A GRANDE REVOLUÇÃO

O vale se estendia por uma vasta extensão, cercado por duas colunas de montanhas que terminavam se juntando em formato de meia lua. Da parte curva, mais alta, despencava uma enorme e espetacular cachoeira, de cujo contato com o solo originara-se um grande poço. A partir daí a água escorria, formando um riacho cristalino e transparente. A medida, porém, que o regato serpenteava ladeira a baixo, ia recebendo outras águas que desciam das encostas, até se transformar, a poucos quilómetros, em um caudaloso rio povoado de vários tipos de peixes.

O cenário remetia à ideia de paraíso... as frutas, as flores, o cantar dos passarinhos, a caça abundante, o rio, a cachoeira, os peixes... tudo encantava Nic. Ele chegara há pouco com seus quatro amigos, cansados e exaustos pela longa caminhada. Estavam à procura de uma local aprazível para onde levar seu povo. As frutas não duravam para sempre e quando escasseavam, eles tinham que sair em busca de um novo lar. A cena estava se repetindo. Sempre fora assim.

Descansaram. Coletaram frutas e fizeram uma fogueira. Há muito haviam deixado de depender do fogo que caia do céu durante os temporais, para que conseguissem um pau de fogo, com o qual afugentavam animais ferozes, se aqueciam e satisfaziam outras necessidades. Agora eles tinham a técnica. O que lhes possibilitou construir ao redor do fogo um rústico abrigo no qual passariam a noite.

Nos dias seguintes se dedicaram à construção de várias cabanas, utilizando-se de pedras, paus e folhas, depois saíram para buscar sua gente. Aliás, Nic e um dos colegas se encarregaram dessa tarefa; os outros dois permaneceram, tanto para tomar conta do espaço quanto para irem aperfeiçoando o que julgassem necessário.

Muitos dias depois, quando a tarde já ia pela metade, exaurido pela longa e difícil caminhada, o povo de Nic chegou à nova morada. Foi, no entanto, uma surpresa avassaladora o que encontraram. Em vez de alegria, foi a tristeza que os recebeu: as cabanas haviam sido completamente destruídas, como se um tornado houvesse passado por ali. E nada dos dois que ficaram para tomar conta; mas havia sangue espalhado por quase todo o acampamento. Momentaneamente o desânimo tomou conta. Nic, todavia, era determinado, inteligente e criativo, razão por que todos o seguiam sem questionar. Ele era um líder nato e sempre encontrava saídas para as situações mais complicadas. Não mostrou aos amigos que estivesse temeroso, pelo contrário, imediatamente aconselhou as mulheres, idosos e crianças que se abrigassem sob as árvores e ficassem tranquilos. Em seguida selecionou cinco homens entre os mais fortes para sair à procura dos desaparecidos, enquanto o restante se dedicaria a reconstrução das cabanas.

No final da tarde, quando a noite começa a engolir o dia, algumas cabanas já apresentavam condições, ainda que precárias, de servir de abrigo por aquela noite. No dia seguinte dariam um jeito no que faltava. Quase ao mesmo tempo, os cinco chegaram com más notícias: encontraram dois corpos no poço da cachoeira. Estavam estraçalhados, como se atacados por animais ferozes e vorazes.

Essa notícia, chocante e assustadora, deixara-os intranquilos. Imediatamente, no entanto, Nic organizou um sistema de policiamento para guarnecer o acampamento durante a noite e o dividiu em turnos. Aquele trabalho transcorreu sem sobressaltos. No dia seguinte, enquanto uma parte dos homens saiu para vasculhar os arredores, a outra permaneceu restabelecendo as cabanas.

Os exploradores encontraram uma grande caverna nas proximidades, com vestígios de que já servira de abrigo; nada mais, nenhum perigo iminente. Com as cabanas quase completamente reestruturadas, já poderiam dar prosseguimento na vida nova em seu novo aconchego.

E assim foi. A caverna, em caso de necessidade por algum tipo de ataque ou temporal, poderia ser ocupada com segurança. Peixes, frutas e caça eram abundantes. Nada mais faltava, por via das dúvidas, muitas armadilhas para grandes animais ou qualquer outro tipo de intrusos foram espalhadas por grandes distâncias ao redor.

Durante um longo tempo a vida no acampamento transcorreu sem sobressaltos. Pescavam, caçavam e coletavam. O convívio com pequenos animais era amistoso, uns não temiam os outros, tanto que começaram a domesticá-los. As crianças brincavam e cresciam fortes. A curiosidade de Nic não lhe dava trégua, estava sempre à procura de novas descobertas, criava novas ferramentas, novas armadilhas e ensinava a seus companheiros. Para abrigar sua família, que não parava de aumentar, ele construiu uma cabana maior. Já tinha quatro três filhos e Lika, sua companheira, esperava o quinto.

Tudo ia bem e eles estavam felizes. A comunidade crescia.

Um dia, durante uma caçada, encontraram em uma armadilha um sujeito ligeiramente parecido com eles, pouco mais alto, porém muito mais forte. Acharam que fosse tão forte quanto um animal feroz. Para nomeá-lo, usaram um termo que possivelmente significasse gigante. A princípio pensaram em abatê-lo imediatamente, por acreditar que ali estava a chave da morte de seus dois companheiros. Discutiram a respeito e decidiram soltá-lo para segui-lo e assim o fizeram. Depois de uma longa caminhada, por uma trilha difícil, deram com o grupo do gigante. Tratava-se de seres barulhentos e desordenados, sob o abrigo de árvores e cavernas. Regressaram ao acampamento e, ato contínuo, redobraram os cuidados e as armadilhas.

Nic observara que sementes atiradas ao solo, algum tempo depois germinavam; que a maioria dos tubérculos que consumiam, se enterrados, renasciam. As ideias começaram a fermentar em sua cabeça sobre o fenômeno. Resolveu fazer experiências. A poucos metros de sua cabana havia um terreno limpo, cuja vegetação fora consumida pelas chamas provocadas por um raio. Plantou lá várias espécies de tubérculos e cuidou, para que os animais não pusessem seu trabalho a perder. Foi um sucesso. Em pouco tempo sua plantação resultou em alimento para sua família.

O grupo todo gostou da ideia. Fabricaram ferramentas adequadas ao cultivo da terra, lotearam o terreno, construíram suas cabanas no que agora era sua propriedade privada e plantaram. Plantaram tudo o que puderam e domesticaram novos animais.

Todavia nem tudo eram flores. O trabalho era cansativo; o risco dos invasores da serra era grande, portanto não poderiam relaxar com as armadilhas; se o cuidado com a plantação não fosse total, os animais invadiam e acabavam com tudo; as intempéries influenciavam no resultado, ora era muita chuva, ora muita seca. Muitas vezes a colheita ficava aquém do necessário e eles tinham de recorrer à pesca e à caça, quando, então, descuidavam da plantação e os animais invadiam. A vida começou a ficar difícil.

Nessa luta, muitos anos depois, já velho e exaurido de todas as suas forças, Nic parou para refletir sobre o resultado de suas escolhas, passou em revista toda a sua vida e chegou a conclusões contraditórias: ele e seu povo sempre viveram livremente percorrendo muitas terras, dormiram sob árvores, em cavernas e em improvidas cabanas, mas eram livres, embora precisassem, às vezes, fugir de algumas feras. Depois viraram plantadores, por iniciativa sua. Para sobreviverem aos invasores gigantes, praticamente os exterminaram, tanto que os remanescentes não mais os perturbaram. Construíram boas habitações, domesticaram muitos animais e cercaram suas terras, às quais se atrelaram. Durante todo esse tempo gozaram de muitas alegrias, mas também sofreram. Eram, ao mesmo tempo, proprietários, mas também escravos de suas propriedades. Por fim, chegou à conclusão de que, doravante, por sua culpa, as gerações vindouras seriam eternamente escravas de tudo quanto criassem.

Assim refletindo, Nic chegou ao seu derradeiro suspiro, com a certeza de que pusera sua gente a trilhar um caminho sem volta.

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MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 12/11/2023
Reeditado em 13/11/2023
Código do texto: T7930445
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