A família Silva

A família Silva era conhecida por ser muito barulhenta. Não importava a hora do dia, sempre estavam discutindo sobre alguma coisa. No café da manhã, brigavam devido ao pão, leite, manteiga e jornal. No almoço, pela comida, pela bebida, pela louça, pela televisão. Na hora do lanche, devido ao bolo, ao suco, ao biscoito, ao celular. No jantar, devido à sopa, a salada, a carne, o computador. Discutiam sobre política, religião, futebol, novela, música, moda, cinema, escola, trabalho, vizinhos, parentes e amigos. Discutiam à menor coisa.

O pai, João, era um homem nervoso e impaciente. Reclamava de tudo e de todos. Achava que sabia mais do que ninguém e que sua opinião era a única certa. Não tolerava ser contrariado ou questionado.

A mãe, Maria, era uma mulher ansiosa e estressada. Se preocupava com tudo e com todos. Achava que tinha que cuidar de tudo e que sua responsabilidade era a maior. Não aceitava ser criticada ou ignorada.

O filho mais velho, Pedro, era um rapaz rebelde e arrogante. Se achava o dono da verdade e o melhor em tudo. Não respeitava ninguém e fazia o que queria. Nem admitia ser desafiado ou repreendido.

A filha mais nova, Ana, era uma menina sensível e insegura. Se sentia excluída e inferiorizada. Não se expressava bem e sofria calada. Nem conseguia ser ouvida ou compreendida.

Viviam em pé de guerra e não se entendiam de jeito nenhum. Se ofendiam, se xingavam, se batiam, se magoavam e se machucavam. Odiavam-se.

Um dia, resolveram fazer um pacto: hoje não vamos discutir. Vamos ser mais ouvintes que falantes. Vamos tentar nos entender e nos respeitar. Tentaremos nos amar.

Acharam que seria fácil. Acharam que seria bom e que seria possível.

No café da manhã, se sentaram à mesa em silêncio. Serviram-se sem brigar pelo pão, pelo leite, pela manteiga, pelo jornal.

Comeram sem reclamar do sabor,

da temperatura, da quantidade, da qualidade.

Olharam uns para os outros sem criticar a roupa, o cabelo, a cara, o humor.

Sorriram sem ironia.

Resistiram às tentações de provocar uma discussão.

João não falou mal do governo nem elogiou o seu time de futebol.

Maria não cobrou as tarefas domésticas nem reclamou das contas a pagar.

Pedro não mostrou o seu boletim escolar nem pediu dinheiro para sair com os amigos.

Ana não chorou por um garoto nem pediu um presente caro.

Terminaram o café da manhã em paz e foram cada um para o seu lado.

No almoço, se reuniram à mesa novamente em silêncio.

Se serviram sem brigar pela comida, pela bebida, pela louça, pela televisão.

Comeram sem reclamar do tempero, do molho, do ponto, da variedade.

Olharam uns para os outros sem criticar o trabalho, a escola, os amigos, os planos.

Sorriram sem sarcasmo.

Resistiram às tentações de provocar uma discussão.

João não falou mal do chefe nem elogiou a sua secretária.

Maria não cobrou os resultados profissionais nem reclamou das dores no corpo.

Pedro não mostrou as suas tatuagens nem pediu para trocar de carro.

Ana não chorou devido a uma prova nem pediu para viajar nas férias.

Terminaram o almoço em harmonia e foram cada um para o seu lado.

No lanche, se encontraram à mesa mais uma vez em silêncio.

Serviram-se sem brigar pelo bolo, pelo suco, pelo biscoito, pelo celular.

Comeram sem reclamar da forma, da cor, do recheio, da marca.

Olharam uns para os outros sem criticar o gosto, o estilo, a atitude, a personalidade.

Sorriram sem cinismo.

Resistiram às tentações de provocar uma discussão.

João não falou mal dos vizinhos nem elogiou a sua amante.

Maria não cobrou os elogios afetivos nem reclamou das rugas no rosto.

Pedro não mostrou as suas fotos nas redes sociais nem pediu para morar sozinho.

Ana não chorou devido a uma espinha nem pediu para fazer uma cirurgia plástica.

Terminaram o lanche em sintonia e foram cada um para o seu lado.

No jantar, se juntaram à mesa pela última vez em silêncio.

Serviram-se sem brigar pela sopa, pela salada, pela carne, pelo computador.

Comeram sem reclamar do sal, do vinagre, da gordura, da conexão.

Olharam uns para os outros sem criticar a vida, o sonho, o futuro, o destino.

Sorriram sem hipocrisia.

Resistiram às tentações de provocar uma discussão.

João não falou mal da família nem elogiou a sua liberdade.

Maria não cobrou os projetos comuns nem reclamou das frustrações pessoais.

Pedro não mostrou as suas ideias radicais nem pediu para mudar de país.

Ana não chorou por um medo nem pediu para ser feliz.

Terminaram o jantar em comunhão e foram cada um para o seu quarto.

Acharam que tinham conseguido. Acharam que tinham mudado e que tinham se amado.

Mas estavam enganados.

No meio da noite, ouviram um barulho na cozinha. Se levantaram e foram ver o que era. Viram uma mosca pousada no prato de João. Se olharam e explodiram.

- Quem deixou esse prato sujo na mesa? - gritou João.

- Foi você, que comeu demais e não lavou a louça - gritou Maria.

- Foi você, que fez uma comida horrível e não jogou fora - gritou Pedro.

- Foi você, que é uma porca e não limpou a casa - gritou Ana.

E começaram a discutir de novo. Ofenderam, xingaram e gritaram. Magoaram, feriram e odiaram.

A mosca voou, satisfeita. Tinha cumprido a sua missão. Tinha acabado com o pacto e provocado a discussão.

Sabia que a família Silva era assim. Sabia que eles não podiam mudar e que eles não podiam se amar.

Era o diabo disfarçado de mosca.

José Freire Pontes
Enviado por José Freire Pontes em 03/08/2023
Código do texto: T7852588
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