Invisíveis

 

 

Os tempos são outros. Ninguém quer ser coadjuvante, é preciso assumir o papel de protagonista no teatro da existência. Parados, somos como o passageiro sonolento que olha a paisagem pela janela, passando rápida e fosca, sem perceber os detalhes.

 

Acorda! Se coloque na vitrine da vida e seja notado!

 

A vida, ou a parte dela que se quer mostrar, está o tempo todo estampada nas redes sociais em imagens conceituais, bem elaboradas, com legendas que ora militam uma causa, ora instigam a curiosidade, ora divertem e provocam. Os cliques têm o poder de aproximar pessoas ou destruir relações até então duradouras.

 

Se a intenção é empreender um negócio, não é necessário alugar um escritório e ter horários rígidos de chegada e partida. Basta um smartphone, a capacidade de fazer boas fotos e postar nas redes sociais, então as vendas acontecem à distância. Pixels são negociados em Pix e se materializam numa caixa personalizada através dos serviços de entregas.

 

Enfim, com acesso à tecnologia, todos se vendem, todos negociam, todos são jornalistas sem canudo, porém cheios de histórias para contar.

 

Poucos são os que ainda resistem à tentação de mostrar as suas ideologias, paixões ou futilidades nas pequenas telas. Esses pensam terem encontrado a fórmula secreta da felicidade.

 

Click 1

 

Nada como um bom programa de edição de imagens para tornar cada pose perfeita. No caso de Carol, a beleza toda já estava inclusa no pacote da cegonha, mas a busca pela perfeição se tornara uma obsessão.

 

Baixou filtros especiais e se especializou em edição de imagens, retirando pintas, manchas invisíveis, sombras e até redesenhando partes do seu corpo das quais não gostava. As fotos em que aparecia de biquíni ou com roupas de pouco pano eram ainda mais valorizadas e tratadas com cuidado para realçar os detalhes de cada curva. Na academia, o tempo perdido nas selfies era quase o mesmo que o gasto nos vários aparelhos.

 

Determinada em estabelecer uma boa rede de relacionamentos, Ana Carolina conseguira um certo sucesso regional desfilando para marcas locais, estampando banners de lojas e shoppings e, com os ganhos, se presenteara com um smartphone importado, que despertava inveja na medida certa da cobiçada mordida registrada diante do espelho.

 

Controlava os números de likes, conferia diariamente o gráfico que indicava a oscilação do número de seguidores e assistia a vários vídeos para se aprimorar na arte de angariar ainda mais fãs na rede social mais badalada do momento. Através das postagens, divulgava as lojas por uma pequena remuneração ou permuta.

 

Carol estava trabalhando duro, não para adquirir conhecimentos científicos, políticos ou holísticos. Ela buscava estratégias infalíveis para conseguir ser vista, mesmo estando no interior do estado. Sentia que precisava entrar num reality show da TV aberta mais assistida do país. Se chegasse lá, o céu seria o limite.

 

Para impressionar, gostava de postar frases de efeito, garimpadas nos sites de busca e personalizadas em flyers bem elaborados com a sua marca. Vez ou outra, deixava registrada uma pose segurando algum livro bestseller. Sobre a mesa, um prato de salada e um copo d’água.

 

E seguia Carol na vida. Fazendo terapia, molhando o travesseiro com as desilusões, abraçada à insegurança da sua vida efêmera, rejeitando o amor que a família lhe oferecia e ignorando os olhares do bonitão da moto vermelha.

 

O dia nasceu. Carol se pôs a maquiar.

 

Click 2

 

Mais um dia de corre se projetava pelas sombras que se formavam na parede do quarto. Ronnie levantou às 5h30, bebeu o resto do café e comeu o pão que sobrara do dia anterior. Depois entrou no banheiro para um banho frio, espantou a preguiça e acordou o corpo para encarar a labuta.

 

Antes de sair de casa, ainda deu uma verificada básica nas redes sociais. Repostou alguma oração de bom dia que leu e achou bonita. Com sinceridade, olhava positivamente para a vida. Acreditava na força do trabalho e que as pessoas de bem venciam, mais cedo ou mais tarde. Antes de guardar o celular na sua pochete, deu uma verificada nas fotos da menina mais gata do bairro. Frequentavam a mesma academia, mas não frequentavam a mesma roda. Haviam trocado alguns olhares, cumprimentaram-se algumas vezes, mas faltava coragem de puxar um papo com aquele mulherão.

 

Montado em sua moto financiada, vermelha, de 250 cilindradas, encarou o trânsito em direção ao escritório, onde receberia ordens, endereços, prazos e papeis. Debaixo do capacete, olhava as pessoas no seu caminho, dentro dos carrões, bem-vestidos, aparentemente felizes. Pensava que essa vida não era mesmo justa e a oportunidade para estar nos melhores lugares não era para todos. Não se abatia. Acreditava.

 

A maior queixa de Ronnie era o seu nome. Todas as pessoas bem-sucedidas que conhecia tinham nomes como Carlos, Alfredo, Roberto, Arthur, Marcos, Luiz, Francisco... Entretanto quis o destino que a sua mãe fosse fã de um cantor da época da jovem guarda e resolvesse homenageá-lo no único filho. Riu da sua mãe, que sonhou com o tal do Ronnie Von, que nem tem esse nome na verdade, mas acabou mesmo foi casando com o Zé Eustáquio, operário.

 

Repassou os seus objetivos e sentiu-se confiante no futuro. Trabalhava com disposição durante o dia e à noite encarava a faculdade de engenharia motivado pelos seus sonhos. No próximo ano já poderia conseguir um estágio e a sua vida começaria a mudar.

 

Chegando ao escritório parou a moto, retirou o capacete, ajeitou os cabelos e fez uma selfie, ainda montado, para postar nas suas redes sociais com a legenda bora ganhar mais um dia!

 

Postou a foto pensando em Carol. Será que ela iria curtir? Será que ela ao menos visualizava as suas postagens? Será que um dia uma mulher daquela teria olhos para ele? Ela parecia tão feliz, tão dona de si...

 

Hora de trabalhar porque, como cantou Belchior: viver é melhor que sonhar. Há controvérsias.

 

Click 3

 

Vida de professor não é fácil. Esta frase é um clichê batido no nosso país, mas só quem vive na pele é que sabe! Que o diga a professora Ione Reis.

 

Doutora em linguística, Ione leciona em vários cursos de graduação da universidade federal, sempre focada no ensino da produção textual para aqueles jovens que ainda virão a redigir relatórios, atas, memorandos, artigos e, quem sabe, ainda publicarão teses e livros sem a ajuda de um ghostwriter.

 

Como titular do corpo docente e sendo uma pessoa de hábitos minimalistas, o salário não é a principal queixa de Ione. O que a deixa frustrada são as condições às quais precisou se submeter nos últimos anos. Um total descaso por parte do governo para com a educação do país, que minguou os recursos para as universidades. Prédios sucateados, bibliotecas que não são atualizadas com novas obras, falta de insumos para os laboratórios e constantes atrasos nos pagamentos, tanto de fornecedores como de funcionários, o que sempre acaba em greves. Consequentemente, a evasão de alunos cresce exponencialmente e o desinteresse de parte dos que persistem é facilmente notado.

 

Doutora Ione não se dá por vencida. Ainda traz dentro de si a chama do primeiro amor pelo ensino da língua e mantém vivo o brilho no olhar quando lê um texto digno de louvor produzido por um aluno que se julgava incapaz. Um bom exemplo é o Ronnie, o rapaz bonito da moto vermelha, sempre atrasado, mas muito aplicado. O jovem parece ter uma vida um tanto difícil, um típico brasileiro trabalhador, que sonha em melhorar de vida. A depender do seu interesse em aprender, Ione sente que ele vai conseguir. Os seus textos são diretos, são escritos com sangue, como falou Nietzche, e a sua alma pulsa em cada parágrafo. Alguns colegas que lecionam exatas também o elogiam. Esse rapaz vai longe!

 

Fora do mundo acadêmico, Ione leva uma vida discreta e feliz. Casada, mãe de duas lindas adolescentes, gosta de viajar para lugares calmos, onde consegue desfrutar da natureza, do ar puro e renovar as energias. Não economiza no belo sorriso e sempre saca da memória algum caso engraçado, muitos deles relacionados às peripécias dos alunos ou à excentricidade de um ou outro colega de profissão.

 

Ama registrar os momentos de lazer. Além das fotos de família, também gosta de eternizar paisagens, flores e pássaros. Não sendo adepta de redes sociais, mantém vários porta-retratos nos ambientes da sua casa. Nas paredes, as melhores paisagens emolduradas.

 

Click 4

 

Aline ama fotografar. Tanto que no seu aniversário de 13 anos pediu uma máquina profissional de presente aos pais. Desde então, pesquisou, fez cursos de fotografia, aprendeu como escolher o melhor ângulo para aproveitar a luz natural e se aprimorou em técnicas de como produzir uma iluminação artificial bonita e eficiente.

 

Absorveu o prazer pelos clicks acompanhando a mãe nos passeios em família, registrando flores, borboletas, cascatas, a lua cheia, a chuva caindo sobre o telhado. Aos 17 anos, Aline já conseguia ganhar o seu próprio dinheiro produzindo books românticos, de debutantes, aniversários infantis e de qualquer ocasião especial que alguém quisesse registrar.

 

Ávida usuária das redes sociais, Aline sentiu que podia usar o seu hobby quase profissional para levar uma mensagem, para sacudir as pessoas e tirá-las da zona de conforto das suas vidas fúteis. O seu objetivo era conseguir sensibilizar pessoas como Carol, que só vai à academia para fazer selfies e produzir postagens fitness-sensuais. As muitas carolinas precisam saber que existe um mundo real além da moda, das makes, dos pesos e shakes. Há pessoas precisando da nossa força e da nossa capacidade de atrair outras pessoas que os ajudem nas necessidades mais básicas e lhes dê um pouco de esperança.

 

Junto com a irmã, um ano mais velha, que se interessava por comunicação e estava iniciando os estudos de Ciências Sociais, Aline passou a buscar por aqueles que ninguém viam no vai e vem das ruas. Enquanto a irmã conversava, buscando a história de vida do ser humano invisível na calçada, ela registrava o momento em dois ou três cliques, não mais do que isto. Procuravam saber da vida, dos parentes, da origem, dos sonhos. Com respeito, explicavam as suas pretensões de postagem e depois iam embora, não sem antes deixar um lanche e um agasalho para que a pessoa tivesse um momento sem fome e uma noite menos fria.

 

O perfil Veja o Invisível Perto de Você começou a ganhar notoriedade com suas postagens de retratos e depoimentos de quem vivia à margem. Aline e sua irmã divulgavam o perfil em todas as redes através de repostagens, stories e pequenos vídeos. A notícia foi se espalhando. Aos poucos, as meninas conseguiam voluntários para ajudar aqueles invisíveis a enxergarem uma luz no fim do túnel. Tais voluntários ajudavam em várias frentes, desde a distribuição de uma gostosa sopa no início da noite, uma vez por semana, à tentativa de recuperação dos documentos perdidos. Mais adiante apareceu gente disposta a tentar um emprego para algumas daquelas pessoas e outros conseguiram localizar as suas famílias e, a partir daí, ressignificarem a vida.

 

Click 5

 

Hoje é domingo e a praça está cheia. É o início da semana do Natal e os voluntários do Veja o Invisível Perto de Você foram convocados para promoverem um grande almoço, uma verdadeira ceia natalina, com distribuição de roupas, agasalhos, produtos de higiene e brinquedos para as crianças. Vieram profissionais dispostos a cuidar dos cabelos e a maquiar as mulheres, ressuscitando a autoestima há tanto tempo esquecida, bem como cuidar das madeixas e das barbas dos homens, que ficam tímidos, porém gratos.

 

Aline ficou feliz por ver Carol, a patricinha da academia, chegando toda animada e trazendo as suas maquiagens para ajudar na força-tarefa. Não passou despercebido o olhar de Carol para o gato que chegou na moto vermelha e trazia um cooler cheio de refrigerantes.

 

Aline já conhecia o Ronnie lá da academia e haviam se falado algumas vezes. O rapaz ficou surpreso ao ver que a professora de linguística da faculdade também estava presente e ajudando naquela festa. Ainda mais surpreso quando descobriu que Ione era a mãe de Aline.

 

O dia prometia encontros e muitos registros que seriam postados, não para promoção pessoal, mas para espalhar o vírus do bem e atrair mais voluntários para esta corrente de amor.

 

O sol iluminava os rostos felizes. Os olhares brilhavam. Os corações estavam aquecidos. A vida daquelas pessoas estava prestes a se transformar

 

 

Imagem: Gisely Poetry

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 18/08/2023
Código do texto: T7864892
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