Um sonho Uruguaio

Um sonho Uruguaio

I

  Gostaria de iniciar meu relato com a sentença mais genuína possível.

 No entanto, começo pedindo desculpas à Hemingway; faço-o porque penso não ter palavras assim de todo verdadeiras, e não dispondo da verdade imediata, inicio esse livro com uma máxima singela: a beleza importa.

Mas não se atenham à assimilação instantânea do significado da palavra, e de que me apego tão somente ao belo como corpo, como forma; não é disso que me proponho a tratar aqui, e sim do belo como formoso, sublime e nostálgico.   II

Desembarquei no aeroporto de Carrasco. As portas automáticas externas abriram-se depressa e eu me vi fora do claustro aquecido, quase abrasador com que vivi toda a vida. Era um dia bonito, embora com aspecto lúgubre; o vento forte e gelado batia-me no rosto, embalando-me numa sensação feroz de que, pela primeira vez na vida, seria livre. 

Poucos minutos depois, peguei o ônibus e desci na Avenida 18 de Julio com a Plaza Independência: à minha frente, o portão da Cidade Velha, à esquerda, alto e imponente, o Palácio Salvo; virando um pouco mais à direita, e descendo uma ou duas ruas, lá estaria o Teatro Solis, grande, com o sol entrando por entre os espaços de seus pilares. Fazia muito frio. Acostumara-me ao calor de João Pessoa, aos seus vinte e oito graus diários, ao seu clima repentino; e tudo isso agora dava lugar a uma cidade gelada, indiferente, atmosfera que julguei também refletir no coração das pessoas. 

Hospedei-me lá mesmo, no Palácio Salvo. Eram dias difíceis e àquela época não podia dispor de luxos desnecessários. Apesar do Palácio mostrar-se esplendoroso por fora, internamente carecia de reformas e cuidados básicos; as portas de madeira mofadas e com vincos, o mofo criando vida por entre as paredes, o ranger pesaroso dos passos no assoalho, toda essa primeira impressão esvaziou-se como um sonho, quando adentramos nosso quarto, abrimos a janela com vista para a praça e vimos quão belo pode ser o mundo; e quão ainda há o que pode ser visto. A beleza estava ali, à minha frente, rodopiando em uma aura magnífica de cores, pessoas, trejeitos e, por entre a fresta entreaberta da janela, até mesmo os veículos que passavam às cinco da manhã indo não sei para onde traziam consigo um ar de deslumbramento, de encanto.

  III

Lembro-me bem do sobretudo puído e da camisa branca; da maleta de mão, com seus adornos em dourado, da parada de ônibus lateral ao Teatro Circular, e principalmente da moça em contraluz que parecia esconder-se por entre os passageiros do coletivo. Lembro também, ou melhor, recordo, dos cabelos negros como o bréu que balançavam aos primeiros ventos gelados de Julho. Dizem que “recordar” vem do Latim, e significa tornar a passar pelo coração; é uma memória que, como uma imensa roda gigante, gira e nos traz de volta as lembranças. Quisera eu romper com a vida que levava agora e retornar diretamente para aquele período de tempo onde viver parecia uma fantasia boa. Um sono curto e bom. 

Antes do meu turno, caminhava por toda a 18 de Julho, cortava caminho pela Plaza Cagancha e aguardava a condução para a estação de Três Cruces onde cumpria uma horário de meio expediente. É bem verdade que poderia economizar tempo e apanhar o ônibus bem rente de onde estava hospedado. Mas não queria. Se saísse mais cedo, e andasse cerca de dois quilômetros, poderia por algum acaso do destino encontrá-la ali, também aguardando o transporte. Não sei ao certo se os deuses estavam ao meu favor, porém a realidade é que eu estava com sorte, porque exatamente às nove horas a encontrava no mesmo ponto e sob as mesmas condições: soturna, calada, como a imaginar uma vida diferente.

Meu interesse crescia. A cada dia podia contemplá-la por cerca de alguns minutos, e observava seus jeitos, a coloração da sua tez, o livro repousando ao colo. O da vez era O Livro dos Abraços, do Galeano. Já o li. Queria dizê-lo, perguntar-lhe se gostava, informá-la de que também gosto das mesmas coisas, passar-me como homem de sensibilidade. Não falei. Guardei para mim. Em outra ocasião lia o Pessoa. O desejo de falar-lhe apoderou-se de mim e, mais uma vez, suscitou-me o embargo, meu cadeado interno. Falhara na tentativa de aproximação e comecei a entristecer com o sentimento de que talvez nunca o conseguisse. Passaram-se dias, as leituras mudaram, como também a aparência. A negra cabeleira deu lugar a um loiro, agora cacheado, sumiram-se em conjunto os óculos e o ar fechado – parecia finalmente alegre.

IV

Chamavam-na Beatrice. O nome fazia-lhe feição à aparência, emprestando uma sensação de completude. Via-a com as amigas e tentava interceptar qualquer ruído de conversa, um mero pedaço solto que pudesse fazer com que a conhecesse melhor. Coletava fragmentos esparsos: filha de pai solteiro; tentou Medicina por uns anos e desistiu; gostava de Van Gogh e do Pessoa (isso eu bem sabia) e atuava.Não se julgava boa, definiu-se própria assim, por isso as aulas, por isso estava bem ali ao lado do Circular; queria melhorar. 

Como o tempo era veloz àqueles dias! Me fica na memória a sensação que meses passaram-se ali, por entre as andanças em Montevidéu, entre as tentativas frustradas de aproximação. Queria avizinhar-me de Beatrice, conhecê-la não pelas minhas impressões e sim pelo que de fato era. Sentia falta da realidade. 

      V

Era dia de peça. Resolvi ir. Se eu pudesse vê-la, se eu pudesse ao menos falar-lhe frente a frente, sentir seu toque em minha mãos, uma carícia qualquer que fosse, seria para mim como uma manhã de Sol em Cabo Branco, quando a luz vai triscando devagarinho por sobre o mar, iluminando toda aquela imensidão azul. Sentei-me na primeira fileira e esperei. Iniciou-se a peça e o halo que irrompia do teto para a cabeça do ator principal me deu tonturas, náuseas e com poucos minutos senti perder a consciência. Me confortei na cadeira e cochilei. 

Fazia eu, agora, parte também do elenco. E contracenava com  Beatrice. Nossas falas se misturavam, intercalavam-se de acordo com as falas das personagens, e usávamos esse arranjo como um aparato para nossas próprias dissimulações. Era uma peça de retalhos e cerzíamos esses trechos soltos de poesias, sentenças e aforismos, na tentativa de formar algo, de dizer palavra que pudesse transpor nossas barreiras:

– Se pelo menos fosses mil disseminadas pela cidade, mas és apenas uma… - dizia eu. *

– O homem por quem sobre caiu a praga da tristeza do mundo; o homem que é triste, para todos os séculos existe, e seu pesar nunca mais se apaga.. - falou por sua vez Beatrice. **

– Abandonai qualquer esperança vós que entrais – rebati. ***

– O homem atrás do bigode, é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos, o homem atrás dos óculos e do bigode. ****

Beatrice ajoelhou-se, deu uma volta ao redor de si mesma e desatou em um riso esganiçado, teatral: 

           – E eu, que não tenho nenhuma certeza. Estou mais certa ou menos certa? – disse de súbito e parou de rir.

Espantei-me com a sentença e quis redarguir, mas o meu personagem não havia quaisquer novas falas naquele ato e nada mais poderia eu fazer além de aguardar. Olhei-a de soslaio, tímido e bobo, e esperei que concluísse sua cena. Em contramão, havia agora um novo integrante no palco, um antes coadjuvante ascendendo ao papel de protagonista – Heitor, integrante novato da história. Era sua vez de interagir com Beatrice.

– Deixa tua família, teus bens, desata o nó do coração e vem comigo - disse Heitor.

Nessa hora, com pesar, notei as luzes amainando por sobre mim, tirando-me pouco a pouco da claridade e jogando-me, com crueldade, às sombras. Jazia eu na parte mais escura do palco, fora dos feixes de luz, escanteado de cena e cedendo lugar aos dois. A ascensão de Heitor ao papel principal decorria consequentemente ao meu declínio; para que um subisse, outro precisava descer. 

Rodeou-me uma negra áurea. Fui sumindo aos poucos, como sendo apagado de minha própria existência, deixando de existir como algo tangível, factível, e por alguns segundos tive a sensação de algo muito semelhante à morte. Meu Deus! - exclamei - Não quero deixar de existir. Ainda não vi o Louvre, não joguei moedinhas na Fontana di trevi, não caminhei na noite de Paris. Tantos projetos inacabados; tantos sonhos, meu Deus..

Acordei em desespero com todo o teatro me encarando e súbito deu-me uma vontade intensa de viver, de conhecer tudo, tudo antes que o mundo ou eu acabasse de uma vez. “Beatrice, gritei no meio da platéia, querida Beatrice, quando eu olho para você, meu coração parece pular dentro do peito..” Antes que eu pudesse concluir, olhou-me completamente assustada e indagou: “Não o conheço”. 

Tudo bem, pensei eu, tudo bem. Beatrice não sabe meu nome, mas ao sair daqui, passarei em frente ao Palácio Salvo, percorrerei  a 19 de Julio, com toda aquela multidão bem vestida com suas luvas e casacos de botões. Verei o belíssimo Palácio Salvo e suas torres imensas; verei também as folhas secas espalhadas no  chão das avenidas – belíssimas. A vida não era boa, de fato não era, mas existe João Pessoa; existe a praia de Cabo Branco e aquele mar bonito, azul, e um sol gigante. Existe também Buenos Aires, Palermo Hollywood e eu ainda posso visitar o Ateneo e folhear alguma coisinha do Cortázar e outra do Borges. Ainda existe Roma; e também Aninha da Avenida Floriano Peixoto, por trás do bar do Zé.

O mundo é bem grande, penso, para que fiquemos presos, estáticos, imaginando e flertando com nossa imaginação. A beleza está aí, por toda a parte, rondando, se insinuando, basta saber olhá-la. 

João Pessoa, Setembro de 2023.