Insubstituível

A carta de convocação chegou às mãos do seu mentor, um renomado cientista na época da guerra, o qual já temia receber tal notícia vinda do governo endereçada para o seu mais brilhante pupilo. Mesmo tendo enveredado todos os esforços, falando com um sem-número de autoridades de várias patentes, enfrentando diversas audiências com políticos sentados em confortáveis poltronas de veludo nos seus luxuosos gabinetes – e em sua maioria pouco afetos aos interesses universitários e científicos –, nada foi suficiente para privar o garoto de seu suposto dever perante à nação. A esperança era de que, usando destes artifícios, o conflito poderia enfim ser resolvido antes que chegasse aquela hora fatídica. Agora, porém, nada mais restava a fazer.

Entrou no laboratório e o encontrou imerso em seus afazeres, coletando os dados do aparelho sobre a bancada. Viu as diversas amostras a serem analisadas, colocadas lado a lado em recipientes vedados sobre a mesa de apoio. Ao ouvir seu nome, o rapaz prontamente interrompeu sua atividade, pôs-se de pé diante do seu tutor, e este lhe relatou com pesar o chamamento da pátria. Não demonstrou surpresa, tampouco consternação, pois já previa e prevenira-se espiritualmente para enfrentar o seu destino.

Precisava apresentar-se à junta militar já no próximo dia. O homem então lhe desejou sorte, com indisfarçável melancolia em seu semblante. Conhecia os grandes perigos inerentes a um campo de batalha, já estivera lá em ocasiões anteriores, passara por situações em que somente o milagre o mantivera vivo. Temia – e de fato sabia – que seu aprendiz estaria mesmo à mercê dos desígnios divinos.

Uma vez nas trincheiras, aquele jovem aprendiz não conheceu nenhum outro rapaz com inclinação para a ciência como ele. Porém, encontrou um exímio desenhista, e um cantor, e um outro que era excelente marceneiro, e outro que era esportista de muitas medalhas; até mesmo um florista, de sobrenome Moseley, que conhecia absolutamente tudo sobre flores. E todos aqueles jovens tinham algo em comum: sonhavam em retomar suas vidas e dedicar-se a seus talentos, após o fim daquela guerra insensata.

Mas o jovem Moseley não sobreviveu. Nem o jovem desenhista, nem o jovem cantor, tampouco o jovem marceneiro. E o brilhante aprendiz de cientista também sucumbiu diante da ferocidade das balas cuspidas pelos canos fumegantes das metralhadoras inimigas.

O comunicado da morte chegou ao mentor dias depois, num envelope idêntico ao da carta de convocação. Inconformado, voltou aos gabinetes das autoridades antes visitadas, com o intuito de fazê-las perceber o prejuízo incalculável que a ciência tivera com aquela perda, diante da prodigiosa carreira que se desenhava para seu pupilo, penosamente abreviada por aquela guerra absurda. Devido à sua influência política, houve um movimento entre os parlamentares, e uma nova lei foi promulgada: a partir dela, nenhum outro cientista, seja experiente ou aprendiz, haveria de ser convocado para servir na guerra em papéis de linha de frente. Era uma grande conquista para a ciência. Mas e o florista, o marceneiro, o desenhista, todos aqueles jovens talentosos cujas vidas foram igualmente ceifadas durante aquele conflito absolutamente insano: seriam eles menos importantes para o futuro do país?

Algumas semanas depois, incapaz de superar os tormentos de uma culpa que de fato não lhe cabia, o mentor fechou as portas de seu laboratório. Entregou as chaves e seu posto aos reitores da universidade. Recolheu-se à sua propriedade no interior do condado, e viveu o resto de seus dias entre plantas e animais, deliberadamente distante de toda a estupidez humana.