O fim do mundo

I

O calor umedecia-lhe o rosto. Maneca soltou o instrumento e puxou um lenço do bolso para enxugar o molhado. Ainda havia pessoas a seu redor, esperando que tocasse mais uma; quando tomava a sua flauta, um semicírculo ia-se formando para ouvi-lo. Às vezes, chegava a tirar um bom dinheiro; entretanto, isso não constituía a principal de suas preocupações. Não tinha dependentes; contava sobretudo com sua música para fazê-lo feliz.

Porto Alegre era invadida pelos tons do lusco-fusco. "Toca Lupicínio", gritou alguém, uma voz de homem maduro. Embora estivesse louco para chegar em casa e tomar um banho demorado, acedeu. Afinal, dispunha de um público bastante fiel. De certa maneira, fazia parte do centro da cidade. Se faltava, por acaso, um dia, os comerciantes davam-se conta de sua ausência.

As pessoas começavam a retirar-se. Maneca guardou a flauta e foi enfrentar a fila do ônibus. Desceu quase em frente a uma casa modesta, mas própria, no Partenon. Um companheiro de bar chamou-o; fez sinal de que o encontraria mais tarde.

Uma hora depois, refeito e perfumado, dirigiu-se ao lugar onde costumava beber uma pinga com os amigos. Da nova igreja, instalada a poucos passos do boteco, vinha uma voz tonitroante, pregando o fim do mundo. Maneca fez um gesto vago para espantar a desgraça; não deixou, porém, de ouvir uma pequena parte da preleção. O Final dos Tempos, a Purificação..., nomes pomposos que lhe perpassaram pela mente quando deitou a cabeça no travesseiro.

II

Um dia, no fim da tarde, movido pelo que classificou como uma simples curiosidade, entrou no templo. As palavras atingiram-no como dardos. Mencionou qualquer coisa a respeito, quando o copo circulava por entre os companheiros. Não fizeram grande caso; talvez nem o tivessem ouvido. Maneca bebeu uns tragos, contou uns causos, riu e chorou, embora menos do que o habitual. Foi o primeiro a sair. Queria conversar com Helena. Chegou na hora exata em que o armazém fechava as portas. "Vem comigo", propôs. "Mas, já é tarde." "Avisa a tua mãe que tu vais ficar comigo, ora." Ela hesitava. "No fim de semana é melhor, nem trouxe roupa." Uns abraços fizeram-na mudar de idéia. "Tudo bem, tu és impossível." A moça entrou para telefonar. Quando reapareceu, agarrou-a pela cintura e subiram juntos os degraus à frente da casa. Mais do que o desejo, o que o levara a buscar Helena era a vontade de falar com alguém. Às vezes, sentia-se um pouco sufocado pelas paredes solitárias, precisava de companhia para reencontrar o equilíbrio. Não sabia como passar-lhe as mensagens que ouvira na igreja, mas alguma coisa pressionava-o a comentá-las. Helena não levou a sério:

- Estás brincando, Maneca.

- Não, estou só tentando te contar o que ouvi.

- Tudo bem, mas vamos deixar isso pra lá, sim? Vamos aproveitar que estamos juntos.

Abraçou-o tão forte que ele não conseguiu levar adiante a conversa. Quando os dois mergulharam na cama, Maneca se esqueceu de qualquer coisa que pudesse preocupá-lo. No dia seguinte, levantaram-se mais cedo do que teriam desejado. Helena ficou no armazém, Maneca, com muito zelo, carregou a flauta para o local de trabalho. Mais um dia bem vivido, recheado pela música que fazia as pessoas pararem e aguçarem o ouvido.

III

Caiu muita chuva no inverno. Maneca continuava a tocar, mas a mesma animação de antes não o dominava. O cinzento dos dias deixava-o um tanto deprimido. No final da tarde, sempre que a igreja estava aberta, ficava por lá, pensando sobre as notícias do fim dos tempos. A idéia impressionava-o, mais do que gostaria de admitir. Às vezes, participava de um grupo de oração; com aquelas pessoas, podia abrir-se a respeito de seus temores. "Não se preocupe, amigo, vai surgir um mundo mais puro, só os bons sobreviverão." O pior é que havia uma data marcada para o grande acontecimento: fim do ano em curso. Até lá, tudo viria a ocorrer. Os homens deviam preparar-se, orar e fazer penitência, ai dos que não estivessem prontos para o momento da purificação. Maneca assustava-se com o pouco tempo de que ainda dispunha; embora lhe assegurassem que nada de mal lhe aconteceria, angustiava-se com a proximidade das transformações. Era muito difícil falar com a maioria das pessoas, pois não acreditavam. A própria Helena parecia-lhe distante, entricheirada em seu pobre mundinho. Quase não a via. Uma noite, quando se preparava para assistir ao noticiário, bateram à porta.

- Entra, menina.

- Estou indo pra casa. Passei só pra te ver.

- Toma um café comigo, senta.

Ela entrou, avisando que não podia demorar. Maneca pôs a chaleira no fogo e ficou esperando para ver o que queria. "Estou com saudade", ela murmurou. "Não me dás um beijo?" Ele permanecia imóvel. Helena achegou-se, os rostos tocaram-se. "Bom, tu estás insistindo", ouviu-o resmungar. Afastou-se vivamente. Maneca deu-se conta de que a perdia: "Fica, eu te quero." Beijou-a como antes. Desculpou-se por andar meio desligado, não levasse a mal. Ela pegou a bolsa:

- Estou indo. Tu sabes onde trabalho.

- Aqui do lado, parece.

Helena engolfou-se na noite. Maneca tomou sozinho o seu café e jurou a si mesmo que a procuraria em breve. Era fundamental passar-lhe a mensagem.

IV

Chegou a primavera. Uma gama de cores pintou a cidade. Maneca sentiu o coração mais leve quando verificou que as flores brotavam em seu pequeno jardim. Arrebatou-o um enorme entusiasmo: queria espalhar a sua música por todo canto. Subiu lépido no ônibus e ocupou o seu lugar no centro comercial. O movimento era intenso naquele dia, como se a primavera a todos tivesse contaminado. Tomou a sua flauta e nela colocou a alma. À medida que transcorriam as horas, dava-se conta de que os acontecimentos estavam muito próximos. Suas canções tornavam-se melancólicas. Podia dizer que ali estava feliz, embalado pela sua música e acarinhado pelas pessoas que iam parando a sua volta, com o único objetivo de ouvir o que tocava. Estendeu os seus acordes enquanto pôde. Só parou quando se sentiu extenuado. Aquela noite, preferiu ir de lotação, para chegar mais rápido. Helena viu-o descer e acenou. Maneca aproximou-se da porta do armazém:

- Vamos sair no fim de semana?

Ela alegrou-se:

- É uma boa idéia. Depois combinamos.

- Vem passar o domingo comigo.

- Estás pensando em algum passeio?

O olhar do rapaz dançou ao redor e, por fim, fixou-se em Helena:

- A gente resolve... Te espero de manhã.

Maneca afastou-se. Ouviu, à distância, a voz que vinha do templo. Não quis deter-se. A idéia do fim dos tempos fez-lhe mal. Galgou com certa dificuldade os degraus que o separavam da casa. Lá de cima, despediu-se com um abano.

Helena não o viu no dia seguinte. Na sexta-feira, a casa de Maneca manteve-se fechada. A moça estranhou e, quando terminou o trabalho, foi dar uma espiada. Encontrou a porta sem chave. Deitado em sua cama, o músico parecia ressonar. Chamou-o, não obteve resposta. Foi então que compreendeu o que tinha acontecido. Seu grito varou a noite.

Béti Mecking
Enviado por Béti Mecking em 18/12/2007
Reeditado em 19/12/2007
Código do texto: T783303
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