante

Preparei o meu adeus antes do início, como sempre. Mais uma vez dentro do veículo e bem pouco de antes. Os caminhos diferentes; a estrada, a mesma; bem onde tudo começou. Ah... E aquele sorriso aconchegante como a sensação de leite quente antes de dormir... Sentirei falta dele. Aquela noite foi o fim do que nem poderia começar. Nunca beijos, nem toques... Apenas alguma satisfação - de um lado, física; do outro, psicológica. Ele de novo preenchendo a conversa com assuntos de outrem, mas diferentemente das outras vezes, éramos outros. Eu, que há pouco havia sido tomado pelo medo de adoecer; fosse de amor ou literalmente... Ele, menos duro, mas sempre autossuficiente; aparentemente. E ao ouvir de seus lábios que outro alguém lhe havia causado forte interesse, acessei meu ego, que até então me havia quase botado a perder, e soltei algum veneno, tentando demonstrar indiferença com relação àquilo que ouvira. Disse a ele que entendia a situação e ele, tentando ser piedoso, disse que havia desistido de continuar o que havíamos começado em virtude de meus traumas e para evitar que eu me sentisse usado mais uma vez. Foram palavras cruas e truncadas; tanto que lhe perguntei se estava falando de nós e ele me respondeu que sim. Sem querer me sentir por baixo, eu disse o seguinte: "Fique tranquilo. Desde o começo, não criei qualquer expectativa sobre você e penso que a recíproca seja verdadeira, não?" Ele levou alguns segundos para responder que sim. E completei: "Eu só o vejo como um amigo e quanto ao nosso 'lance', saiba que em nenhum momento eu me senti usado por você porque eu apenas me permiti a essa experiência." Certo silêncio reinou naquele carro por algum tempo e logo retomamos nossos diálogos; agora mais neutros. Ao fim da viagem, efetuei o pagamento pela corrida e, de forma insinuante, joguei a ele um leve elogio quanto a seus atributos. Ele sorriu descaradamente e eu desci do carro, indo viver o meu teatro semanal.